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Christopher Hitchens contra o Papa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de março de 2010

Em artigo publicado no Wall Street Journal do último dia 15, Christopher Hitchens acusa o Papa Bento XVI de haver acobertado um crime de pedofilia em 1979, entre outros inumeráveis, e sugere que o Pontífice deve ser processado por isso.

Nem comento o estilo. Entremeado de menções ao “fedor” e à “sujidade” do caráter de Bento XVI, ele vibra em todas as cordas midiáticas da indignação estereotipada – o mais alto sentimento moral que algumas almas conseguem alcançar. O raciocínio que Hitchens segue para chegar à sua conclusão reflete, de maneira condensada, toda a deformidade estrutural da mente moderna.

Se o Papa deve responder perante a Justiça comum, é evidente que os critérios dela prevalecem, no caso, sobre as regras internas da Igreja. Mas, se é assim, eles devem vigorar não só para julgar o alegado acobertamento, mas também, e prioritariamente, o crime acobertado. Ora, o padre pedófilo acusado em 1979 de abusar de um menino de onze anos na cidade alemã de Essen nunca foi julgado nem muito menos condenado pela Justiça comum. Não havendo a respeito uma sentença transitada em julgado, ninguém tem, em nome da Justiça, o direito de proclamar que houve crime. Se nem o crime é confirmado, como pode sê-lo o seu “acobertamento”? Pela lógica, é preciso provar primeiro uma coisa, depois a outra, não ao contrário. O que houve, em vez de prova judicialmente válida, foi apenas uma suspeita séria, com base na qual o então cardeal Ratzinger ordenou que o acusado fosse submetido a tratamento psiquiátrico e removido para um posto administrativo em Munique onde não tivesse contato com crianças. Logo depois, no entanto, o vigário-geral de Munique, Gerhard Gruber, sabe-se lá por que, retransferiu o padre para funções pastorais onde ele não demorou a ser alvo de novas acusações de abuso sexual. Hitchens assegura que a culpa foi toda de Ratzinger, mas não dá nenhuma prova disso exceto a opinião de um ex-empregado da Embaixada do Vaticano em Washington, segundo o qual o então chefe da Congregação para a Doutrina da Fé era um administrador meticuloso ao qual esse detalhe “não poderia” ter escapado. Ou seja: o Papa deve ser punido pela Justiça porque alguém achou que ele “deveria” saber do acobertamento, por terceiro, de uma conduta que nem sequer fôra comprovada como crime, seja pela Justiça comum, seja pela investigação interna na Igreja.

Hitchens, evidentemente, não quer nem saber como funciona a Justiça cuja intervenção ele invoca. Quer condenar um cúmplice antes de provado o crime e confirmado seu autor principal; e quer condená-lo mediante a simples opinião de um terceiro que não testemunhou nem o crime nem a cumplicidade.

Mas, se ele não entende os princípios jurídicos do mundo leigo cuja autoridade ele pretende sobrepor à da Igreja, muito menos entende as regras desta última.

Arrebatado nas ondas de um entusiasmo belicoso pueril, ele vai muito além do episódio de 1979 e acusa o então cardeal Ratzinger de haver, como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, encarregada pelo Papa João Paulo II de investigar os casos de pedofilia na Igreja, “acobertado” todos esses crimes de uma vez. Qual a base dessa acusação? Ratzinger teria transmitido aos bispos uma ordem de que as denúncias de pedofilia fossem investigadas em segredo, dentro da Igreja, sem nada comunicar à polícia e à imprensa durante dez anos. O documento que comprova isso seria uma carta confidencial parcialmente citada – sem reprodução fotográfica – no Observer de 24 de abril de 2005. Não sei se a carta é autêntica, mas, mesmo que o seja, o fato é que Hitchens, como aliás o próprio Observer, finge ignorar os dois pontos principais do texto. Primeiro: a Igreja aí reservava-se o direito à investigação secreta somente nos casos em que as alegadas vítimas já houvessem completado dezoito anos de idade; nos quais, portanto, não houvesse riscos imediatos para crianças. Segundo: a instrução abrangia, é claro, só as denúncias feitas internamente na Igreja, que não tinham sido ainda levadas à polícia ou à mídia, seja pelas vítimas, seja por quem quer que fosse. Por que deveria a Igreja permitir que casos ainda não comprovados em investigação interna, e que nem mesmo as vítimas ou seus parentes tinham denunciado às autoridades civis, se transformassem em escândalos públicos por iniciativa de bispos ávidos de brilhar na mídia como paladinos dos direitos humanos? Como chamar de “acobertamento” a mera iniciativa de bloquear um falatório prematuro que arriscaria inculpar inocentes e estimular milhares de Hitchens a destampar mais uma vez, agora sob lindos pretextos moralistas e humanitários, todas as latrinas da fúria anticristã?

O Evangelho mesmo, a rigor, proíbe que cristãos levem suas queixas à Justiça comum antes de tentar resolvê-las na Igreja (I Cor., 6:1-11). Hitchens tenta forçar a Igreja a renegar-se, a humilhar-se ante o altar da Justiça leiga, cujas normas, no entanto, o próprio Hitchens se permite aplicar às avessas. Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço.

Nunca fui um admirador do ex-cardeal Ratzinger, longe disso, tenho contra ele muitas queixas engasgadas, mas confesso que seu desempenho como Papa está me surpreendendo – não em tudo, é claro, mas especialmente na sua maneira de lidar com os casos de pedofilia. Foi ele quem reabriu as investigações sobre os “Legionários de Cristo” (e seu braço leigo, Regnum Christi), mesmo depois da morte do líder e pedófilo-mor dessa poderosa entidade, Marcial Maciel Degollado. Foi ele quem, tão logo recebeu os primeiros resultados do inquérito, mandou suspender a prescrição de dez anos, que, se era justa e normal em outros casos, se revelou capaz de prejudicar inúmeras vítimas mantidas em silêncio ao longo de décadas pelo herético e abjeto “voto de segredo” imposto por aquela malfadada organização a seus noviços. Negar que esse homem quer a verdade sobre esses episódios é negar a própria verdade.

O ateísmo é uma atitude humana normal, mas o ódio ao cristianismo enlouquece, embora nem todos os afetados dessa síndrome personifiquem essa loucura com a ênfase espetacular de Christopher Hitchens. Este não odeia a Igreja porque nela há pedófilos (se fosse assim odiaria também a ONU, onde os pedófilos são mais numerosos e mais cínicos). Ele já a odiava antes disso, e nunca tentou camuflar seu sentimento. A única novidade no seu artigo é a mudança de tática. Antes ele achava que podia vencer os cristãos no debate de idéias. Derrotado e humilhado em recente confronto polêmico com o escritor católico Dinesh D’Souza, passou pela transmutação que já se tornou rotineira em ateístas militantes desmoralizados: não podendo sobrepujar intelectualmente seus adversários, quer enviá-los à cadeia.

Construindo a ditadura americana

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 9 de janeiro de 2009

Não há “crise de crédito” nem recessão nenhuma, mas os gastos do governo americano para remediar problemas inexistentes podem criar um problema real: a hiperinflação. Os EUA ameaçam menos repetir a sua crise de 1929 do que o destino da República de Weimar em 1922, quando era preciso uma cesta de dinheiro para comprar um pãozinho.

Estas são as conclusões de um relatório publicado pela firma de consultoria Celent. O autor do estudo, Octavio Marenzi, é freqüentemente citado como fonte pelo Economist, pelo Financial Times e pelo Wall Street Journal. Antes de fundar a Celent, ele foi chefe do departamento de Tecnologia da Informação do Union Bank de Zurique e consultor do Booz, Allen & Hamilton’s Financial Services Group na Europa e nos EUA.

Ele afirma que os diagnósticos apresentados ao público pelo secretário do Tesouro, Henry Paulson, e pelo presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, são integralmente desmentidos pelas estatísticas oficiais dos órgãos que eles mesmos dirigem.

Em setembro, quando persuadiu o presidente Bush a liberar 700 bilhões de dólares em verbas de emergência, Paulson disse que o sistema financeiro estava “paralisado”, que os mercados de crédito haviam “congelado” e que os empréstimos entre bancos tinham se “reduzido substancialmente”. Bernanke afirmou que os negócios estavam enfrentando “reduzido acesso ao crédito”.

Tudo isso é cem por cento falso. As tabelas da Secretaria do Tesouro e do Federal Reserve mostram que, em vez de diminuir, a oferta de dinheiro aumentou – e aumentou numa velocidade jamais vista antes na história americana: 74 por cento em apenas 84 dias (15 por cento só no auge da “crise”). “Antes, observa Marenzi, esse salto aconteceria no curso de uma década ou mais.”

“Sem dúvida – prossegue –, um certo número de importantes instituições financeiras e de firmas industriais está em sérias dificuldades. No entanto, dificuldades de crédito que afetem um conjunto específico de firmas não é a mesma coisa que um problema no mercado de crédito como conjunto.” No geral, afirma Marenzi, este último estava funcionando muito bem. Se algum risco havia era o da hiperinflação – e a maciça injeção de dinheiro do governo só pode transformar esse risco numa realidade iminente.

O relatório está em http://www.celent.com/PressReleases/20081210/WhatCreditCrisis.asp. A conclusão de Marenzi é que Paulson e Bernanke deformaram os fatos “para justificar um acréscimo sem precedentes da intervenção governamental nos mercados”. Mas os dois não fizeram isso sozinhos: a grande mídia inteira os ajudou, endossando suas palavras e abstendo-se meticulosamente de conferi-los com os dados publicados pelas instituições que eles chefiam. Foi justamente por ver que os jornalistas não cumpriam sua função que a Celent decidiu cumpri-la em lugar deles.

No entanto, é claro que os riscos não se limitam à hiperinflação. O anúncio espalhafatoso de uma crise inexistente deslancha, por si mesmo, uma crise real. O gráfico mostra claramente que a oferta de crédito caiu significativamente depois da Lei de Estabilização Econômica assinada em 3 de outubro (Emergency Economic Stabilization Act). Mas, se o remédio foi tão manifestamente culpado por reduzir ao estado de coma um paciente que estava são, não se pode dizer que esse fenômeno não teve precedentes na história da economia americana. Num discurso pronunciado em 8 de novembro de 2002 na Universidade de Chicago, o próprio Bernanke confessou que a Grande Depressão de 1929-1933 não foi causada pela ação espontânea dos fatores econômicos, mas pelo intervencionismo nefasto do Federal Reserve. O discurso foi feito na cerimônia de homenagem ao nonagésimo aniversário de Milton Friedmann – o economista que ao longo de décadas, contra tudo e contra todos, vinha responsabilizando o Federal Reserve pela crise de 1929. Agora era um dos diretores do próprio Federal Reserve que confessava publicamente as culpas da instituição. Mas nem sempre a confissão é um ato sincero de repúdio ao crime. Pode haver nela uma ponta de orgulho secreto, que prenuncia a reincidência. Decorridos seis anos, com Bernanke na presidência, o Federal Reserve está de novo criando uma crise do nada, e, como diz Marenzi, novamente “para justificar um acréscimo de intervenção governamental nos mercados”.

Mas, se é assim – e, depois de olhar a tabela anexa, não imagino como possa ter sido outra coisa –, então resta a pergunta: foi George W. Bush quem mandou Paulson e Bernanke fazerem isso? Por que um presidente que está nos últimos dias do mandato buscaria aumentar dessa maneira o poder do Executivo, se ele mesmo não poderá desfrutar dos novos instrumentos de comando? Obviamente, Bernanke e Paulson não estão entregando esses instrumentos nas mãos de George W. Bush, mas de Barack Hussein Obama. Trata-se de fazer com que o próximo presidente já assuma o cargo na condição de ditador financeiro.

Se a operação foi realizada na base do engodo e da ocultação premeditada de informações, não há nisso nada de estranho, de vez que a própria vitória eleitoral de Obama foi alcançada pelos mesmos meios: não há a menor dúvida de que, se a mídia armasse em torno do sumiço dos documentos de Obama um centésimo do escarcéu que fez quanto à gravidez da filha de Sarah Palin ou das multas de trânsito de Joe the Plumber, o candidato democrata não teria tantos votos. O eleitorado foi totalmente ludibriado quanto à identidade do homem em quem votava, substituída pelo símbolo “candidato negro”, como se tudo quanto os votantes precisavam saber do futuro presidente fosse a cor da sua pele – e qualquer curiosidade quanto aos capítulos incertos da sua biografia fosse crime de racismo: duas premissas que a mídia inteira adotou como cláusulas pétreas do seu manual de redação durante as eleições.

Se duas gigantescas operações de desinformação são empreendidas simultaneamente, uma para forçar o povo a escolher um candidato sem fazer perguntas, outra para ajudar esse candidato a subir ao cargo já com poderes incalculavelmente aumentados, só um idiota completo poderia supor que essas duas operações foram totalmente independentes, só unidas pela mera coincidência de um sincronismo junguiano ou de uma imponderável decisão divina.

Em compensação, é verdadeira a articulação das duas manobras com uma terceira, uma quarta e uma quinta, todas convergentemente destinadas a munir de poderes especiais o próximo presidente.

1) A mais óbvia de todas é invenção pessoal de Barack Hussein Obama: a menina-dos-olhos do presidente-eleito é o seu projeto de uma “força civil de segurança nacional”, militância estudantil armada, paga com o dinheiro dos contribuintes para atemorizá-los e persegui-los ao menor chamado do profeta ungido (v. http://www.ibdeditorials.com/IBDArticles.aspx?id=305420655186700).

2) Enquanto o diretor do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Khan, advertia que as restrições de crédito para pessoas de baixa renda podem provocar distúrbios sociais, o próprio Paulson informava que o governo está preparado para enfrentar com a lei marcial as eventuais agitações e protestos que a “crise” venha a suscitar. Lei marcial significa suspensão dos direitos e garantias individuais.

3) Discretamente, alguns expoentes do pensamento militar americano preparam-se para jogar no lixo a lei Posse Comitatus, que desde 1878 proíbe o uso das Forças Armadas como instrumento de repressão interna. Um relatório do Instituto de Estudos Estratégicos do U.S. Army War College afirma explicitamente: “O Departamento de Defesa pode ser forçado a conter e reverter ameaças violentas à tranqüilidade interna. Sob as mais extremas circunstâncias, isso pode incluir o uso da força militar contra grupos hostis dentro dos EUA.” (V. http://www.newsmax.com/headlines/military_domestic_use/2008/12/23/164765.html?s=al&promo_code=763E-1). Alguns conservadores, num lance de humor negro, chamam isso de Posse Obamitatus.

Aqueles seres superiores que adquirem suas certezas da contemplação diária de um aparelho de TV devem sentir-se livres, sem nenhum ressentimento da minha parte, para desprezar a convergência lógica desses fatos como pura “teoria da conspiração”. Mas não impedirão que, ao 61 anos de idade, eu já tenha compreendido que a obsessão de parecer normal, equilibrado e mainstream é um sintoma de insegurança muito mal disfarçado.

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