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A onipotência da tagarelice

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de outubro de 2010

Os signatários do recente manifesto de acadêmicos em favor da candidatura Dilma Rousseff apresentam-se, com modéstia exemplar, como “professores e pesquisadores de filosofia”. Não ousam denominar-se filósofos porque no fundo sabem que não o são nem o serão jamais, mas também porque esperam que a mídia, por automatismo, lhes dê essa qualificação imerecida ao publicar a porcaria com o nome de “Manifesto dos Filósofos”, conferindo-lhes o título honroso no mesmo ato em que os dispensa do vexame de atribuí-lo a si mesmos.

A filosofia surgiu na Grécia como um esforço de apreender e dizer o “ser” das coisas. A palavra “ser” implica o reconhecimento de uma realidade objetiva estruturada, inteligível, comunicável de homem a homem. O empreendimento filosófico voltava-se diretamente contra uma tradição de ensino para a qual o ser e a realidade objetiva não contavam, podendo ser livremente inventados pela força da palavra e da persuasão. Essa tradição denominava-se “sofística”.

Decorridos vinte e cinco séculos, a denominação inverteu-se. O que se chama de filosofia em muitas universidades, especialmente no Brasil, é a convicção de que não existe realidade nenhuma e tudo é construído pela linguagem. Quem ouse praticar a filosofia no sentido que tinha em Sócrates, Platão e Aristóteles, é marginalizado como reacionário indigno de atenção. A sofística, com o nome de “desconstrucionismo”, é o que hoje ostenta nos documentos oficiais o nome da sua velha inimiga, a filosofia.

Atribuindo psicoticamente à fala humana o poder criador do Logos divino, Martin Heidegger, militante nazista aposentado e um dos ídolos do establishment acadêmico, declara: “A linguagem é a morada do ser” – como se o ato de falar existisse fora e acima da realidade, e não dentro dela.

No mesmo espírito, Ernesto Laclau, no livro “Hegemonia e Estratégia Socialista” – talvez a proposta política mais influente nos meios esquerdistas das três últimas décadas – ensina que o partido revolucionário não precisa representar nenhum interesse social objetivo e nenhuma classe existente: pode criar esse interesse e essa classe retroativamente, pela força do discurso e da propaganda. O PT, que surgiu como partido de estudantes e socialites, gabando-se por isso de ser a voz das pessoas mais inteligentes (v. o estudo feito em 2000 pelo cientista político André Singer: http://epoca.globo.com/edic/20000717/brasil3a.htm), criou com dinheiro do governo a classe pobre que o apóia, e passou desde então a ser o partido dos desamparados e analfabetos, condenando os outros partidos como representantes da elite letrada. Na mesma lógica, a “democracia”, segundo Laclau, é um “significante vazio”, ao qual o partido revolucionário pode atribuir o sentido que bem lhe convenha. O PT designa com esse nome a aliança entre o governo e as massas alimentadas com dinheiro dos impostos, aliança montada em cima da destruição de todos os poderes intermediários, a começar pela mídia. Que essa aliança e essa destruição, historicamente, tenham sido a estratégia essencial de todos os regimes tirânicos do mundo (leiam Bertrand de Jouvenel, “Do Poder: História Natural do seu Crescimento”), é um detalhe irrisório: o “significante vazio” admite todos os conteúdos – com a vantagem adicional de que o eleitorado, ao ouvir a palavra “democracia” nas bocas dos próceres petistas, imagina que se trata de democracia no sentido tradicional do termo, porque não leu Ernesto Laclau e não sabe que eles a usam como palavra-código de duas caras, com um significado esotérico para os iniciados e outro, exotérico, para enganar os trouxas.

Não espanta que os servidores das duas maiores mentiras do século XX – o comunismo e o nazismo – tenham acabado por aderir maciçamente à teoria da onipotência criadora das palavras. Essas ideologias juravam basear-se numa descrição completa e objetiva da realidade, capaz de fundamentar a previsão acertada e científica do curso da História. Quando a História as desmentiu da maneira mais acachapante, os adeptos de ambas as correntes, em vez de penitenciar-se de seus erros e crimes, preferiram redobrar o blefe: apelaram ao desconstrucionismo e proclamaram que a realidade não existia mesmo, que tudo era uma questão do jeito de falar.

Também não espanta que, nessas condições, os inimigos de ontem se tornassem amigos, unidos no mesmo projeto sublime de trocar os fatos por uma ficção verbal eficiente. É por isso que tantos comunistas e socialistas amam de paixão os nazistas Martin Heidegger e Paul de Man. Nada une as pessoas mais apaixonadamente do que um projeto solidário de ludibriar todas as outras.

O Manifesto, por exemplo, declara que “Dilma Rousseff tem sido alvo de campanha difamatória baseada em ilações sobre suas convicções espirituais e na deliberada distorção das posições do atual governo sobre o aborto.”

Em que consiste a “campanha difamatória”? Em dizer que a candidata petista defende a liberação do aborto. E a “deliberada distorção das posições do atual governo sobre o aborto”? Consiste em dizer que o governo quer liberar o aborto.

Desde quando publicar verdades bem documentadas é “campanha difamatória”? A lógica dessa rotulação é a mesma que o conhecido “professor e pesquisador de filosofia”, João Carlos Quartim de Moraes, seguiu quando se gabou de ter cumprido pena de prisão pelo assassinato do capitão americano Charles Chandler e em seguida saiu posando de difamado ao ver que, iludido por essa declaração, da qual não tinha motivos para duvidar, eu o qualificava de assassino político condenado pela Justiça. Segundo Quartim de Moraes, acreditar em Quartim de Moraes é crime. Mudar de significado no dia seguinte é um dos mais deliciosos privilégios da mentira.

Do mesmo modo, quem assista ao vídeo http://www.youtube.com/watch?v=TdjN9Lk67Io, e ali veja e ouça Dilma Rousseff expressando seu apoio irrestrito à liberação do aborto, se tornará automaticamente um difamador se acreditar que ela disse o que disse.

No mesmo espírito do manifesto, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos jura: “O PNDH-3 não trata da legalização do aborto. Sua redação sobre o tema é: ‘Considerar o aborto como tema de saúde pública, com garantia do acesso aos serviços de saúde’.”

Todo leitor no pleno uso de suas faculdades mentais compreende imediatamente que “garantir o acesso ao serviço de saúde” é até mais do que legalizar o aborto: é sustentá-lo com dinheiro público. Mas compreender o sentido originário do texto é crime, porque, segundo a escola de pensamento dominante, nenhum texto tem sentido originário nenhum: o que vale é o sentido retroativo que a parte interessada lhe atribui quando vê nisso alguma vantagem. Os signatários do Manifesto foram educados na mentalidade “desconstrucionista” que apaga a realidade e o sentido para lhes substituir a “vontade de poder” (além de Heidegger, eles adoram Nietzsche) e a estratégia da tagarelice onipotente. É compreensível que, nessas condições, desejem ardentemente passar por filósofos, mas, no íntimo, se sintam um pouco inibidos de declarar que o são.

Ludibriando os católicos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de outubro de 2010

Ao ver que ia perdendo o apoio da Igreja à sua protegida Dilma Roussef, cujo abortismo radical e persistente nem os desmentidos de última hora, nem as abjetas e blasfematórias encenações de fé católica da candidata puderam camuflar, o sr. Presidente da República, em desespero, decidiu recorrer ao crime eleitoral explícito: usando o Estado como instrumento de chantagem, ameaçou romper a concordata do governo brasileiro com o Vaticano caso o eleitorado católico se recuse a continuar sendo otário do PT, como o foi servilmente durante tantas décadas por obra e graça de comunistas vestidos de bispos.

O próprio Lula, algum tempo atrás, reconheceu que devia sua carreira política ao eleitorado católico, que aqueles bispos e a mídia cúmplice haviam logrado enganar cinicamente, encobrindo o programa comunista e abortista do PT com a imagem beatificada e perfumada de “Lulinha Paz e Amor”.

O fim da farsa, embora tardio e parcial, não só privou Dilma Roussef da anunciada vitória no primeiro turno, mas serviu para desmascarar a autoridade religiosa postiça de tantos sacerdotes e prelados que só entraram na carreira eclesiástica para aí realizar o programa estratégico de Antonio Gramsci: esvaziar a Igreja de todo o seu conteúdo espiritual e usá-la como dócil instrumento da política comunista. A Teologia da Libertação é o braço mais ativo desse programa e, como ninguém ignora, o catolicismo de Lula – e do PT em geral – é o da Teologia da Libertação. Não o de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Não deixa de ser útil lembrar que a Igreja, desde sua fundação, teve de lutar menos contra os seus inimigos ostensivos do que contra os seus falsificadores. Tal é, aliás, a definição de “heresia”, palavra que hoje tantos usam sem conhecer-lhe o significado: não qualquer doutrina anticatólica, ou não católica, e sim a falsa doutrina católica oferecida indevidamente em nome da Igreja. Lembrem-se disso quando algum professorzinho aparecer alardeando que a Igreja “perseguia doutrinas adversas”. Heresia não é divergência de idéias, é crime de fraude. Da Antigüidade até hoje, gnósticos, arianistas e tutti quanti jamais hesitaram em fingir-se de católicos para vender, sob roupagem inocente, as idéias mais opostas e hostis aos ensinamentos de Cristo. Com freqüência, obtiveram nesse empreendimento sucessos espetaculares, embora passageiros. Ainda no século XIX praticamente todos os seminários da França e da Alemanha ensinavam, com o nome de teologia católica, uma pasta confusa de idéias cartesianas, iluministas e românticas, na qual os jovens aprendizes, iludidos pelos prestígios intelectuais do dia, não enxergavam nada de maligno. Foi só a decisiva intervenção do Papa Leão XIII que acabou com a palhaçada, mediante a bula “Aeterni Patris” (1879), que restaurou o ensino da teologia católica tradicional. Se quiserem uma boa resenha desses fatos, leiam a obra em quatro volumes de Etienne Couvert, “De la Gnose à l’Ecumenisme” (Éditions de Chiré, 1989).

No século XX, à medida que o movimento neotomista inaugurado por Leão XIII reconquistava o prestígio intelectual da Igreja, os eternos falsários abdicaram temporariamente da propaganda aberta e voltaram-se, em massa, para a estratégia da infiltração discreta, praticada em escala industrial a partir da década de 30 graças à iniciativa da KGB (leiam o depoimento de Bella Dodd em “School of Darkness”: há cópias circulando pela internet). Foi só em 1963, no Concílio Vaticano II, que, sentindo-se protegidos pela atmosfera de mudança, voltaram a vender impunemente, ao público geral, seus simulacros de cristianismo.

A fundação do PT e toda a sua carreira de crimes inigualáveis não foram senão a extensão remota desses fatos a um país periférico. O PT sempre foi a encarnação viva de um catolicismo de fancaria, concebido para ludibriar os fiéis e induzi-los a trabalhar pelo avanço do comunismo.

Não espanta que a própria entidade que personifica esse catolicismo ante o público seja, ela própria, uma fraude publicitária: a CNBB fala em nome da Igreja e posa, ante os fiéis, como expressão suma da autoridade eclesiástica, mas não é sequer uma entidade da Igreja, é uma simples sociedade civil sem lugar nem função na hierarquia católica. Os bispos, individualmente, têm autoridade para falar em nome da Igreja. A CNBB, não. Quando a CNBB repreende um bispo, ela falsifica e inverte a hierarquia. Está na hora de os fiéis, em massa, tomarem consciência disso.

Lógica do abortismo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de outubro de 2010

O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência, abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto, aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.

Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de apreender a noção de “espécie”. Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.

A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de “ser humano” não é uma qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.

O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.

Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.

Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.
Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.

Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades? Uma deformidade mental traz a outra embutida.

Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.

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