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O crime desorganizado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de fevereiro de 2015

Em qualquer estudo erudito, o passo primeiro e indispensável é descobrir o status quaestionis, isto é, a evolução histórica das discussões sobre o assunto desde os tempos mais remotos até o seu estado atual. Essa investigação, por sua vez, toma como pano de fundo a visão mais abrangente possível da história das idéias em geral.

Só assim o estudioso fica sabendo onde está, em que ponto do diálogo erudito ele entrou na conversa, a quem está se dirigindo e em que lugar do mapa civilizacional está plantando a sua contribuição, se chega a tanto a sua interferência no caso.
Um exemplo característico é a História da Literatura Ocidental, em que Otto Maria Carpeaux, após narrar com mestria exemplar a evolução dos estilos, dos temas e dos gêneros, encerra o livro com uma revisão das principais histórias – e teorias da história — da literatura, para situar a sua obra no devido contexto temporal e marcar a diferença específica que norteou o seu projeto de escrevê-la.

Só quando um escritor, um historiador, um cientista social ou um filósofo tem essa visão abrangente e consegue situar-se a si próprio dentro dela é que se pode dizer que ele sabe do que está falando. É ela, mais que qualquer outro fator, que marca a diferença entre o profissional e o amador, entre o estudioso sério e o palpiteiro assanhado.

O primeiro a enfatizar esse requisito dos estudos superiores foi Aristóteles, que iniciava sistematicamente as suas investigações por uma revisão das “opiniões dos sábios” sobre o tema em questão.

Essas opiniões, naturalmente, não eram somente respostas diversas dadas a uma mesma pergunta, mas diferentes maneiras de articular a questão mesma, de modo que a sua simples exposição histórica adquiria o sentido dramático de uma formulação dialética do problema em todos os seus aspectos incomensuráveis e contraditórios.

Desde então os recursos para a realização dessa tarefa evoluíram de tal modo, com o advento do sistema bibliográfico internacional, das traduções em massa, da indexação científica e da informação computadorizada, que hoje ninguém mais pode alegar, como desculpa para deixar de cumpri-la, a dificuldade de acesso às fontes.
Status quaestionis e contexto histórico são tão importantes para qualquer investigação em história, ciências humanas, letras e filosofia, que em grande parte dos casos o simples esforço de adquiri-los já traz, implícita, a solução do problema a ser investigado.

Não há exercício melhor nem mais indispensável para o adestramento da inteligência nas grandes questões da cultura, da política, da história e assim por diante.

Também não é preciso dizer que esse é o aspecto mais negligenciado na educação universitária brasileira.

Sem temor de errar, testemunho que, em três décadas de atividade pedagógica destinada substancialmente a uma platéia de estudantes e diplomados das universidades brasileiras, nunca, nem uma única vez, encontrei um aluno que viesse com um conhecimento histórico suficiente da evolução da sua própria área de estudos acadêmicos.

O indício material mais evidente desse estado de coisas era a sua ignorância completa e rasa de autores fundamentais cujas obras e idéias haviam marcado o trajeto evolutivo da disciplina supostamente estudada nos seus cursos universitários. Estudantes de Direito que nunca tinham ouvido falar de Icilio Vanni, Georges Rippert ou Igino Petrone – às vezes nem de Rudolf von Jhering, porca miséria!
Bacharéis em filosofia que nas minhas aulas ouviam pela primeira vez mencionar Louis Lavelle, Xavier Zubiri, Bernard Lonergan, Vladimir Soloviev ou Félix Ravaisson; cientistas sociais para os quais nada significavam os nomes de Pitirim Sorokin, Thorstein Veblen, Luigi Sturzo ou Othmar Spann; mestrandos em literatura brasileira – brasileira, vejam só! — que nada sabiam de José Geraldo Vieira, Alphonsus de Guimaraens Filho, Cyro dos Anjos ou Amando Fontes.

Todos esses faziam até bela figura em comparação com os alunos de psicologia, para os quais sua disciplina pouco ou nada mais continha além de psicanálise e behaviorismo…

Mas os estudantes, é claro, não seriam tão incultos assim se não tivessem aprendido a sê-lo com seus professores.

Outro dia tive, por internet, uma discussão com um professor de física que brandia contra mim a autoridade de Ernst Mach, sem nem de longe se dar conta de que meus argumentos, no episódio, repetiam quase ipsis litteris os desse autor, do qual assim ele provava não saber absolutamente nada além do nome.

Nada digo das dúzias de colegas dele, todos eles senhores doutores, que, vendo-me questionar as noções newtonianas de “espaço absoluto” e “tempo absoluto”, saíram alardeando que eu negava a lei da gravidade: muitos acrescentam, à devota incultura, o mais perfeito analfabetismo funcional.

Esse estado de coisas manifesta-se de três maneiras principais:

(1) Os estudantes repetem a palavra de seus professores semiletrados  como se fosse a autoridade do consenso universal. Quando confrontados a alguma idéia desconhecida, mesmo que tenha alguns séculos de idade ou que seja banal e corrente no exterior, escandalizam-se como crentes devotos repentinamente expostos a uma heresia intolerável.

(2) Reforça-os nessa atitude o prestígio de uns poucos autores, não raro de importância periférica, lidos fora de todo contexto histórico e sem pontos de comparação, cuja palavra é tomada, pelo simples fato de ser recente, como se fosse o cume insuperável da evolução humana, ainda que seja a cópia de alguma idéia milenar ou uma tolice já refutada há séculos.

(3) Apegam-se às crenças correntes no seu campo especializado de estudos como se fossem universalmente explicativas, como se não existissem outras ciências e outras perspectivas capazes de, articuladas ou uma a uma, esclarecer melhor o assunto em debate.

Somados, esses três fenômenos reduzem a produção soi disant científica das nossas universidades a uma caricatura disforme que não exerce, no quadro do mundo civilizado, senão a função de um anti-exemplo grotesco e patético, cuja escassez de citações na bibliografia internacional reflete menos o desprezo dos estrangeiros do que a sua caridosa recusa de contemplar a miséria alheia.

Na mais otimista e rara das hipóteses, encontramos trabalhos escolares quase aceitáveis, que mostram alguma leitura atenta da bibliografia citada mas nada acrescentam ao já arqui-sabido, exceto os erros de gramática, cuja presença nesses escritos é praticamente infalível.

Acrescente-se a esse panorama deprimente o fanatismo político onipresente, fruto ele próprio da ignorância, que reage com exclamações histéricas e ameaças de morte a qualquer argumento adverso mal compreendido, ao mesmo tempo que clama por “diversidade”, “tolerância” e “respeito às idéias divergentes”, sem notar nessa dupla atitude a mais leve contradição – um fenômeno que ultrapassa as fronteiras do puro desastre cultural e entra em cheio no terreno da psicopatologia coletiva.
É de espantar que tantos estudantes, sem jamais ter pensado nos seus deveres de estado ou na dívida de gratidão que têm para com quem paga os seus estudos, gastem tempo e energias preciosas na busca de toda sorte de prazeres fúteis e ainda considerem que é obrigação do Estado fornecer-lhes, de graça, os meios para a satisfação das suas fantasias sexuais mais pueris e grosseiras?

Quando se sabe que todo esse festival de ignomínias é sustentado com o dinheiro suado do trabalhador brasileiro, chega a ser espantoso que tantos observadores se revoltem com a corrupção de políticos e administradores, sem notar que, pelo tamanho e pela constância das suas atividades, a maior máquina de exploração do povo neste país é aquilo que, com otimismo delirante, continua a chamar-se de “educação”.

Vale ainda, hoje mais do que nunca, aquilo que escrevi há quase duas décadas: “A única diferença entre a educação brasileira e o crime organizado é que o crime é organizado.”

Viva Paulo Freire!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de abril de 2012

Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Alguma dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisam responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de “pelos frutos os conhecereis”, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido.

As técnicas que ele inventou foram aplicadas no Brasil, no Chile, na Guiné-Bissau, em Porto Rico e outros lugares. Não produziram nenhuma redução das taxas de analfabetismo em parte alguma.

Produziram, no entanto, um florescimento espetacular de louvores em todos os partidos e movimentos comunistas do mundo. O homem foi celebrado como gênio, santo e profeta.

Isso foi no começo. A passagem das décadas trouxe, a despeito de todos os amortecedores publicitários, corporativos e partidários, o choque de realidade. Eis algumas das conclusões a que chegaram, por experiência, os colaboradores e admiradores do sr. Freire:

“Não há originalidade no que ele diz, é a mesma conversa de sempre. Sua alternativa à perspectiva global é retórica bolorenta. Ele é um teórico político e ideológico, não um educador.” (John Egerton, “Searching for Freire”, Saturday Review of Education, Abril de 1973.)

“Ele deixa questões básicas sem resposta. Não poderia a ‘conscientização’ ser um outro modo de anestesiar e manipular as massas? Que novos controles sociais, fora os simples verbalismos, serão usados para implementar sua política social? Como Freire concilia a sua ideologia humanista e libertadora com a conclusão lógica da sua pedagogia, a violência da mudança revolucionária?” (David M. Fetterman, “Review of The Politics of Education”, American Anthropologist, Março 1986.)

“[No livro de Freire] não chegamos nem perto dos tais oprimidos. Quem são eles? A definição de Freire parece ser ‘qualquer um que não seja um opressor’. Vagueza, redundâncias, tautologias, repetições sem fim provocam o tédio, não a ação.” (Rozanne Knudson, Resenha da Pedagogy of the Oppressed; Library Journal, Abril, 1971.)

“A ‘conscientização’ é um projeto de indivíduos de classe alta dirigido à população de classe baixa. Somada a essa arrogância vem a irritação recorrente com ‘aquelas pessoas’ que teimosamente recusam a salvação tão benevolentemente oferecida: ‘Como podem ser tão cegas?’” (Peter L. Berger, Pyramids of Sacrifice, Basic Books, 1974.)

“Alguns vêem a ‘conscientização’ quase como uma nova religião e Paulo Freire como o seu sumo sacerdote. Outros a vêem como puro vazio e Paulo Freire como o principal saco de vento.” (David Millwood, “Conscientization and What It’s All About”, New Internationalist, Junho de 1974.)

“A Pedagogia do Oprimido não ajuda a entender nem as revoluções nem a educação em geral.” (Wayne J. Urban, “Comments on Paulo Freire”, comunicação apresentada à American Educational Studies Association em Chicago, 23 de Fevereiro de 1972.)

“Sua aparente inabilidade de dar um passo atrás e deixar o estudante vivenciar a intuição crítica nos seus próprios termos reduziu Freire ao papel de um guru ideológico flutuando acima da prática.” (Rolland G. Paulston, “Ways of Seeing Education and Social Change in Latin America”, Latin American Research Review. Vol. 27, No. 3, 1992.)

“Algumas pessoas que trabalharam com Freire estão começando a compreender que os métodos dele tornam possível ser crítico a respeito de tudo, menos desses métodos mesmos.” (Bruce O. Boston, “Paulo Freire”, em Stanley Grabowski, ed., Paulo Freire, Syracuse University Publications in Continuing Education, 1972.)

Outros julgamentos do mesmo teor encontram-se na página de John Ohliger, um dos muitos devotos desiludidos (http://www.bmartin.cc/dissent/documents/Facundo/Ohliger1.html#I).

Não há ali uma única crítica assinada por direitista ou por pessoa alheia às práticas de Freire. Só julgamentos de quem concedeu anos de vida a seguir os ensinamentos da criatura, e viu com seus própios olhos que a pedagogia do oprimido não passava, no fim das contas, de uma opressão da pedagogia.

Não digo isso para criticar a nomeação póstuma desse personagem como “Patrono da Educação Nacional”. Ao contrário: aprovo e aplaudo calorosamente a medida. Ninguém melhor que Paulo Freire pode representar o espírito da educação petista, que deu aos nossos estudantes os últimos lugares nos testes internacionais, tirou nossas universidades da lista das melhores do mundo e reduziu para um tiquinho de nada o número de citações de trabalhos acadêmicos brasileiros em revistas científicas internacionais. Quem poderia ser contra uma decisão tão coerente com as tradições pedagógicas do partido que nos governa? Sugiro até que a cerimônia de homenagem seja presidida pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, aquele que escrevia “cabeçário” em vez de “cabeçalho”, e tenha como mestre de cerimônias o principal teórico do Partido dos Trabalhadores, dr. Emir Sader, que escreve “Getúlio” com LH. A não ser que prefiram chamar logo, para alguma dessas funções, a própria presidenta Dilma Roussef, aquela que não conseguia lembrar o título do livro que tanto a havia impressionado na semana anterior, ou o ex-presidente Lula, que não lia livros porque lhe davam dor de cabeça.

Uma geração de predadores

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de junho de 2011

Desde que me distanciei do Brasil, tenho visto a inteligência dos meus compatriotas cair para níveis que às vezes ameaçam raiar o sub-humano. Não posso medi-la pela produção literária, que veio rareando até tornar-se praticamente inexistente num país que já teve alguns dos melhores escritores do mundo. Meço-a pelas teses universitárias que me chegam, cada vez mais repletas de solecismos e contra-sensos grotescos, pelos comentários de jornal, pelos pronunciamentos das chamadas “autoridades” e, de modo geral, pelas discussões públicas. Em todo esse material, o que mais salta aos olhos não é o vazio de idéias, não é a estupidez dos raciocínios, não é nem mesmo a miséria da linguagem: é a incapacidade geral de distinguir entre o essencial e o acessório, o decisivo e o irrelevante. Não há problema, não há tema, não há assunto que, uma vez trazido ao palco – ou picadeiro –, não seja infindavelmente roído pelas beiradas, como se não tivesse um centro, um significado, um sentido em torno do qual articular uma discussão coerente. Cada um que abre a boca quer externar apenas algum sentimento subjetivo deslocado e extemporâneo, exibir bom-mocismo, angariar simpatias ou votos, como se se tratasse de uma rodada de apresentações pessoais num grupo de psicoterapia e não de uma conversa sensata sobre – digamos – alguma coisa. A coisa, o objeto, o fato, o tema, este, coitado, fica esquecido num canto, como se não existisse, e depois de algum tempo cessa mesmo de existir. A impressão que me sobra é a de que toda a população legente e escrevente está sofrendo de síndrome de déficit de atenção. Ninguém consegue fixar um objeto na mente por dez segundos, a imaginação sai logo voando para os lados e tecendo, embevecida, um rendilhado de frivolidades em torno do nada.

Se me perguntarem quais são os problemas essenciais do Brasil, responderei sem a menor dificuldade:

1) A matança de brasileiros, entre quarenta e cinqüenta mil por ano.

2) O consumo de drogas, que aumenta mais do que em qualquer país vizinho, e que alguns celerados pretendem aumentar ainda mais mediante a liberação do narcotráfico – o maior prêmio que as Farc poderiam receber por décadas de morticínio.

3) A absoluta ausência de educação num país cujos estudantes tiram sempre os últimos lugares nos testes internacionais, concorrendo com crianças de nações bem mais pobres; num país, mais ainda, onde se aceita como ministro da Educação um sujeito que não aprendeu a soletrar a palavra “cabeçalho” porque jamais teve cabeça, e onde se entende que a maior urgência do sistema escolar é ensinar às crianças as delícias da sodomia – sem dúvida uma solução prática para estudantes e professores, já que o exercício dessa atividade não requer conhecimentos de português, de matemática ou de coisa nenhuma exceto a localização aproximada partes anatômicas envolvidas.

4) A falta cada vez maior de mão-de-obra qualificada de nível superior, que tem de ser trazida de fora porque das universidades não vem ninguém alfabetizado.

5) A dívida monstruosa acumulada por um governo criminoso que não se vexa de estrangular as gerações vindouras para conquistar os votos da presente, e que ainda é festejado, por isso, como o salvador da economia nacional.

6) A completa impossibilidade da concorrência democrática num quadro onde governo e oposição se aliaram, com o auxílio da grande mídia e a omissão cúmplice da classe rica, para censurar e proibir qualquer discurso político que defenda os ideais e valores majoritários da população, abomináveis ao paladar da elite.

7) A debilitação alarmante da soberania nacional, já condenada à morte pela burocracia internacional em ascensão e pelo cerco continental do Foro de São Paulo (aquela entidade que até ontem nem mesmo existia, não é?).

8) A destruição completa da alta cultura, num estado catastrófico de favelização intelectual onde a função de respiradouro para a grande circulação de idéias no mundo, que caberia à classe acadêmica como um todo, é exercida praticamente por um único indivíduo, um último sobrevivente, que em retribuição leva pedradas e cuspidas por todo lado, especialmente dos plagiários e usurpadores que vivem de parasitar o seu trabalho.

Se me perguntam a causa desses oito vexames colossais, digo que é a coisa mais óbvia do mundo: quarenta anos atrás, as instituições que se gabam de ser as maiores universidades brasileiras lançaram na praça uma geração de pseudo-intelectuais morbidamente presunçosos, que na juventude já se pavoneavam de ser “a parcela mais esclarecida da população”. Hoje essas mentes iluminadas dominam tudo – sistema educacional, partidos políticos, burocracia estatal, o diabo –, moldando o país à sua imagem e semelhança. Matança, dívidas, emburrecimento geral, debacle do ensino, é tudo mérito de um reduzido grupo de cérebros de péssima qualidade intoxicados de idéias bestas e vaidade infernal. Dentre todas as gerações de intelectuais brasileiros, a pior, a mais predatória, a mais destrutiva.

Se querem saber agora por que os temas fundamentais não podem ser enxergados e discutidos na sua essência, por que as atenções são sempre desviadas para detalhes laterais e por que, em suma, nenhum problema neste país tem solução, a resposta também não é difícil: quem molda os debates públicos, por definição, é a elite dominante, e esta não permite que nada seja discutido exceto nos moldes do seu vocabulário, dos seus interesses, da sua agenda, da sua irresponsabilidade psicótica, da sua ambição megalômana, da sua auto-adoração abjeta.

Enquanto vocês não perderem o respeito por essa gente, nada de sério se poderá discutir no Brasil.

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