Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de julho de 2005

Continua dando encrenca a decisão da Suprema Corte americana que na semana passada permitiu desapriopriar residências em favor de grandes projetos de desenvolvimento encabeçados por empresas privadas. Os juízes que a aprovaram estão sendo chamados de “Robin Hoods ao contrário”, porque tiraram os bens dos pobres para dá-los à aliança do Estado voraz com empresas oportunistas, e por toda parte ganha apoio a campanha “Tire as Mãos da Minha Casa”, lançada pela ONG Institute for Justice. Uma advogada do grupo, Dana Berliner, disse; “O povo americano está furioso com essa sentença, mas ainda tem meios de fazer alguma coisa contra ela.”

Coincidência ou não, a juíza Sandra Day O’Connor, que votou contra a decisão, pediu aposentadoria justamente quinta-feira passada. A essa altura, pode parecer estranho, mas os conservadores estão festejando. Numa entrevista coletiva sexta-feira à noite,Tony Perkins, presidente do Family Research Council, um influente think-tank empenhado na defesa dos valores americanos tradicionais, explicou que a saída da dra. O’Connor dá ao presidente Bush a oportunidade de começar a cumprir sua promessa de nomear juízes mais afinados com os conservadores. Foi com intenção idêntica que Ronald Reagan nomeou a dra. O’Connor em 1981, mas ela acabou namorando com os “liberals” e só se redimiu na semana passada, quando tomou posição firme a favor da propriedade privada.

Não é possível entender nada da política americana sem tirar da cabeça os estereótipos consagrados da mídia brasileira que identificam os conservadores com o grande capital e os “progressistas” do Partido Democrata com as causas populares. Para saber a quem um partido serve, é preciso descobrir quem o sustenta. No Partido Democrata, três quartos do dinheiro de campanha vêm de milionários, só o quarto restante dos pequenos contribuintes. A proporção é exatamente inversa no Partido Republicano. O símbolo mais eloqüente dessa diferença é que na Suprema Corte os dois representantes máximos do conservadorismo são justamente Clarence Thomas e Anthony Scalia, um negro e um filho de imigrantes italianos, enquanto os herdeiros das famílias tradicionais de Nova York e da Filadélfia se alinham com a esquerda politicamente correta.

Além disso, a linha divisória de esquerda e direita nos EUA tem menos a ver com economia do que com cultura e moral (questões como o aborto, o casamento homossexual, o ensino da religião, o anti-americanismo acadêmico, etc.). Nesse sentido, a população americana é decididamente conservadora, e está cada vez mais irritada com o fenômeno do “ativismo judicial” – a capciosa estratégia esquerdista de revolucionar a sociedade sem precisar mudar as leis, apenas invertendo o sentido delas por meio de sentenças dos tribunais (o “direito alternativo” brasileiro não é senão a macaqueação terceiromundista dessa moda infame). O próprio presidente Bush aludiu a isso no seu último discurso sobre o Estado da União, quando disse que os juízes devem limitar-se a aplicar as leis em vez de usurpar as atribuições do Legislativo.

Já antes da sentença desastrada, a Suprema Corte havia se tornado alvo de suspeita ao ordenar que as inscrições com os Dez Mandamentos fossem retiradas de todos os tribunais americanos. As pesquisas de opinião mostraram que 65 por cento da população desaprovaram totalmente essa medida e 14 por cento só a aceitavam com reservas. Na semana seguinte, a pilhagem das casas de New London em favor do Estado comedor de impostos transformou o desagrado geral num sentimento que fica entre o desprezo e a revolta.

Um comentarista afirmou que a decisão tinha sido “o maior insulto à América desde o processo Roe versus Wade”. Nesse processo, que pela primera vez nos EUA legalizou o aborto-a-pedido, a decisão baseou-se no testemunho da vítima, que dizia ter engravidado num estupro. Decorridas três décadas, a própria testemunha pediu a revisão do processo, confessando que não sofrera estupro nenhum mas fôra subornada pelo movimento abortista para mentir no tribunal. A Suprema Corte não quis reabrir o processo: foi a pressão popular que a obrigou a fazê-lo. A má-vontade que tenta sufocar até a verdade tardia ilustra, mais uma vez, o verso de Murilo Mendes que contrasta “as velozes hélices do mal e as lentas sandálias do bem”.

Nenhum cidadão americano ignora que a Suprema Corte já se tornou há muito tempo a fortaleza do ativismo judicial. Há quem goste e quem deteste isso, mas o fato ninguém nega. Há muitos livros a respeito; o mais famoso é Men in Black. How The Supreme Court Is Destroying America, de Mark R. Levin. Como no Brasil ninguém leu esses livros, nada mais natural do que a reação do leitor Ivanilson Zanin (palmeiraezanin@bol.com.br ) à minha coluna da semana passada: “Faltou apenas que esse jornal dissesse que os juízes norte americnos, no caso ‘a fina flor do esquerdismo judicial supremo’, como afirmam vocês, são filiados ao Partido dos Trabalhadores, lembrando aquele episódio dantesco no qual Paulo Maluf disse que o promotor suíço que investiga suas suas contas bancárias na Suiça era petista.” A dificuldade de discutir com brasileiros, hoje em dia, é essa. Opiniões baseiam-se em premissas factuais. Quando um indivíduo desconhece os fatos, só lhe resta concebê-los à imagem e semelhança da sua fantasia. Quando milhões de pessoas desconhecem os fatos, a fantasia coletiva que os substitui adquire uma espécie de autoridade, e cada indivíduo que se apóia nela acredita-se firmemente instalado na realidade. Daí a segurança, o ar de superioridade quase divina com que zomba daquilo que ignora, sem saber que não faz de palhaço senão a si próprio. Mas o sr. Zanin acrescenta à zombaria a insinuação maliciosa: “Gostaria de sugerir um slogan para este jornal: Diário do Comércio – um jornal a serviço do PSDB.” Isso é mais ridículo ainda, embora o sr. Zanin seja o último a percebê-lo. A defesa incondicional da propriedade privada, que é a tônica do Diário do Comércio , não poderia fazer dele o porta-voz apropriado de um partido filiado à Internacional Socialista.

O teste final

Congregando mais de cem partidos e uma dúzia de gangues de narcotraficantes e seqüestradores milionários, o Foro de São Paulo é a organização política mais poderosa que já existiu na América Latina. Há uma década e meia, no Brasil, na Argentina, no Equador, na Venezuela, em Cuba, no Uruguai, na Bolívia e em outros países do continente, não se vota uma lei, não se lança um programa, não se inaugura uma campanha social que não esteja dentro dos cânones aprovados pelo Foro.

Tal é a entidade cujo conhecimento a mídia brasileira, criminosamente, tem sonegado ao público, e cuja existência alguns deformadores de opinião, como aquele patético sr. Luis Felipe de Alencastro, da Veja , chegaram a negar até data muito recente.

O Foro foi fundado em 1990 por Lula e Fidel Castro. Sem a afinação estratégica entre os partidos de esquerda, que ali se aperfeiçoa em reuniões mais ou menos anuais, a ditadura Chávez ou a ascensão eleitoral de Lula teriam sido impossíveis. O próprio Lula reconheceu isso, ao afirmar, no seu discurso de posse, que devia sua eleição “não só a brasileiros mas a outros latino-americanos” (por incrível que pareça, essa confissão explícita da influência estrangeira nas eleições nacionais não suscitou escândalo nem curiosidade entre nossos jornalistas). Quanto à aliança Lula-Castro-Chávez, que está na base de tudo isso, o próprio Lula, com exemplar cara-de-pau, disse ao entrevistador Boris Casoy que ela era apenas invencionice de “um picareta de Miami”, alusão desrespeitosa ao escritor cubano Armando Valladares, recordista mundial de permanência na cadeia, sob torturas, por delito de opinião.

Mas a história não era invencionice, nem havia começado com Valladares.

No Brasil, muito antes disso, o primeiro a denunciar a existência do Foro, bem como sua submissão estratégica aos ditames da esquerda chique norte-americana, (os Clintons e tutti quanti ), foi o advogado paulista José Carlos Graça Wagner, que havia reunido uma impressionante documentação a respeito mas foi impedido, por doença grave, de prosseguir seu trabalho de investigação.

Nunca um jornal brasileiro ou programa de TV deu espaço ao dr. Graça Wagner para expor o que sabia do Foro de São Paulo. Quando tive uma breve oportunidade de acesso aos documentos, passei a escrever sobre o assunto na Zero Hora de Porto Alegre, no Globo , na Folha de S. Paulo , no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara e em duas revistas americanas, sendo em seguida reforçado pela colaboração de Graça Salgueiro, Carlos Azambuja, Heitor de Paola e outros comentaristas marginalizados pela grande mídia. As reações que encontramos variaram entre o silêncio covarde, as explosões de ódio e as desconversas cínicas que apresentavam o Foro como uma inofensiva arena de debates sem poder decisório.

Mais tarde, o dr. Constantine Menges, analista estratégico do Hudson Institute em Washington DC , escreveu a respeito do Foro vários artigos, que os luminares da mídia brasileira, numa lição medonha de antijornalismo, trataram de desmentir sem publicá-los, espalhando as histórias mais escabrosas sobre a pessoa do autor e tapando antecipadamente a boca do acusado.

Agora, nada mais fácil do que averiguar quem disse a verdade e quem mentiu. Chegou a hora do teste final. Como o filósofo que andando provava o movimento, a décima-segunda assembléia do Foro inexistente, celebrando seus quinze anos de atividade jamais realizada, está reunida em São Paulo desde sexta-feira até hoje, na sede do Parlatino, na Barra Funda, à av. Auro Soares de Moura Andrade, 564. Quem não quiser ir até lá pode tirar a dúvida lendo o programa dos debates no site do próprio PT.

Desse modo, não apenas caem por terra quinze anos de negações mentirosas, mas vai para o brejo também a desconversa acima mencionada, já que, à imitação do que vinha fazendo em todas as suas assembléias, o Foro já anunciou — para hoje — o seu momento culminante: a redação das Resoluções que orientarão por um ano os partidos filiados. Mostra assim que não existe só para discutir à toa, mas para decidir e ser obedecido.

Significativamente, as FARC e o MIR chileno, as duas organizações criminosas tão ativas nos encontros anteriores, e cuja colaboração com o PT no quadro do Foro os apologistas do petismo negavam contra toda evidência, abstiveram-se de comparecer à festa. Honroso sacrifício! Sua presença, nesta hora em que toneladas de sujeira petista estão vindo à tona, teria sido mesmo uma inconveniência. Algum jornalista, cansado de ser bom menino, poderia até mesmo ceder à tentação abominável de fazer perguntas.

Festa

Vou hoje a Virginia Beach para ver a queima de fogos, os concertos de bandas, a alegria nacional de um país que tem amor-próprio e razões para isso. A diferença entre os EUA e o Brasil começa aí: naquele, a festa mais popular é o Dia da Independência; neste, a baderna geral que celebra a fuga às obrigações, a abdicação da realidade. São galáxias de distância entre um patriota com bandeira na mão e um folião bêbado vestido de baiana.

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