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Lindeza de estupidez

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de setembro de 2013

          

Comentários enviados às páginas jornalísticas da internet são às vezes um bom indício da opinião dominante em certos meios, principalmente se entendemos que os leitores habituais de um jornal, ou da sua versão eletrônica, têm quase sempre a cabeça feita pelo mesmo jornal.

A Folha de S. Paulo, que é de algum modo o house organ da USP, condensa maravilhosamente, por isso mesmo, o conjunto de chavões, lendas e mitos da esquerda chique, que, para as classes alta e média da capital paulista, constituem o fundamento inabalável da sua visão do mundo.

Eis aqui dois exemplos casuais, mas altamente significativos, enviados ao jornal por ocasião do artigo em que João Pereira Coutinho celebrava o livro de Silvia Bittencourt, A Cozinha Venenosa, ao que parece uma pesquisa interessantíssima sobre um jornal menor da Baviera, que alertou, pioneiramente e em vão, contra o perigo da ascensão do Partido Nazista:

1) “Hitler foi um joguete útil que a direita europeia pensou poder controlar e usar à vontade contra o bolchevismo russo e a esquerda alemã. Saiu de controle e deu no que deu. Agora, renegar isso é miopia ou má fé.”

2) “Na verdade, a direita em geral, por medo do comunismo, apostou em Hitler, desprezando a socialdemocracia que, na ocasião, era a única saída possível para conter os dois extremos.”

Uma inversão tão exata e meticulosa da realidade histórica não se impregna na mente de uma coletividade sem que haja uma campanha de falsificação pertinaz e onipresente, renovada ao longo de muitas gerações.

O que se entende e se repassa no Brasil como “história do nazismo”, tanto nas escolas quanto na mídia, é ainda uma repetição fiel, mecânica e servil da propaganda estalinista posta em circulação nos anos 30 do século 20 e até os dias de hoje aceita, sem exame, pelo beautiful people paulistano, a contrapelo da ciência histórica mundial que já deu cabo dessa patacoada há muitas décadas.

Na verdade, a “direita européia” praticamente inteira – representada, por exemplo, por Churchill em Londres, pela Action Française em Paris, pelo chanceler Engelbert Dolfuss em Viena e pelo Papa Pio XII em Roma – opôs desde o início a mais vigorosa resistência à ascensão nazista e continuou a fazer isso depois de 1939, quando Stálin e Hitler, após uma longa colaboração secreta, se deram as mãos em público para invadir a Polônia.

Nem o Partido Nazista nem o fascismo italiano surgiram como facções conservadoras ou de direita, mas como dissidências internas do movimento revolucionário. A tônica de ambos era restaurar o caráter originariamente nacionalista dos vários socialismos, que, no entender deles, o Partido Comunista havia enlatado à força num internacionalismo enganoso, subsidiado pelo grande capital. Como nenhuma mentira pega sem haver  um fundo de verdade, a visão nazifascista da história correspondia, nesses pontos, à realidade dos fatos:

(1) Os socialismos apareceram realmente associados aos movimentos de independência nacional que sacudiram a Europa desde o início do século 19 (leiam, de Benedetto Croce, Storia d’Europa nel Secolo Decimonono, reed. Adelphi, 1993).

(2) O “internacionalismo proletário” foi realmente uma invenção do Partido Comunista, nascida de uma resolução proposta por Lênin e Rosa Luxemburgo na Segunda Internacional, em 1907, que declarou todo patriotismo ou nacionalismo o inimigo número um da revolução (sem prejuízo de que, mais tarde, Stálin invertesse o discurso, passando a usar os ressentimentos nacionais “anticolonialistas” como os motores do espírito revolucionário).

(3) O grande capital, especialmente americano, subsidiou o movimento comunista com uma generosidade ilimitada, incomparavelmente superior a qualquer ajuda que possa ter prestado a nazistas e fascistas, antes ou depois (v. Antony C. Sutton, The Best Enemy Money Can Buy, Liberty House Press, 1986; Wall Street and the Bolshevik Revolution, reed. Clairview Books, 2011; e sobretudo os três volumes da série Western Technology & Soviet Economic Development publicados pela Hoover Institution).

Uma das constantes mais nítidas e inegáveis da história do movimento revolucionário é que suas facções, quando entram em conflito, o primeiro  recurso a que apelam é acusar-se mutuamente de aliadas e instrumentos do capitalismo, da maldita burguesia.

Os comunistas utilizaram esse rótulo abundantemente contra os anarquistas, os trotskistas, os social-democratas e, como não poderia deixar de ser, contra os nazistas e os fascistas. Só que estes já o haviam usado contra os comunistas muito antes e, sabe-se hoje, até com mais razão. Depois, como o nazifascismo perdeu, foi a propaganda comunista que acabou prevalecendo na memória popular.

O segundo comentário é até mais louco do que o primeiro: a direita negou apoio à socialdemocracia e, assim, entregou o poder a Hitler. Não, porca miséria. Toda a historiografia mundial sabe que foi o contrário, mas a notícia ainda não se espalhou entre os cultíssimos leitores da Folha.

Quem boicotou os socialdemocratas não foi a direita; foi o Partido Comunista, por ordem de Stálin, que via neles a direita quintessencial, o inimigo burguês por excelência, e nos nazistas o “navio quebra-gelo” (sic) apropriado para desmantelar as democracias em torno e, mesmo a contragosto, abrir caminho ao avanço das tropas comunistas, como de fato acabou acontecendo em todo o Leste Europeu.

A credibilidade infinitamente renovada que as lendas historiográficas do estalinismo continuam desfrutando no Brasil depois de passadas oito décadas é um dos fenômenos mais lindos nos anais da estupidez universal.

Moral leninista

 

Compreenda a mentalidade
que vai dominando este país

Olavo de Carvalho


Enviado à redação de Época em 29 out 2001, para a edição de 3 nov. – Não publicado.

“Devemos recorrer a todo tipo de estratagemas, manobras, métodos ilegais, disfarces e subterfúgios”, escreveu Lênin em “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. É uma fórmula geral da conduta esquerdista. Mas o contexto imediato esclarece ainda mais seu sentido e sua atualidade: Lênin disse essas palavras quando se preparava para lançar a NEP, a política de abertura de mercado, que, levando o mundo a crer que o socialismo havia perdido sua vocação revolucionária e truculenta, desarmou as prevenções ocidentais e atraiu para a URSS vultosos investimentos estrangeiros  depois, naturalmente, encampados à força.

Foi a primeira de uma interminável série de camuflagens “light” que o socialismo veio adotando até hoje.

E Lênin concluía: “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.”

Desde então tornou-se praxe nos partidos comunistas manter ao mesmo tempo duas linhas de ação, uma violenta, outra pacífica, uma radical, outra moderada, alternando sua exibição no palco segundo as conveniências do momento e alternando também a modalidade de relação entre as duas alas, que ora pode se mostrar como parceria, ora como concorrência ou antagonismo, de modo que o movimento como um todo pareça fraco e dividido ou unido e forte. Anatoliy Golitsyn, em “New Lies for Old”, mostrou que, na política soviética, essa última alternância refletia o ritmo de consecução da estratégia revolucionária, segundo o conselho de Sun-Tzu: “Mostrar-se fraco quando está forte, forte quando está fraco”.

Essa ambigüidade premeditada pode se personificar em distintas figuras que representem simultaneamente as duas faces do partido  como, no Rio Grande do Sul, Tarso Genro e Miguel Rosetto, correspondentes, mutatis mutandis, a Arlequim e Pierrot ou o Gordo e o Magro. Pode aparecer também como adaptação oportunista às mudanças do ritmo histórico, de modo que as táticas agressivas e desagradáveis sejam postas de lado como inadequadas aos novos tempos, sem ser por isto condenadas moralmente. Mas pode também manifestar-se como ambigüidade no sentido estrito, isto é, como discurso de duplo sentido. Quando o dr. Aloysio Nunes Ferreira Filho declara que “não sabe” se hoje em dia voltaria a recorrer às ações violentas em que se envolveu na década de 70, ao mesmo tempo que enaltece como heróis os que participaram delas, o que ele está dizendo é precisamente que voltará a elas tão logo saiba que é o momento apropriado. Não de trata de uma questão de moralidade, mas de oportunidade.Tal é pois o desempenho que se pode esperar dele no Ministério da Justiça:  “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.” A única esperança de que a violência comunista não volte a reinar para depois acusar de violência a reação das vítimas é que a “abordagem razoável” não alcance os resultados esperados. E isto depende de que cada palavra ambígua do dr. Nunes Ferreira seja decodificada em tempo como ameaça latente. Resta também a hipótese remotíssima de que ele tome consciência da malícia leninista da sua conduta e, sem meias palavras, condene o seu próprio passado, não apenas como passado, mas como foco infeccioso que deve ser ser cauterizado para não supurar nunca mais, no mesmo e exato sentido em que examino minha própria militância comunista não com a nostalgia de de quem afaga paternalmente sua juventude extinta, mas com o realismo de quem confessa um erro moral grave.

Benedetto Croce distinguia entre o arrependimento moral, que condena o próprio ato como intrinsecamente mau, e o “arrependimento econômico”, que não abjura do ato mas apenas de suas conseqüências indesejadas: um ladrão se envergonha de ter roubado, outro de não ter conseguido escapar da polícia. Mesmo o puro arrependimento moral não garante que o criminoso não voltará a reincidir. Mas o arrependimento econômico é quase uma garantia de reincidência.

O leitor precavido

Olavo de Carvalho

Época, 13 de janeiro de 2001

É aquele que desconfia que suas objeções já ocorreram ao autor – e já estão respondidas

A precaução mais elementar, ao ler os escritos de um filósofo, é lembrar que nossas objeções mais imediatas já devem ter-lhe ocorrido e podem estar respondidas, ao menos de maneira implícita, em alguma outra parte de sua obra. Um filósofo é, afinal, um especialista em unidade: raramente ele enunciará alguma proposição solta, sem raiz em princípios gerais e sem uma rede de conexões com a totalidade de suas idéias. Um bom leitor de filosofia não se perde na discussão de detalhes isolados, mas, guiado por um instinto de coerência que já o torna um pouco filósofo, busca por trás de tudo os princípios e fundamentos. Só as objeções desse leitor contam para o filósofo. As demais são irrelevantes como tiros de espoleta, e ele só as responderá por polidez. Pela mesma razão, o filósofo que publique artigos na imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da existência de uma filosofia por trás de cada opinião isolada, terão o bom senso de refrear suas objeções mais afoitas até captar melhor a posição dela no conjunto. Pois, para um filósofo, nenhum assunto, por efêmero e casual que pareça, é solto e independente: cada um remete ao centro desde o qual tudo – ou nada – se explica.

Se o leitor brasileiro não está habituado a essa precaução, é por um motivo muito simples: em geral os indivíduos autorizados pelo Estado a representar em público o papel de “filósofos” não são filósofos de maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que não têm nem o dever nem a competência do olhar filosófico. Tanto isso é assim que, quando aparece algum filósofo de verdade, um Mário Ferreira dos Santos, um Vilém Flusser, alguém enfim capaz de pensar desde os fundamentos, a primeira coisa que fazem é considerá-lo um estraga-prazeres e abster-se religiosamente de prestar atenção ao que ele diz.

Diante do que escrevem esses professores, não é preciso aquela precaução, porque eles não têm um quadro próprio de referência que deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o fundo comum das conversações públicas do dia e podem ser compreendidas pelo simples cotejo com ideologias, modas ou programas partidários. Mas tentar esse enfoque ante as opiniões de um filósofo é cortar as próprias pernas, impedindo-se de chegar a conclusões ou objeções relevantes.

É verdade que filósofos – Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y Gasset – escreveram artigos de jornal, mas nenhum deles logrou a proeza – ou teve a pretensão – de fazer de algum desses artigos uma peça autônoma, destacável do fundo de seu pensamento e passível de ser julgada por si. Autonomia é para romances, contos, poemas. Em filosofia, toda expressão é provisória e requer o acúmulo praticamente interminável de esclarecimentos. Mas ao público brasileiro de hoje falta algo mais que a consciência disso. Falta o sentido mesmo da ligação orgânica entre as asserções e os argumentos que as embasam. Em filosofia – e tudo o que um filósofo escreve é expressão de sua filosofia –, nenhuma proposição significa nada quando considerada independentemente das razões que a ela conduzem. Nas discussões vulgares, ao contrário, cada afirmação vale por si; os argumentos podem torná-la mais aceitável, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes apenas a função de floreados enfáticos, destinados a sublinhar e colorir uma decisão tomada antes e independentemente deles. As idéias em circulação reduzem-se assim a meia dúzia de enunciados gerais simples, fórmulas estereotípicas em torno das quais não há mais discussão além da estritamente necessária para produzir, no mais breve prazo possível, um ardoroso “pró” ou um indignado “contra”.

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