Yearly archive for 1998

Provas científicas

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998

Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um país racista seriam desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de provar cientificamente o racismo da África do Sul. Quando a prova tem de ser obtida mediante contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o desejo incontido que uma certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito racial que jamais brotaria de baixo espontaneamente, como de fato não brotou.

Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada pela Rede Globo de Televisão, fabricante monopolística da mentalidade nacional. Não passa um dia sem que mensagens a atestar as supostas inclinações racistas do nosso povo sejam marteladas e remarteladas por meio de noticiários, entrevistas e novelas, até tornar-se, pela repetição goebbelsiana, verdade evangélica, cuja contestação acabará por se tornar, por sua vez, crime de racismo: está próximo o dia em que louvar a democracia racial brasileira dará cadeia.

Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede Globo ou aos iluminados da esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma técnica muito conhecida nos anais da estratégia revolucionária, se aproveitam de algum cochilo da direção e se apressam a mandar na empresa como se já fosse propriedade do futuro Estado comunista.

Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do Novo Mundo, já circulava a ordem do Comintern, de 1931, para que os comunistas buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um sentido de luta de classes (William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras, 1993). Como diria Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de televisão.

O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao público como verdade científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês da Silva Barbosa, celebrada pela GNT como prova final (mais uma!) do racismo brasileiro, informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das mesmas causas: os brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de homicídio (7,5%, contra 2,5% de brancos). A sociedade racista branca , conclui a pesquisadora, está exterminando sistematicamente os negros .

Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro lugar, a raça branca é mais sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que já basta para explicar a diferença do número de enfartes. Quanto ao de homicídios, para concluir que se deve a um racismo exterminador seria preciso provar que foram, na maioria, cometidos por brancos. Pois caso seja maior entre os negros não somente o número de vítimas, mas também o de assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se tanto, que os negros são mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão, declarada em público, seria instantaneamente rotulada de racista, mas não o é menos a sua contrária, que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de um dado essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras, mesmo os cometidos por negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o resultado de uma pesquisa para acusar de homicida uma raça inteira, contanto que seja a branca?

A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo da África do Sul ou do Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual proibição de casamentos mistos, nunca foi nada pior que o nosso “racismo sutil” – tão sutil, digo eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações numa estatística, e mesmo assim não se torna visível senão aos olhos da fé.

“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência do senso das proporções.

Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas, se não sumiram de todo, acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente tendência subconsciente, e uma outra que as exacerbou numa cultura que enfatiza a identidade racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais racista e perversa, qual a mais justa, bondosa, sábia?

Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria espontânea e quase sem a intromissão do Estado que o povo brasileiro conseguiu reduzir ao mínimo a discriminação racial neste país. Na África do Sul, nos Estados Unidos, uma cultura arraigadamente racista teve de ser controlada pela polícia e pelos tribunais, e, sob todo o peso da máquina repressiva, ainda explode, de vez em quando, em descargas de uma violência sem paralelo na nossa história.

Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira intelectual ou de interesses políticos maliciosos?

O segredo de João Pedro Stedile

Olavo de Carvalho

17 de maio de 1998

Nota – Não encontrei um único jornal ou revista que quisesse publicar este escrito. Como ele contém informações que me parecem importantes para quem deseje compreender o que se passa no Brasil de hoje, dou graças aos céus por poder reproduzi-lo nesta homepage, abrigo de minha minguada liberdade de expressão.

“He that never compares his notions with those of others, readily
acquiesces in his first thoughts, and very seldom discovers the
objections which may be raised against his opinions; he, therefore,
often thinks himself in possession of truth,
when he is only fondling an error long since exposed.”

Samuel Johnson

Quando um sujeito não quer ver a realidade, não adianta nada ela posar diante dele escandalosamente nua. O juiz que rejeitou a denúncia de apologia do crime apresentada contra o sr. João Pedro Stedile alegou que um simples discurso desse personagem não podia ter causado atos de vandalismo. Em algum lugar do passado S. Excia. deve ter tido diante dos olhos, mesmo que fugazmente, um exemplar do Código Penal. Se nele houvesse detido sua atenção por mais alguns segundos, teria talvez notado que a apologia do crime é crime em si, ainda quando impotente para suscitar resultados práticos.

Mas, além de juridicamente descabida, a impotência política que a sentença atribuiu às palavras do Sr. Stedile contradiz também tudo o que se sabe, em história e em psicologia social, da eficácia da palavra-de-ordem desfechada por um líder sobre a massa organizada. Pois o Sr. Stedile não falou, no ar e à toa, para meia-dúzia de mendigos reunidos casualmente numa praça, e sim para uma tropa bem preparada, bem trabalhada, pronta para a ação como um canhão carregado que aguarda, para disparar, apenas uma discreta fagulha.

A comparação, aliás, peca por míngua: secundado pelo apoio quase unânime da mídia e pela solidariedade providencial de políticos e juristas de miolo mole que insistem em estender aos ricos incitadores de pobres a excusa do “estado de necessidade”, um discurso do Sr. Stedile não é uma fagulha: é uma explosão em cadeia, que começa com o chiado de um pavio e termina ribombando e derrubando prédios por todo o território nacional.

Mas que a sentença seja absurda e fundada num pretexto risível não implica que devamos lamentá-la. Por mim acho ótimo que o Sr. Stedile continue a circular livre pelas ruas, despido da aura de mártir que três minutos de cadeia bastariam para conferir a um homem jamais seriamente maltratado por qualquer adversário, e que até o momento não tinha pretexto aceitável para se fazer de coitadinho.

É notória a habilidade da esquerda para elevar às dimensões publicitárias de um holocausto qualquer pequena incomodidade que se lhe inflija. O sr. Leonardo Boff, por exemplo, tornou-se um novo Cristo no Gólgota por conta das duas ou três amáveis reprimendas que lhe deram em Roma, enquanto seus inimigos conservadores – de Lefebvre a Castro Mayer – eram sumariamente excomungados sem que a grande imprensa lhes concedesse sequer um espacinho para modestas lacrimejações.

Não. Nada de cadeia. Quero ver o Sr. Stedile livre e forte para agüentar certas verdades que, mais dia menos dia, hão de aparecer. Para homens como ele, cadeia não dói. O que dói, a única coisa que dói na alma de um revolucionário profissional, é ver exposto aos olhos do público o segredo em cuja meticulosa ocultação reside a fórmula da vitória.

Quando falo em segredo, não imaginem que me refiro ao submundo mental do inconsciente. Nada sei da psicologia pessoal do Sr. Stedile e me dou por satisfeito de continuar a ignorá-la. O segredo do Sr. Stedile não está nas suas emoções profundas, mas numa doutrina política que, para ser eficaz, tem de se resguardar cuidadosamente de declarar seu nome.

Essa doutrina compõe-se, com efeito, de duas partes: as premissas, que o Sr. Stedile alardeia abundantemente, e a conclusão fatal, que ele omite discretamente. As premissas são as seguintes: 1) entre as classes sociais há contradições de interesses; 2) algumas dessas contradições são antagônicas, isto é, não têm solução pacífica.

A conclusão, que o Sr. Stedile jamais declara, mas que qualquer garoto de escola pode tirar sem dificuldade, é que ou a sociedade terá de viver num estado de guerra permanente, ou uma das classes terá de ser eliminada — sendo difícil conceber como se poderia dar fim a uma classe sem suprimir fisicamente bom número de seus membros.

Essa doutrina é nossa conhecida de velhos e sangrentos carnavais. Levada à prática, custou a vida de mais de 100 milhões de pessoas — o episódio mais mortífero da História humana desde o dilúvio.

Mas estou pondo o carro adiante dos bois. Deixem-me contar a história desde o começo. Meu interesse pelas crenças do Sr. Stedile nasceu há tempo em Porto Alegre, onde, com meu amigo, o brilhante estudioso Cândido Prunes, tive durante algumas horas, na Bienal do Livro de 1997, o extravagante prazer de debatê-las com o próprio Sr. Stedile e seu fiel escudeiro frei Sérgio Görgen.

Tendo-as ouvido, não saí, no entanto, estupefato, pela simples razão de que já as viera ouvindo pela vida a fora, pelo menos desde os quatorze anos de idade, quando pela primeira vez topei com um comissário do povo incumbido de ensinar aos jovens o caminho da felicidade universal, que, como o resumiu um adágio da Revolução Francesa, consiste em enforcar seres humanos uns nas tripas dos outros.

Quem ficou estupefato foi o próprio Sr. Stedile, porque, habituado pela mídia a um tratamento de menino mimado, pela primeira vez em sua vida teve a pedagógica e repugnante oportunidade de ouvir uma resposta substantiva. Sim, reconheço que maltratei sadicamente o cérebro do Sr. Stedile, mostrando-lhe as últimas coisas que ele desejaria saber.

Não é de espantar que ele tenha saído espumando de cólera, batendo o pezinho e maldizendo, alto e bom som, a hora em que aceitara o convite para o debate.

Mas vamos por partes. Após ter exposto as premissas de sua doutrina, o Sr. Stedile deu alguns exemplos de contradições antagônicas. O primeiro foi que o regime instalado no país em abril de 1964 esmagara as Ligas Camponesas mediante a eliminação física de seus líderes. Respondi que o episódio se dera em 1963, um ano antes da posse do Marechal Castelo Branco, que só poderia ter cometido o crime pelos métodos do Exterminador do Futuro.

Alegou então o Sr. Stedile, como prova da violência reacionária contra os camponeses progressistas, o massacre de Canudos. Canudos, respondi, fora um movimento monarquista e conservador, afogado em sangue pelos progressistas que tinham acabado de derrubar o regime imperial.

Em resposta, o cortejo de militantes que acompanhava o Sr. Stedile em trajes típicos — boné, sacola a tiracolo — começou a gritar, vaiar e uivar, para impedir que os fatos históricos continuassem a tirar de seu guru todo o prazer de viver. Não tive remédio senão disparar sobre os valentes meninos um enérgico “Cala a boca!”, que, para minha surpresa, os fez mudar de atitude instantaneamente, passando dos rosnados viris aos muxoxos de donzela magoada. Alguns levantaram-se para protestar, com pose de aluninhos bem comportados, contra a grosseria do debatedor escolhido para confrontar-se com a alma delicada do Sr. Stedile. O próprio Sr. Stedile, aproveitando a deixa, declarou que se soubesse que iria receber da parte de seu opositor um tratamento tão brutal, jamais teria ido àquele lugar maldito. Estas sábias palavras foram aplaudidas com entusiasmo. Eu mesmo as aplaudi, fascinado pela desenvoltura artística com que aquele talentoso orador passava do furor heróico aos gemidos de autocomiseração.

Percebi então que o Sr. Stedile só estava acostumado a enfrentar-se com dois tipos de pessoas: no campo, fazendeiros armados que desejariam matá-lo; na cidade, políticos, intelectuais e ricaços que o adulam. Um simples cidadão sincero, capaz de lhe dizer na lata coisas patentes, era demais para a sua cabeça.

Pior ainda ficou ele, esfregando nervosamente as mãos na impossibilidade de me estrangular em público, quando eu disse que o MST, embora pose de inimigo número um do imperialismo, não faz nenhum dano aos poderes internacionais; que estes, ao contrário, lhe dão vasto apoio financeiro e midiático em troca de sua ajuda para enfraquecer o Estado nacional brasileiro, o que é parte essencial da estratégia globalizante, empenhada em fomentar movimentos de reivindicação que obriguem as nações a viver de ajuda internacional; que, no conjunto, o MST só ataca empresários rurais, uma classe que, poderosa regionalmente, nada significa em escala mundial; e que, enfim, tudo se resume no velho circuito descrito por Bertrand de Jouvenel: um poder maior e central, para se afirmar, destrói poderes intermediários com a ajuda de uma massa de insatisfeitos que nem de longe imaginam a quem servem.

A estas observações ninguém me respondeu nada. Os cérebros ficaram paralisados pelo impacto de uma novidade indigerível.

Concluí então que uma causa fundada na falsidade e no auto-engano só poderia propagar-se à força de mentiras. A mais notável delas era o famoso “estado de violência” que, segundo o MST afirma e a imprensa mundial ecoa, é geral e endêmico no campo brasileiro. Exibi então as estatísticas trazidas no livro de autoria do próprio Stedile, A Questão Agrária no Brasil, segundo o qual a taxa de homicídios em toda a área rural brasileira — todo um continente, habitado pela quarta parte da população brasileira —, tinha sido de 40 a 50 casos por ano entre 1991 e 1995 — um número aproximadamente igual à quota, não anual, mas mensal, dos morros cariocas, cuja população não chega a dois milhões de pessoas. Os dados do Sr. Stedile mostravam que, comparado às áreas urbanas, o campo é a área mais estável e pacífica do Brasil. Como conseguia o MST fazer tanto alarde em torno de tão minguados horrores sem o apoio interesseiro dos poderes internacionais, que a doutrina oficial da esquerda afirmava serem aliados dos latifundiários? Era aos fazendeiros ou ao MST que a Comunidade Econômica Européia dava dinheiro, a ONU legitimação política, a grande imprensa novaiorquina respaldo publicitário? Quem, afinal, servia às forças globalizantes?

Convidado a dirigir perguntas ou objeções a seu opositor, o Sr. Stedile declarou que nada tinha a responder a um sujeito tão horroroso, sendo seu aristocrático mutismo secundado pelo de frei Sérgio Görgen, seu acólito. Respondi a essa não-pergunta observando que era próprio do monólogo totalitário nada perguntar, mas viver imerso na auto-satisfação de afirmar, afirmar e afirmar.

Ainda sem responder, o sr. Stedile entrou logo nas suas “considerações finais”, de pé para fazer da mesa de debates um palanque, gesticulando muito, ocupando por meia hora, sem apartes, o prazo de dois minutos que lhe fora concedido, e preenchendo-o com um vocabulário seleto, no qual se discerniam, entre outros termos científicos, o nome da mais velha profissão da humanidade e o do membro masculino, ambos começando com ”p” e terminando com “a”, sendo no fim entusiasticamente aplaudido pelos que haviam protestado contra a incontinência verbal de seu adversário.

Em seguida, alegando não sei quais compromissos, retirou-se do debate, cumprimentando todos os membros da mesa exceto um (no que seria depois imitado por frei Sérgio, religiosamente).

Após a saída do líder, os militantes dividiram-se: uns foram embora, desistindo de uma conversa que não poderia trazer ao MST nenhum dividendo político. Outros redobraram de ferocidade. Um deles gritou que nós outros, defensores de um determinado “modelo de sociedade” éramos uns “mercadores da morte”. Outro, ou o mesmo, não lembro direito, afirmou que o capitalismo matara todos os índios. Ao primeiro, convidei a mostrar, nos meus livros, uma linha, ao menos, que propusesse algum modelo de sociedade. Ao segundo, ou ao mesmo, observei que a destruição das nações indígenas no Brasil fora anterior ao advento do capitalismo, tratando-se portanto, de um segundo Exterminador do Futuro. Seguiram-se novos gritos e protestos, sendo então encerrada, entre apupos e furores, a singular troca de idéias. Troca na qual levei prejuízo, não tendo recebido nenhuma em retribuição das minhas.

Ao voltar ao Rio, tive a surpresa ingratamente lisonjeira de descobrir que muitas pessoas consideravam uma covardia abominável designar-me para enfrentar o Sr. Stedile, tendo em vista o que presumiam ser uma desproporcional dotação de nossos respectivos QIs (no entanto jamais cotejados cientificamente). Essa reação revelou-me um curioso traço da nossa psicologia coletiva: ela encara a inteligência e o conhecimento como forças físicas, que nos debates deveriam ser graduadas igualitariamente, a bem da justiça. Quando um simples cidadão sem cargo ou dinheiro, armado tão somente de sua cabeça e de seus estudos, enfrenta um líder político que vem escorado em vastas organizações, verbas milionárias e uma massa de militantes enfurecidos, o covarde é o primeiro, não o segundo. Entre Cícero com sua eloqüência e César com seus exércitos, covarde é Cícero. Entre Leon Trotski com seus panfletos e Stálin com seus guardas, covarde é Trotski.

Mas, deixando de lado essas manifestações de igualitarismo paroxístico, muito influentes aliás nas “políticas culturais” de hoje, tive ainda, em casa, a ocasião de completar minhas impressões lendo numa revista de São Paulo (Caros Amigos, Ano 1, no 8, nov. 1997) uma longa entrevista do sr. Stedile, onde finalmente acreditei ter compreendido algo da sua personalidade política.

A chave para a decifração dessa criatura enigmática está no estilo do seu discurso. Desde o falecimento do ministro José Maria Alkmin, nenhum brasileiro superou o Sr. Stedile na arte da linguagem escorregadia. Mas entre eles há diferenças substanciais. O primeiro era nebuloso em tudo; o segundo o é apenas no que se refere à sua identidade política, sabendo ser bastante claro e incisivo ao definir a dos adversários. Alkmin era vago em atos e palavras, o Sr. Stedile o é somente em palavras: seus atos têm um sentido muito definido, que o discurso nebuloso busca disfarçar.

A técnica do Sr. Stedile consiste em evitar dar às suas ações mais óbvias os nomes que elas obviamente têm. Ele se esquiva às definições pela mesma razão com que um índio se esquiva de fotografias: para evitar que sua alma seja capturada. A palavra é poder: aquilo que podemos nomear, podemos de algum modo dominar. O sucesso das ações do Sr. Stedile depende em última instância de que ninguém saiba exatamente o que ele está fazendo. Por isto, num mundo em que tantos se queixam da incompreensão alheia, ele foge da alheia compreensão como um vampiro foge da luz do dia.

A nebulosidade começa pela própria figura social do personagem. Esse intelectual diplomado em Economia por uma universidade paga (PUC do Rio Grande) procura falar errado como um homem do povo, mas às vezes se equivoca e inadvertidamente começa a conjugar os verbos e flexionar os adjetivos com aprimorada correção. No debate em Porto Alegre, acuado pelos cálculos de Cândido Prunes, ele primeiro se fez de ignorante, dizendo que não era justo cobrar de um simples lutador pelas nobres causas a leitura de “tudu êssis livru” (sic); tão logo sentiu firmeza, começou a despejar sobre o adversário estatísticas e cálculos — impertinentes, mas expostos em linguagem de professor da USP.

Mais nebuloso ainda é o estado em que ele procura manter a identidade do MST — “um movimento sui generis, ao mesmo tempo de caráter popular, sindical e político”, que os esquerdistas mesmos não entendem, pois “nunca existiu um movimento que reunisse essas três características”. Será mesmo? Em escala nacional, sim. Mas, na história do mundo, um movimento que invade terras e instala no campo uma administração paralela para ir tomando aos poucos o lugar dos órgãos oficiais não é novidade nenhuma. Surgiu na Rússia pré-revolucionária com o nome de soviete. Até a principal diferença que separa o MST dos movimentos sindicais assinala a sua identidade com os sovietes: ele não se compõe só de camponeses, como um sindicato de classe, mas inclui engenheiros, economistas, assessores de imprensa e, last not least, técnicos em guerrilha. Sim, ele não é um órgão de representação profissional. É um braço da estratégia revolucionária e a semente da futura administração rural comunista. Ao lançar o manto da nebulosidade sobre um fenômeno de identidade tão manifesta, o Sr. Stedile açambarca em proveito da estratégia comunista, espertamente, o próprio fato de o comunismo estar fora de moda: desconhecendo tudo da estratégia leninista que lhe parece coisa do passado, o público não poderia reconhecê-la nem mesmo sob o mais tênue e relaxado disfarce, e encontra-se pronto a servi-la quando ela se apresenta sem nome.

É por isso que o Sr. Stedile, após defender as velhas e ortodoxas doutrinas da luta de classes, da destruição do aparelho de Estado burguês, etc. etc., pode, sem corar, negar que é marxista, negar que é leninista e, para cúmulo, negar até mesmo, como o faz com vigor em sua entrevista, que seja um homem de esquerda no sentido mais geral do termo!

“Detestamos rótulos”, afirma ele. “Fazemos uma campanha permanente contra o rótulo”. Mas essa firme determinação inverte-se quando a cola vai para o outro lado. Os inimigos do MST são facilmente catalogados em “neoliberais”, “imperialistas”, “reacionários” etc., sem que isto desperte a rotulofobia do Sr. Stedile. Eu mesmo tive a oportunidade de receber, da parte de militantes do movimento, o carimbo de “neoliberal”, embora minha única participação em entidades que professam essa doutrina tenha sido, precisamente, uma conferência no Instituto Liberal do Rio sob o título “Por que não sou neoliberal”.

Não é preciso dizer que, no são entendimento humano, nem todos os nomes são meros rótulos, catalogações exteriores inadequadas à natureza da coisa. Quando chamamos uma galinha de galinha, um jumento de jumento ou o Sr. Stedile de Sr. Stedile, não estamos rotulando: estamos nomeando. Mas quando o Sr. Stedile, tendo negado peremptoriamente que é esquerdista, logo em seguida se qualifica de “socialista cristão” e mesmo após o galo cantar três vezes não explica que raio de coisa poderia vir a ser um socialismo não-esquerdista, então compreendemos que ele está precisamente se rotulando para esconder por trás do rótulo o verdadeiro nome da coisa; que, em suma, ele prefere antes o mais falseado dos rótulos, quando lhe é útil politicamente, do que o mais apropriado dos nomes, quando lhe é politicamente incômodo.

Í

O sr. Stedile pode ser, no plano pessoal, um homem honesto — honesto com sua esposa, com seus credores, com seus amigos. Nada sei que, como ente biológico e civil, o desabone. Política e intelectualmente, porém, seu discurso é a coisa mais tortuosa, mais mentirosa e mais dissimulada que tem aparecido no cenário nacional. E que sua figura política seja imposta ao público como a imagem por excelência do bom menino, como a encarnação mesma dos “sentimentos nobres” massacrados pelo cínico mundo capitalista, eis aí a prova de que este país vai perdendo, junto com o senso da verdade, todo discernimento moral.

Inédito.

O capital

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 14 de maio de 1998

Todos os políticos, intelectuais, artistas, líderes comunitários, enfim, todas as pessoas maravilhosas querem que o povo brasileiro seja rico e feliz (subentendendo-se que o dinheiro não traz felicidade a quem não o tem). Para esse fim, concebem programas de ação que consistem em distinguir quem deve ir para o governo e quem deve ir para a cadeia (ou, nos casos agudos, para o cemitério). Os programas divergem somente quanto aos grupos de pessoas que formam as duas colunas da lista. Os militares achavam que eles mesmos deveriam estar no governo, e na cadeia os que achavam o contrário, isto é, os chamados corruptos e subversivos . Hoje, os esquerdistas acham que quem deve estar no governo são eles, e na cadeia os corruptos e reacionários , isto é, todos os outros.

Descontados os eufemismos e outras figuras de estilo, é nisso, substancialmente, que consiste o chamado debate nacional.

Não posso assegurar que a distribuição dos lugares mais confortáveis e mais desconfortáveis da sociedade seja totalmente irrelevante para o destino do bolso popular, mas tenho razões para crer que há outros fatores que deveriam ser examinados antes de se decidir tão transcendente disputa.

Um deles é o seguinte. Lao-tsé já dizia que sem dinheiro é muito difícil fazer dinheiro. Não disse exatamente com essas palavras, mas disse. Significa que para ser rico é preciso fazer alguma coisa e esta coisa custa alguma coisa. Tão decisiva é esta segunda coisa, que recebeu o nome de capital. Quaisquer que sejam as ações a cumprir para tornar você rico, o capital é que lhe dá os meios de executá-las – despesas de material e transporte, sustento próprio e dos subordinados durante a realização do projeto, etc., etc.

Só há quatro métodos para obter o capital.

O primeiro é ter sorte. Ter sorte é estar de bem com o céu e receber dele aquilo de que se precisa, como por exemplo um alimento no deserto ou um caminho no meio do mar. Moisés usou muito este método na fuga do Egito, com sucesso comprovado. A Bíblia fornece várias receitas de como praticá-lo, em duas versões, antiga e moderna ou judaica e cristã. Ambas exigem que você confie, reze, seja um bom sujeito, não mexa com a mulher do próximo e, de modo geral, não encha o saco.

O segundo, mais apropriado aos descrentes, é usar aquilo que você já tem e espremer, se existirem, as últimas gotas de um limão seco que já deu cinco limonadas. Num velho filme de Sidney Lumet, O Homem do Prego (“ The Pawnbroker ”) , o usurário – judeu, mas morbidamente ateu – representado por Rod Steiger explicava a técnica ao jovem porto-riquenho que queria montar um negócio: “Viva apenas de pão seco, use sempre o mesmo par de calças, reduza para a metade a ração de leite das crianças e, se chorarem de fome, espanque-as. Ao fim de umas poucas décadas você terá o capital para começar.”

As eruditas páginas de Karl Marx sobre a acumulação primitiva do capital não valem essas palavras, ainda que reproduzidas imperfeitamente.

O terceiro método é roubar, supondo-se que você tenha suficiente força física – um precioso capital natural – para derrubar seu vizinho e torcer-lhe o pescoço antes de esvaziar-lhe a carteira, posto que haja nela o que justifique tamanho risco. Caso não se trate de enriquecer um indivíduo, mas uma nação, é preciso ter armas e soldados em número superior ao do adversário, o que supõe que antes de recorrer a este terceiro método se tenha praticado o primeiro ou o segundo, ou ambos, durante um bom tempo.

O quarto e último método é pedir a quem tem, seja sob a forma de empréstimos, seja de investimentos. Nas duas hipóteses é preciso aceitar a seguinte conseqüência implacável: se você conseguir ficar rico, um outro sujeito vai ficar mais rico ainda, e, se você não conseguir deixar de ser pobre, ele vai deixar você mais pobre ainda.

Não há um quinto método. O problema com o Brasil é que nenhum dos quatro nos agrada. A resistência a todos está, como se diz, na nossa cultura, a qual, por mal dos pecados, é obra das mesmas pessoas maravilhosas que querem pôr umas às outras na cadeia com o objetivo de enriquecer o povo.

Objetamos ao primeiro que é demorado e incerto (além de anticientífico), ao segundo que é escorchante, ao terceiro que é imperialista e ao quarto que resulta, segundo dizia Leonel Brizola, em intoleráveis “perdas internacionais”.

Não dispondo, portanto, de capital, não podemos agir no campo econômico. Em compensação, atuamos com raro entusiasmo e proficiência no terreno mais próximo dele, que é a política. A política consiste, segundo Carl Schmitt, em favorecer os amigos e sacanear os inimigos – o que é precisamente o que temos feito, empregando para isso o melhor de nossos recursos financeiros, intelectuais, jurídicos, musculares, vegetais, animais e hidromineralógicos.

Não é um método de gerar riqueza, mas não deixa de ser um método de repartir equitativamente os bens existentes: quando todos tivermos passado um tempo no governo e um tempo na cadeia, estará realizada a justa redistribuição da riqueza, preconizada pela Constituição. Aí pode ser que estejamos felizes, e sempre nos restará a esperança de que, se o dinheiro não traz felicidade, a felicidade venha talvez a trazer dinheiro.

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