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Lógica do abortismo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de outubro de 2010

O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência, abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto, aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.

Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de apreender a noção de “espécie”. Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.

A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de “ser humano” não é uma qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.

O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.

Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.

Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.
Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.

Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades? Uma deformidade mental traz a outra embutida.

Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.

Puns filosóficos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de maio de 2008

Nos vários confrontos polêmicos que tive no Brasil – e, à distância, tenho ainda –, jamais encontrei um único opinador com menos de oitenta anos que tivesse o senso da verdade, mesmo em dose mínima. O que tinham, isto sim, era o apego devoto e crédulo, menos a certas opiniões do que a certas frases, às quais conferiam o título prestigioso de “verdades”, sem jamais ter tido sequer a preocupação de averiguar se o que entendiam por esse termo era algo existente na realidade ou apenas um símbolo da afeição que sentiam por si mesmos e pelo seu grupo de referência.

Sei que pareço exagerar, mas digo apenas o que vi. E, descontado um ou outro octogenário, não vi, mesmo entre os melhores e mais sensatos, de todos os partidos e correntes de opinião, um debatedor sequer que tivesse o sentimento, a vivência, a consciência profunda de que a verdade não é um direito natural, sobretudo não é um direito da juventude barulhenta, mas é uma conquista longa, dolorosa, imperfeita e fácil de perder. O amor à verdade, a busca da verdade, simplesmente não fazem parte da cultura brasileira atual. “Chercher en gémissant” é uma idéia que não ocorre aos nossos compatriotas há pelo menos duas gerações.

Três fatos chamaram a minha atenção para isso.

Primeiro: os sujeitos que menos toleravam objeções eram precisamente aqueles que mais proclamavam a relatividade de tudo e a inexistência de verdades absolutas. O mecanismo mental aí subentendido de maneira quase sempre inconsciente era no entanto simples e claro: livre de quaisquer exigências superiores que pudessem travá-lo, cada um desses fulanos tornava-se ele próprio o único absoluto. Discutir com deuses, os senhores compreendem, é cansativo e inútil.

Segundo: quando reconheciam a existência de “verdades”, apelavam no máximo ao testemunho da “ciência”, com a credulidade de autênticos patetas que ignoravam o caráter altamente problemático de qualquer “verdade científica” e, para dizer o português claro, nem tinham jamais pensado nisso. O símbolo “ciência” havia se tornado, para estas criaturas, um amuleto contra a complexidade do real.

Terceiro: invariavelmente, o fato de que eu houvesse mudado de idéia quanto a um ponto ou outro me era atirado na cara como prova de minha inconsistência e desonestidade, como se persistir no erro comprovado fosse o mais elevado mérito intelectual.

Não existe busca da verdade se primeiro você não fez um esforço sério de compreender o que é a verdade em si mesma, o que é essa qualidade geral misteriosa que, anexada a certas afirmações, tem o dom de as tornar dignas de reverência. Não me refiro a nenhuma especulação lógica sobre o conceito da verdade, especulação que também pode ser conduzida por meios meramente formais e sem nenhum senso da verdade. Refiro-me, isto sim, à investigação anamnética – obrigatória para todos que pretendam opinar em público –, sobre as primeiras experiências que lhes trouxeram o conhecimento direto da distinção entre verdade e mentira, entre verdade e erro. Para quase todo ser humano, essa experiência é a de ocultar uma culpa que ele sabe que tem ou a de ser acusado de uma culpa que ele sabe que não tem. A primeira noção da verdade é a da sinceridade de um indivíduo para consigo mesmo, quando toma consciência de seus próprios atos sem poder apelar ao testemunho de ninguém mais. Todas as especulações filosóficas posteriores sobre a verdade têm de partir daí. Só respeitamos a verdade porque alguma vez a possuímos e tivemos nela nossa única garantia, sem nenhum apoio exterior, e porque daí obtivemos a noção da ordem divina, transcendente a toda autoridade humana. Todo uso da palavra “verdade” que não tenha como referência a memória viva dessa experiência primordial é apenas um flatus vocis, um pum filosófico.

A arte de soltar esses puns é a única coisa que há muito tempo os brasileiros vêm aprendendo nas universidades.

Quatro décadas de fraude

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 17 de abril de 2008

Em 1965, o célebre editor comunista Ênio Silveira lançou o livro de Edmar Morel, O Golpe Começou em Washington . Desde então, cada ano traz uma nova safra de livros, teses universitárias e reportagens que, com pequenas variações, reiteram ad nauseam a mesma tese: o golpe que derrubou o presidente João Goulart foi obra da CIA.

Embora a insistência em buscar novas provas sugira que as provas anteriores não provaram nada, o efeito dessa produção editorial se exerce automaticamente pelo número de obras, que não precisam ser lidas para funcionar como símbolos onipresentes de uma verdade venerável.

No entanto, essa imensa literatura vale rigorosamente nada. Toda ela, de alto a baixo, é puro charlatanismo, ainda mais criminoso quando praticado por historiadores e politólogos de ofício que a adornam com o prestígio do conhecimento acadêmico, da “ciência”.

Ciência – ou mesmo jornalismo, quando digno do nome – não é nunca empilhar indícios em favor de uma afirmativa. Não é nem mesmo organizá-los de modo a dar ares de consistência lógica a essa afirmativa. Ciência – ou mesmo investigação jornalística – é confrontar uma afirmativa com suas opostas, somando os fatores em favor de todas as alternativas com igual isenção, até que uma conclusão se imponha racionalmente contra ou a favor das preferências do investigador.

Se não há confrontação de hipóteses, não há ciência, não há jornalismo, não há conhecimento: há apenas oratória política, propaganda.

A obrigação do confronto é tão indispensável na busca da verdade, que, mesmo quando os próprios fatos não sugiram desde logo uma hipótese alternativa, o investigador tem a obrigação de criá-la como instrumento de aferição.

Mas se a alternativa já está presente, manifesta, visível, declarada no próprio tecido dos fatos, a teimosia em ignorá-la, a fuga à confrontação, a insistência obsessiva em argumentar a favor de uma única hipótese denotam algo mais que parcialidade: denotam a fraude pura e simples.

No caso da alegada participação americana na derrubada de João Goulart, o principal agente da inteligência soviética no Brasil na época, o tcheco Ladislav Bittman, já confessou claramente que ele próprio e seus colaboradores inventaram essa história em abril de 1964, produziram os documentos falsos necessários para dar-lhe verossimilhança e conseguiram impingi-la a toda a grande mídia brasileira (v. Sugestão aos colegas).

Na História, na investigação jornalística ou num inquérito policial, nenhuma prova ou indício tem mais valor que a confissão do acusado. Até o momento, nenhum ex-agente da CIA ou de qualquer órgão do governo americano apareceu confessando intromissão em assuntos brasileiros, malgrado a mania notoriamente endêmica que, na terra de Phillip Agee e Daniel Elsberg, essas criaturas têm de abrir todas as caixas pretas tão logo saem do emprego. Na verdade, nenhuma das obras do vasto gênero aqui considerado jamais forneceu um só nome de agente da CIA comprovadamente lotado no Brasil em 1964. O único nome líquido e certo é o do homem da KGB – e ele confessa ter inventado ponto por ponto a versão que se consagrou como cláusula pétrea da memória nacional.

No mínimo, o golpe de 64 foi um episódio da Guerra Fria, e a Guerra Fria não se travou entre o malvado Império e meia dúzia de desamparados brasileirinhos. Travou-se entre uma democracia capitalista e duas ditaduras comunistas. É impossível descrever honestamente a ação de uma dessas forças num país do Terceiro Mundo sem levar em conta a presença da força contrária. A história da suposta interferência americana no golpe de 64 suprime sistematicamente metade do cenário, e tem dois bons motivos para fazê-lo. Primeiro: a prova da sua mendacidade está guardada na metade suprimida. Segundo: Bittman confessa que tinha a seu serviço algumas dezenas de jornalistas brasileiros. Eles não podem contar essa história direito porque ela é a sua própria história.

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