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A falta que a miliância faz

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de julho de 2010

Às vezes me pergunto se ainda resta quem, na “oposição” brasileira, tenha alguma idéia mesmo aproximada do que é política. Todos parecem imaginar que é marketing, que é relações-públicas, que é economia, que é administração de empresas, que é disputa de cargos, que é “ética” (seja isto lá o que for) ou, na mais louca das hipóteses, que é “luta de idéias”. Na elite esquerdista, todo mundo já entendeu há quarenta anos que política é conquista e exercício do poder, e que poder não é outra coisa senão determinar o curso das ações alheias. Poder é fazer-se obedecer.

Nunca encontrei um político de “direita” que entendesse isso. Todos usam a palavra “poder” como sinônimo de “governo” e imaginam que terão o poder quando chegarem ao governo. Por isso mesmo não chegam nunca. Se chegam, não ficam lá senão o tempo necessário para que alguém os remova ou os exponha ao ridículo. Se governo fosse poder, não haveria nunca revoluções e golpes de Estado, que fazem o governo em frangalhos porque têm o poder de fazer isso e ele não tem o poder de impedi-lo. Ninguém chega ao governo se não tem o poder antes disso – o poder consolidado numa massa militante disciplinada, organizada e adestrada para seguir, com o mínimo de atrito, uma linha de comando. Há três décadas digo aos políticos de direita que eleitorado não é militância, eleitorado é uma massa dispersa e amorfa que só entra em ação de quatro em quatro anos. Militância é luta diária, é consagração da vida aos objetivos apontados pela liderança. Quem descobriu isso foi João Calvino, na Suíça reformada, e desde então a fórmula se consagrou como o mecanismo essencial, senão único, da política moderna. Mas não adianta explicar: todos continuam investindo tudo no empenho de conquistar votos, nada na formação e adestramento da militância. Não aprendem nem provavelmente aprenderão nunca a lição do PT, que em suas primeiras décadas soube adiar e sacrificar a política eleitoral ao interesse maior de criar e manter unida a militância. A liderança esquerdista compreendeu a verdadeira natureza do poder porque estava excluída da vida oficial. Sabia que sua única chance era criar um poder fora dos cargos públicos, um poder capaz de atemorizar o esquema oficial e vergá-lo aos seus interesses, mesmo contra a letra e o espírito das leis vigentes. A tática dos “movimentos sociais”, que inventam direitos inexistentes e os impõem a toda a sociedade antes mesmo de consagrá-los em lei, demonstra isso da maneira mais óbvia: mais vale o poder substantivo do que o poder oficial.

Na “direita”, o mito e o sex appeal do oficialismo conservam toda a sua força de sedução: vencer eleições, ocupar altos cargos, assinar decretos mesmo sem saber se serão obedecidos parece ali ser a essência da política, como se todo o poder consistisse na estrutura nominal da administração do Estado. De que adianta eleger um governador, ou presidente, se a massa militante do outro lado está infiltrada em toda parte e num estalar de dedos transformará a administração pública numa máquina de boicote e desobediência? Mais vale comandar a administração desde fora do que brilhar dentro do governo sem poder de comando.

Militância, por seu lado, não se cria da noite para o dia. Ela começa com círculos muito pequenos de intelectuais que, por anos, nada fazem senão discutir e discutir, analisando diariamente, com minúcia obsessiva, uma conjuntura política na qual não têm o mínimo poder de interferir. É do seu debate interminável que emergem, aos poucos, certas maneiras de pensar e falar que, consolidadas e simplificadas em esquemas repetitivos, se tornam espontaneamente a linguagem dos insatisfeitos em geral. Quando estes aceitam a linguagem do núcleo intelectual como expressão de suas queixas (por mais inadequada que essa linguagem seja objetivamente), é então que começa o adestramento da militância propriamente dita. De início suas iniciativas podem parecer deslocadas e pueris, mas elas não visam a alcançar nenhum resultado objetivo: são apenas ação imanente, destinada a consolidar a militância. Isto é tão importante, tão vital, que todo movimento político sério tem de começar sacrificando eleições e cargos ao ídolo da solidariedade militante.

A direita não tem militância, desde logo, porque não entende a função dos intelectuais. Quer usá-los apenas como adornos, como redatores de publicidade ou como revisores de estilo do discurso empresarial. Não compreende que a análise de conjuntura, a revisão de estratégias, o auto-exame e a busca constante das chaves da unidade do movimento têm de ser atividades diuturnas, incansáveis, obstinadas. Essa é a função por excelência dos “intelectuais orgânicos”. Sem isso não há militância, e sem militância não adianta nem mesmo vencer eleições. Perguntem ao Fernando Collor.

Ainda a hegemonia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 03 de julho de 2008

Um dos princípios fundamentais do marxismo é a união indissolúvel do conhecimento e da ação revolucionária. Quaisquer que sejam os erros da teoria, eles acabam sendo neutralizados, na prática, pela constante revisão da estratégia à luz da experiência adquirida pelo “intelectual coletivo” (o Partido) na sua luta pela conquista do poder absoluto e pela destruição final do adversário.

A intensidade do esforço intelectual coletivo, organizado e voltado a objetivos mensuráveis, dá aos partidos de esquerda uma capacidade de ação concentrada, orgânica, que seus adversários no campo liberal e conservador nem de longe conseguem emular, e no mais das vezes nem mesmo conceber.

Na verdade, a simples necessidade de adestrar os intelectuais e organizá-los para uma ação cultural integrada é algo que jamais passou pelas cabeças dos nossos “direitistas”. No máximo, o que concebem é uma pura “disputa de idéias”, como se, uma vez demonstrada em teoria a superioridade intrínseca da livre empresa, a militância socialista se dissolvesse por si, cabisbaixa e arrependida, desistindo para sempre de suas ambições revolucionárias.

Nem de longe suspeitam que, na voragem da ação política, as “idéias” podem vir a representar um papel bem diverso – ou até inverso – daquilo que parecem anunciar pelo seu mero conteúdo. O “intelectual coletivo”, consciente dessa diferença bem como do fato de que os direitistas em geral a ignoram, diverte-se sadicamente, num jogo de gato e rato, fazendo as idéias mais ortodoxamente direitistas trabalharem pela glória e triunfo do esquerdismo.

A aposta unilateral dos liberais no “enxugamento do Estado”, inspirada em considerações econômicas e morais perfeitamente verazes e justas em si mesmas, mas amputadas de toda conexão com a estratégia política e cultural, só tem servido para transferir as prerrogativas do Estado para as ONGs esquerdistas, quando não para organismos internacionais perfeitamente afinados com o esquerdismo.

A idéia abstrata de “lei e ordem”, inteiramente correta, mas letal quando desligada do respectivo quadro cultural e estratégico, levou muitos liberais a colaborar servilmente na derrubada de Fernando Collor, a entronizar portanto a esquerda como detentora das virtudes morais por antonomásia e a dar-lhe por essa via os meios de elevar a corrupção a alturas que o ex-presidente não poderia nem mesmo imaginar.

Não houve então um só intelectual esquerdista que, vendo o decano liberal Roberto Campos sair do hospital em cadeira de rodas para ir votar contra Collor, não se lembrasse, com enorme satisfação, da máxima de Lênin que recomenda fazer o adversário lutar contra si próprio. E não houve um só deles que não enxergasse, no sepultamento político do ex-presidente, o prenúncio da iminente ascensão petista.

Já assinalei também, nestes artigos, a facilidade com que, em prol da liberdade de mercado, liberais e conservadores admitem negociar – ou ceder de graça – os princípios morais e culturais que geraram essa liberdade e sem os quais ela não subsiste senão como etapa de transição para o socialismo.

A “direita” deixa-se conduzir porque não tem nenhuma visão ou plano de conjunto, apenas o apego a pontos de detalhe que, de um modo ou de outro, sempre podem ser manejados para encaixar-se na estratégia abrangente da esquerda.

Para que tivesse essa visão ou plano, a direita precisaria ter formado uma genuína militância intelectual habilitada, no mínimo, a acompanhar as discussões internas da esquerda e a prever o curso das manobras estratégicas que ali se preparam.

Mas como esperar que os intelectuais da direita enxerguem o futuro, se não querem nem mesmo olhar para o passado e o presente? Participei de muitos Fóruns da Liberdade, em Porto Alegre – a maior concentração de inteligências liberais e conservadoras que já se viu no Brasil – e jamais ouvi ali uma única palavra sobre o Foro de São Paulo, exceto saída da minha própria boca.

Enquanto os liberais e conservadores discutiam em abstrato o sistema econômico e a estrutura do Estado, a esquerda construía, diante dos seus olhos cegos, a maior e mais poderosa organização política – político-militar, na verdade – que já existiu no continente.

E, cada vez que falo em criar uma intelectualidade, eles me olham como se eu fosse um professor de abstratices, a quem se pode ouvir com reverência polida, mas jamais levar a sério no campo da “prática”, que eles consideram o seu terreno próprio. Como se fosse muito prático teimar no erro e perder sempre.

De quem é a festa?

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 5 de outubro de 2006

Se algo as eleições de domingo demonstraram, foi a monstruosa desproporção entre a esquerda e seus concorrentes, que se tornou cláusula pétrea da regra do jogo político entre nós. A diferença começa nos objetivos mesmos: a esquerda quer e faz tudo para destruir seus adversários, arruinar sua reputação, excluí-los da política, derrubá-los de sua posição social e econômica e assassiná-los psicologicamente, de modo que percam até o desejo de se reerguer um dia. Eles, em resposta, contentam-se com disputar votos muito polidamente, muito delicadamente, com todo o cuidado de não ferir a dignidade do concorrente esquerdista e de preservá-lo intacto para as eleições seguintes.

A esquerda, contra eles, usa tudo e mais alguma coisa. Eles, até quando têm nas mãos uma carga de TNT suficiente para fazer em cacos o prestígio esquerdista, tratam de fazê-la explodir em algum recinto limitado, onde não machuque a estrutura de poder da esquerda, muito menos as bases da sua hegemonia ideológica, mas apenas alvos individuais selecionados, sem dano para o conjunto. O pouco de maquiavelismo impiedoso que se usou contra políticos esquerdistas nos últimos vinte anos veio sempre do PSDB, no fim das contas, ele próprio um partido de esquerda, sem qualquer divergência ideológica séria com os demais que vieram do berço comum, a resistência esquerdista ao regime militar.

Pior ainda: a esquerda luta em todas as frentes, buscando e obtendo o total domínio cultural, moral e psicológico da sociedade, enquanto seus adversários abdicam de tudo isso e consentem docilmente em brincar de política como meninos bem comportados, num campo sociológico previamente delimitado pelo inimigo, de acordo com as regras estabelecidas por ele e amoldando-se passivamente (ou até inconscientemente) aos valores e metas que ele escolheu.

Qualquer vitória eleitoral, nessas condições, é uma bolha de sabão que se desfaz ao primeiro vento mais forte. Poder político sem hegemonia é castelo no ar, é fogo-fátuo, é aparência de poder sem fundamento na realidade social. Fernando Collor e Antonio Carlos Magalhães são exemplos notórios: confiantes na popularidade pessoal, julgavam-se indestrutíveis. Não resistiram ao primeiro soco. Caíram porque não tinham plano estratégico, substantividade ideológica e respaldo cultural. Tinham apenas uma boa propaganda eleitoral.

O bom-mocismo de Geraldo Alckmin, recusando-se a dizer uma palavra contra o Foro de São Paulo, é a imagem perfeita do descompromisso ideológico autocastrador que gera e destrói os Collors e os Magalhães. Alckmin pode até eleger-se, talvez, aproveitando-se de circunstâncias momentâneas que o favorecem. Seis meses depois, estará na lata de lixo da história ou lambendo os pés de seus inimigos em troca de uma sobrevivência.

Na verdade, tudo o que o PT perdeu nestas eleições, perdeu em favor de outros partidos de esquerda, inclinados no momento a ostentar distância da sujeira petista, mas que quase infalivelmente voltarão às boas com o lulismo ao primeiro sinal de perigo geral para a esquerda. On revient toujours à ses premiers amours e um divórcio de mero oportunismo, é ainda mais instável que um casamento de ocasião.

Quando uma população como a de São Paulo, repudiando o lulismo e até tendo o bom senso de dar ao candidato conservador Guilherme Afif uma votação expressiva, põe tudo a perder elegendo senador um mentecapto no qual só se pode votar por piedade, está na hora de a “direita” lembrar que antilulismo não é antipetismo, e antipetismo não é anti-esquerdismo. Do jeito que as coisas vão, até uma derrota de Lula pode representar no fim das contas uma vitória geral da esquerda. O luto político na casa de Dona Marisa pode ser festa no Foro de São Paulo.

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