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Corção, palavrões e a miséria cultural imposta por intelectuais servos da elite

Olavo de Carvalho

Mídia Sem Máscara,  17 de setembro de 2020

Só agora vi um artigo de novembro de 2019 em que um articulista anônimo da “Gazeta do Povo”, do Paraná, chamava o Gustavo Corção de “o Olavo de Carvalho dos anos 60”, com esta amável ressalva: “sem os palavrões”.

Sempre fui leitor e admirador do Corção, mas qualquer semelhança entre nós é aparência enganosa, puramente jornalística. No jornalismo brasileiro é tão raro surgir algum católico anticomunista que, se aparecem logo dois, a impressão geral é a de que se trata de duas versões da mesma pessoa. É pura superficialidade, e aí termina toda semelhança.

O Corção, conhecedor extenso e profundo da Doutrina católica, coisa que nunca fui, deu a toda a sua carreira o sentido explícito de uma apologia da fé, coisa que sempre considerei estar imensamente acima da minha capacidade.

Tudo o que desejei na vida foi investigar certas questões, seja de filosofia, seja da cena política, buscando não a defesa deste ou daquele corpo de princípios e valores, mas a simples solução de alguma dificuldade cognitiva, o esclarecimento de alguma obscuridade.

Mesmo nos meus artigos mais frequentemente rotulados de “polêmicos” – aqueles que dediquei ao Foro de São Paulo –, nunca discursei na clave do “contra” e “a favor”, mas busquei apenas trazer à luz um conjunto de dados essenciais que a mídia e a classe política ocultaram durante dezesseis anos, e sem o qual nada se poderia compreender da política brasileira e latino-americana.

Na área filosófica, o Corção foi sempre um aristotélico-tomista de carteirinha, coisa que nunca me ocorreu tentar ser, e um discípulo devoto do Jacques Maritain, pensador que jamais levei muito a sério nem mesmo como porta-voz do pensamento escolástico do século XX, função na qual o campeão dos campeões, na minha opinião, foi o ainda injustamente mal conhecido Pe. André Marc.

Por fim, os palavrões. Quem vê neles um traço saliente da minha pessoa revela apenas jamais ter lido os meus livros, nos quais eles estão despudoradamente ausentes, e ter antes sabido de mim só por programas de rádio e posts do Facebook. Os que assim agem não são interlocutores intelectuais sérios e sim apenas desprezíveis subjornalistas, se tanto. (Publicado em 28/7).

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Uma distinção fundamental, e que manifestamente escapa a todos os palpiteiros que opinam sobre mim na mídia e na quase totalidade do mundo acadêmico, é a que existe entre um “pensador conservador’, dedicado essencialmente à exposição e defesa de ideais conservadores, e um filósofo propriamente dito, cuja esfera de interesses e realizações transcende infinitamente a do conservadorismo, o qual entra aí como uma parte apenas, e não como centro vivo articulador do conjunto. Tal é, por exemplo, a diferença entre Russell Kirk e Eric Voegelin, ou entre Edmund Burke e Samuel Taylor Coleridge. Não vejo, por exemplo, como denominar de “doutrinas conservadoras” (ou anticonservadoras) as minhas análises de Aristóteles e Descartes, e menos ainda os meus longos estudos sobre o “conhecimento por presença”, tão destramente resumidos no livro do Ronald Robson a sair em breve pela Vide. Como a luta ideológica é o interesse maior ou único daqueles palpiteiros midiáticos e acadêmicos, eles mapeiam o meu pensamento pelo formato do deles próprios, colocando no centro e topo do meu o que é somente o deles próprios, e assim me reduzindo à sua própria e minguada estatura.

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Desde que surgiu o tipo do “intelectual moderno” – sobretudo a partir do século XVIII –, uma cena reaparece de tempos em tempos no cenário histórico: Um vasto grupo de intelectuais próximos dos centros de poder político e econômico instauram, sob pretextos humanitários e moralizantes um padrão de uniformidade medíocre, com todo um vocabulário de chavões e estereótipos, em nome do qual perseguem e sufocam os espíritos criadores da arte e da filosofa, chegando, nos casos mais extremos, a bani-los da vida pública, e enviá-los ao cárcere ou mesmo a matá-los.

Isso está acontecendo no Brasil exatamente agora.

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Quem ainda lê aqueles palhaços que nos anos 90 faziam poses de superioridade infinita ao falar de mim?

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Com capa e título vagamente copiados de livros meus, a obra magna do tal “Meteoro Brasil” foi concebida para fingir-se de crítica eruditíssima ao meu trabalho, mas (1) não discute uma única idéia minha; (2) não cita o meu nome. Uma palhaçada.

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Hoje em dia, o “valor universal” de uma obra significa a sua aceitação por todos os mercados. O capitalismo que se afirma como juiz supremo acima de todos os valores não-econômicos é o capitalismo que os comunistas amam: a mais vasta força imbecilizante que já se viu no mundo.

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Há décadas os “intelectuais de esquerda” fogem do debate e se escondem por trás de patrocinadores capitalistas. Admiradores de Sartre, Habermas, Adorno e similares só o são porque privados de contato com VERDADEIROS filósofos.

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O esquerdismo é uma “cultura de interesses especiais”, que aprisiona seus devotos num círculo estreito de intercomunicações, fechando-lhes o acesso à cultura maior. TODA a universidade brasileira é isso, TODO o Direito brasileiro é isso, TODO o “jornalismo” brasileiro é isso.

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Sempre me horrorizou o número de estudantes que chegavam aos meus cursos trazendo diplomas universitários e ignorando TUDO da história de suas próprias disciplinas, advogados que nunca tinham ouvido falar de Igino Petrone ou Giorgio Del Vecchio, psicólogos que ignoravam Paul Diel ou economistas que não tinham a menor idéia de quem havia sido Werner Sombart.

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Não há limites para o desprezo que sinto por moleques semi-analfabetos que me cobram um diploma universitário.

TODO diploma universitário, no Brasil, é

Um discurso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de setembro de 2015

          

Nada ilustra melhor o estado de coisas numa sociedade do que a linguagem dos seus homens públicos. Aprendi isso com Karl Kraus e até hoje não vi esse critério falhar.
Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou que as Forças Armadas estão conscientes da atual “derrocada dos valores”, mas que sua missão é preservar acima de tudo a “estabilidade” e a “legalidade”.
Ora, se o poder instituído é ele próprio o agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar –, preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição.
Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado, independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.
Quando à segunda expressão, “legalidade”, ela não tem nada a ver com a ordem legal substantiva, já destruída há tempos e que só subsiste na função de referente suprimido: ela visa apenas a marcar a diferença entre os militares de hoje e os de 1964, exigência indispensável do código “politicamente correto” contra o qual o general havia acabado de resmungar umas palavrinhas desprovidas de qualquer efeito objetivo até mesmo sobre o seu próprio discurso.
O general Villas-Boas não é nenhum imbecil e com certeza não é um homem desonesto. O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há outra disponível.
A finalidade dessa linguagem é construir aquilo que Robert Musil e, na esteira dele, Eric Voegelin, chamavam de “Segunda Realidade”, uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Uma vez removida para a Segunda Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína, mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o auto-engano, que passam a vigorar como “ações políticas”, com resultados previsivelmente bem distintos das intenções alegadas.
Os dois milhões de manifestantes que foram às ruas protestar em março e setembro, com o apoio de 93% da população, diziam e berravam da maneira mais clara os nomes dos inimigos contra os quais se voltavam: PT e Foro de São Paulo. Centenas de videos do youtube confirmam isso de maneira incontestável.
A Constituição Brasileira, Título I, Art. 1o., alínea V, parágrafo único, estabelece: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Que significa esse “ou diretamente”? Significa que os representantes eleitos, ocupantes do Executivo e do Legislativo,  são um “poder instituído”, o qual, por definição, não se sobrepõe jamais ao “poder instituinte”, a massa popular que o criou e que conserva o direito de suprimi-lo a qualquer momento pela sua ação direta.
Como, dos 7% que ainda apoiavam o governo àquela altura, 6% o consideravam nada mais que “regular”, o apoio substantivo de que ele desfrutava  era de apenas um por cento. Nunca um governo foi rejeitado de maneira tão geral e avassaladora. Com ele, eram rejeitados também os ajudantes diretos e indiretos que o mantinham no poder contra a vontade do povo: congressistas omissos, juízes cúmplices, mídia chapa-branca.
O povo, em suma, voltava-se frontalmente contra o “sistema” como um todo, sabendo-o aparelhado  a serviço do esquema comunolarápio e do Foro de São Paulo, a maior organização subversiva e criminosa que já existiu na América Latina, empenhada em colocar o roubo, o homicídio, o narcotráfico e a mentira em doses oceânicas a serviço da ambição de poder total, não só sobre o país, mas sobre o continente.
O termo “estabilidade” designa uma qualidade, não uma substância. Estabilidade é sempre de alguma coisa, isto é, de uma ordem ou sistema. Ora, nas passeatas de março e setembro havia claramente duas ordens ou sistemas em confronto.
De um lado, a ordem normal e constitucional, em que a maioria absoluta da nação, manifestando sua vontade de maneira direta e inequívoca, exigia o fim das entidades criminosas, PT e Foro de São Paulo. Do outro lado, o sistema federal de exploração, manipulação, roubo e auto-engrandecimento insano. De qual dessas duas ordens o general desejaria “manter a estabilidade”?
Ele não esclareceu esse ponto, que é a substância mesma do assunto nominal do seu discurso. Preferiu o adjetivo sem substantivo, como aliás é de praxe no Brasil de hoje. Acredita piamente ter dito alguma coisa porque a sua linguagem, coincidindo com os usos gerais do dia, soa bem aos seus próprios ouvidos e aos de todos aqueles que não precisam da realidade, só de palavras.
Não creio ser demasiado pessimista ao prever que, enquanto os homens inteligentes e honestos continuarem falando na linguagem que os charlatães inventaram para seu exclusivo uso próprio, o Brasil continuará vivendo na Segunda Realidade, onde um governo criminoso apoiado por 1% da população constitui a “ordem”, e sua manutenção no poder por juízes e congressistas comprados é a única forma de “estabilidade” possível.

Fundamentalismos em luta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de julho de 2012

  “Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.”

Bocage

A ambigüidade a que me referi no artigo anterior mostra-se ainda mais visível quando o versículo (Rom. 1:26) não é lido isoladamente, mas como continuação lógica daquele que o antecede. Este diz que os homens caíram no pecado quando começaram a “servir mais à criação (ktísei) do que ao Criador”. O contraste com o que vem em seguida não poderia ser mais patente: afinal, o homem peca porque obedece a natureza criada ou porque se rebela contra ela?

À primeira vista, o Apóstolo parece aí imitar o lobo da fábula, condenando o pecador per fas et per nefas.

Mas é impressão enganosa. Paulo não é um ginasiano brasileiro perdido entre as regras da lógica elementar; é um dos grandes escritores da língua grega. A contradição verbal aparente foi o meio literariamente perfeito que ele encontrou para expressar uma tensão que existe objetivamente na própria natureza, a qual é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, a natureza decaída e o símbolo vivo da natureza primordial, anterior ao pecado. O par corresponde mais ou menos à distinção medieval entre a natura naturata (a natureza criada ou produzida, ktísis) e a natura naturans (a essência, a lei interna, physis) que a estabelece. Das duas, só a natura naturata pode decair, enquanto seu modelo primordial permanece intacto, visível em filigrana por trás dos meros fatos naturais dados à experiência sensível. Quando a natureza sensível é tomada como totalidade autônoma, o símbolo assume o lugar do simbolizado, a aparência imediata veda o acesso à realidade profunda que a fundamenta. É assim que, obedecendo a natureza empírica (ktísei), o homem no mesmo ato cai “fora” da natureza primordial (physis): correndo atrás de imagens, afasta-se dos bens verdadeiros que elas refletem.

O versículo contém de algum modo a antevisão profética de todo o processo cultural da modernidade. Amputada da sua dimensão simbólica, reduzida a seus aspectos sensíveis e mensuráveis, a “natureza” tal como concebida pela ciência experimental de Galileu e Bacon corresponde ponto por ponto à natureza decaída tal como Paulo a compreendia, a “natureza escrava” a que se refere o poeta. Obviamente ninguém peca por ir “contra” essa natureza, mas sim, ao contrário, por tornar-se “servo” das aparências que a compõem. As pulsões hereditárias, por exemplo, forças perfeitamente naturais que ordenadas em vista das finalidades superiores da existência fariam de cada ser humano uma imagem personalizada e única da perfeição divina, podem sobrepor-se às exigências do espírito ao ponto de reduzir a alma ao estado de escravidão.

Tomar esse versículo como uma investida unilateral contra a “antinaturalidade” de tais ou quais pecados é achatar indevidamente a sua mensagem, suprimindo a tensão dialética na qual aquilo que é natural num sentido se torna antinatural em outro, dependendo do horizonte de visão mais estreito ou mais amplo do observador.

No caso, o observador é um homem para o qual a realidade superior é algo mais que mero objeto de “crença religiosa”. É alguém que teve a sua própria vida cortada em dois por uma intervenção divina direta e fulminante. É desde o patamar dessa experiência que ele distingue e unifica dialeticamente os dois níveis da “natureza” – uma operação que é inacessível a essas duas criaturas típicas da modernidade: o sensorialista radical e seu irmão inimigo, o crente fundamentalista.

Num sentido estritamente cognitivo, fundamentalismo, como o definia Eric Voegelin, é o vício de achatar os símbolos, fazendo deles signos diretos de fatos ou objetos do mundo físico, sem atinar com a experiência espiritual que medeia entre uma coisa e a outra. Amputadas dessa experiência, até as mais sublimes verdades espirituais podem ser reduzidas a banais erros científicos. O doutrinário ateísta que joga contra a Bíblia fatos da astronomia ou da geologia incorre nesse erro, tanto quanto o crente que condena pecados como “antinaturais” num sentido chapado e uniforme do termo.

Em suas versões mais extremadas, o fundamentalismo leva à confusão pueril entre palavras e coisas, sem a qual nenhum discurso de propaganda demagógica teria credibilidade nem por um minuto.

Felizmente para os demagogos, o homem moderno em geral é quase sempre um fundamentalista. Ateu ou crente, pouco importa. Querem um exemplo? Quando um cristão inflamado acusa o homossexualismo de “antinatural”, o gayzista fanático que o ouve fareja aí a distorção que acabo de assinalar e então acusa o crente de “fundamentalista”, mas anexando ao sentido puramente cognitivo da palavra a acepção de violência terrorista e perseguição estatal  teocrática, com que o termo é usado na mídia quando se refere ao radicalismo islâmico. Ora, os cristãos são, por toda parte, as vítimas preferenciais e inermes do radicalismo islâmico, que os mata à base de cem mil por ano. A confusão de palavra e coisa faz com que os perseguidos, num passe de mágica, apareçam com o rosto hediondo do seu perseguidor. É um prodígio de difamação, mas a coisa não pára por aí: em seguida, o gayzista, sentindo-se ou fingindo-se assombrado por esse fantasma de sua própria invenção, tenta proteger-se dele mediante uma legislação repressiva que proíbe citações bíblicas como se estas fossem atentados mortíferos e eleva o homossexualismo à condição de divindade intangível, ante a qual toda crítica humana deve calar-se, genuflexa e contrita. A política gayzista é toda ela uma confusão fundamentalista de palavras e coisas, mas aqueles que a combatem não podem perceber isso porque estão eles próprios, quase sempre, enredados em confusões fundamentalistas.

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