Apostila do Seminário de Filosofia

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

NB – As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto repetitivas, acabaram tomando toda a primeira metade de aula em razão de perguntas dos alunos. Como o intuito destas apostilas é documentar o mais fielmente possível a exposição oral, julguei melhor conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir direto para o parágrafo “Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles”, sem prejuízo da compreensão do argumento central. – O. C.

A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato de que cada estudioso toma como centro da sua reexposição ou reconstrução do pensamento de Aristóteles os pontos que lhe parecem mais importantes, sem perguntar se o próprio Aristóteles concordaria. Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no sentido de que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto, podemos partir de dois pólos extremos, das duas interpretações mais antagônicas. Estas são, de um lado, o trabalho de Franz Brentano, da metade do século passado; do outro, o trabalho de Werner Jaeger. Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase numa visão estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que reconstruiu através dos textos o que teria sido a evolução biográfica do pensamento de Aristóteles. Ora, entre um pensamento que se surge como um sistema perfeito e acabado e um pensamento que evolui no tempo, através da luta do filósofo consigo mesmo, dificilmente podemos ter uma conciliação perfeita. Vai ter de haver uma arbitragem entre as duas visões. A mim me parece que as duas interpretações antagônicas são igualmente possíveis e úteis. Não precisamos optar entre elas e também me parece que é um pouco nonsense este debate que por quase cem anos ocupou os estudos aristotélicos, para saber se a filosofia de Aristóteles é um sistema ou algo que evoluiu no tempo. Certamente ela é as duas coisas. Então usaremos uma dessas interpretações como antídoto da outra, e vice-versa.

Em seguida, esbocei os princípios do método que aqui será usado. O primeiro aspecto deste seria tentar conciliar todas as perspectivas opostas possíveis a respeito de Aristóteles. Pegá-las todas como exemplos de visões possíveis e tentar chegar a uma síntese em que nada de substancial se perca. Em segundo lugar, teríamos de compensar a relativização historicista. O que vem a ser isto? É o seguinte: no momento em que estamos vivendo, as posições que tomamos, as opiniões que temos, nos parecem decisivas para os fins da vida real. Quando passa muito tempo e aquelas questões já não são mais atuais, as tomadas de posição começam a ser relativizadas: eram tomadas em termos absolutos, agora são tomadas em termos relativos à situação de dentro da qual surgiram, e referidas a um momento que já passou. Não somente as opiniões são relativizadas, mas as próprias questões a que elas respondem também. Por exemplo, se você tomar um conflito histórico entre católicos e protestantes tal como aparecia quatro séculos atrás, verá que hoje pode nos parecer que as tomadas de posição que para aquelas pessoas eram fundamentais e absolutas para nós são meramente secundárias e relativas. A questão, para nós, já não é optar entre catolicismo e protestantismo, mas compreender por que aquelas pessoas tinham de fazer essa opção. A questão tornou-se para nós, por assim dizer, metalinguística: questionamos a questão, em vez de tentar resolvê-la. Outro exemplo: durante cem anos assistimos a um conflito entre capitalismo e comunismo, e, na hora em que um deles praticamente se dissolve, parece que a questão também se dissolve, e já nos parece distante e inverossímil que ela tenha parecido tão urgente, tão vital a milhões de pessoas. No confronto com o comunismo, quanta tinta não rolou, quantas palavras não foram proferidas, quantas posições não foram tomadas em milhares de setores derivados, em função deste conflito básico que determinava o enfoque principal? Não só era preciso optar entre capitalismo e comunismo, como esta opção determinava as soluções que dávamos a questões de ordem ética, estética, prática, etc. Num transcurso de dez anos, a questão já não parece essencial. Para que nós entendamos que as pessoas tenham podido discutir, emocionar-se, matar e morrer por essa questão, temos de referi-la à situação da qual nasceu. Com isto, tudo fica relativizado. Relativizado quer dizer referido ou condicionado a uma situação. Estas tomadas de posição que para aqueles indivíduos eram tão importantes, para nós só existem relativamente a uma situação que não existe mais. Ora, se adotamos só e exclusivamente esse enfoque para as questões da filosofia, estas se tornam também meros dilemas vividos por homens do passado, e não são mais questões vivas para nós. É por isto que, ao menos em história da filosofia, o historicismo tem graves inconvenientes. O historicismo é uma filosofia que, pretendendo tudo explicar pela história, torna irrelevantes todas as questões fundamentais. Pois, se todas as questões só têm importância quando referidas a uma determinada situação no tempo, então as atuais também não terão importância daqui a algum tempo. Para o historicismo, todas as questões e todos os conhecimentos são gêneros perecíveis. É verdade que o interesse pelas questões e a forma de concebê-las muda com o tempo, mas não se pode elevar a critério teorético esse simples fato consumado. De um ponto de vista teorético, duas questões, uma colocada por um pensador do séc. V a. C., outra colocada por nós hoje, podem ser rigorosamente a mesma, se as essências designadas por seus conceitos forem as mesmas, pouco importando a passagem do tempo e as diferentes maneiras de “sentir” a questão nas duas épocas: a demonstração do teorema de Pitágoras é a mesma para Pitágoras e para nós. A abolição da esfera teorética e sua absorção na esfera do fato consumado são os erros do historicismo. É em razão destes erros que o historicismo desvia o eixo das questões, dos objetos sobre que elas versam para as motivações psicológicas, ideológicas, etc., que levaram os homens a se interessar por elas, e isto produz às vezes confusões temíveis. Se você pegar duas teorias científicas opostas, por exemplo, no famoso debate em que se envolveu Pasteur a propósito da geração espontânea — como surgiam os microorganismos? — , verá que, segundo uma teoria vigente na época, apareciam sozinhos, brotavam do nada. Pasteur dizia que não, que tinha de haver determinadas condições prévias para que eles pudessem surgir. Esta questão hoje para nós está resolvida. Ora, quando Pasteur e seus adversários tomavam posição, faziam-no em função do problema dos microorganismos, e não em função do problema de como interpretar sua época histórica. Como para nós o problema dos microorganismos está resolvido, e só nos resta compreender a época histórica de Pasteur, de certa forma invertemos a questão e a colocamos de cabeça para baixo. O que era importante para os personagens não é mais importante para nós. As idéias em jogo, para nós, só têm importância como expressões de um determinado momento histórico, e não em si mesmas. Ora, se levarmos esta posição às últimas consequências, todas as doutrinas científicas, inclusive matemáticas, nunca mais dirão respeito à realidade objetiva que elas estão discutindo, e serão apenas expressões das idéias que as pessoas tiveram num certo momento. No entanto, está claro que a demonstração que Pasteur fez da inexistência da geração espontânea continua teoreticamente válida hoje exatamente como no momento em que ele a apresentou pela primeira vez, e sobre a veracidade teorética — ou falsidade teorética — de uma demonstração a passagem do tempo não exerce a mais mínima influência. É esta intemporalidade das verdades teoréticas que o historicismo faz perder de vista, como se uma conta de 2 + 2 = 4 devesse ter diferentes resultados em distintas épocas históricas.

Se você pegar a geometria de Euclides, do ponto de vista historicista não interessa saber se ela está certa ou errada, mas só a correspondência entre aquela geometria e as demais idéias vigentes naquele tempo. O resultado é que o historicismo acaba por abolir todas as ciências, menos a história, ou pelo menos por submeter todos os critérios científicos de veracidade à veracidade histórica. Por exemplo, as doutrinas filosóficas, doutrinas sobre a física, sobre as ciências da natureza, sobre as fórmulas matemáticas – são todas relativizadas, referidas a momentos no tempo.

Mas acontece que doutrinas matemáticas não dizem respeito à história, e sim a entidades matemáticas. Doutrinas físicas também não dizem respeito à história, mas ao mundo físico. Se nós, estudando doutrinas físicas do passado, as encararmos apenas como expressões do momento histórico, nunca podemos esquecer que aqueles que as emitiram não tinham esta perspectiva, não as olharam por aí. Para um físico do século XVI, as idéias dele não são sobre a história do século XVI, são sobre a natureza. O historicismo levado às últimas consequências esvazia as questões de modo que não faça mais sentido discutir se suas respostas estão certas ou erradas.

Se um diz que a Terra é plana e outro que a Terra é esférica, naturalmente os dois pretendem ter razão, e certamente um deles tem, ou ambos têm, ou nenhum tem, objetivamente falando. No entanto, ambas as respostas provêm de um determinado quadro histórico, o que prova que o ponto de vista histórico não pode arbitrar esta questão. Do ponto de vista historicista interessa apenas que numa certa época havia um ambiente propício a que se pensasse que a Terra era plana, e que noutra época as condições inclinaram o homem a pensar outra coisa. Conhecer essas condições em ambos os casos não nos dirá se a Terra é plana ou esférica.

Para você entender isto mais concretamente, examine com os olhos de hoje as questões que foram problema para você dez ou quinze anos atrás, e veja como essas questões se tornaram indiretas e metalinguísticas. Se a moça vai casar com um sujeito, e chega alguém e diz: “Não case com este sujeito, ele é um vigarista, estelionatário, um Anão do Orçamento, etc.”, ela chora, se sente muito mal, e tem de tomar uma posição. Ou aceita a denúncia, ou a rejeita. Naquele momento, tudo que lhe interessa é saber se aquela denúncia é verdadeira ou falsa, objetivamente falando. Mas vamos supor que na semana seguinte ela conhece outro sujeito mais interessante, casa com ele e esquece o primeiro. Aí aquela questão não interessa mais. Quanto mais tempo passe, menos interessará saber se o sujeito era estelionatário ou não, mas a moça pode ainda parar e pensar: “Por que naquela época eu sofri tanto com aquela questão?” Ela vai ter de explicar o interesse que teve por este problema em função do seu estado psicológico na época. Isto é que se chama relativizar historicamente. A questão perde a sua importância objetiva, é esvaziada e absorvida numa outra questão que já não diz respeito ao seu conteúdo objetivo, mas aos motivos subjetivos do seu surgimento. Então, do ponto de vista do historicismo, não interessa saber se a Terra é esférica ou plana, interessa saber por que, numa certa época, as condições culturais, psicológicas etc. levaram as pessoas a pensar que era plana, e em outra época que era esférica.

Isto equivale a uma espécie de negação implícita de todas as formas de conhecimento que não sejam históricas. Uma tribo de índios pensa que fazendo determinada dança vai cair chuva. Numa outra época e noutro lugar, acha-se que a chuva cai por motivos completamente diferentes, de ordem eletromagnética. Historicamente, não interessa saber quem tem razão. Interessa só saber qual o elo de coerência entre estes dois pensamentos e os seus respectivos ambientes culturais. Ora, a dança da chuva tem raízes histórico-culturais tanto quanto as têm a explicação eletromagnética. Se conhecermos extensivamente essas condições para ambos os casos, ainda assim não saberemos por que cai a chuva.

O advento da ciência histórica e o historicismo

O historicismo é uma maneira de ver que foi inoculada na mente ocidental no século passado, desde que se formou a ciência da história. A formação da ciência histórica a partir dos séculos XVIII e XIX, com Giambattista Vico, Edward Gibbon, Ranke, Savigny e outros gênios imensos, é uma das grandes conquistas da humanidade. Mas deixou um efeito colateral: o historicismo. A história como empirismo, como técnica prática, já era conhecida desde a antiguidade. Mas como ciência, tal como a conhecemos hoje, começa a ser formulada nos fins do século XVIIII e começo do XIX. É um progresso imenso do conhecimento humano. A partir daí, você vai adquirindo uma perspectiva temporal mais ou menos correta do que se passou antes. Começa-se a ter preocupação com a exatidão da reconstituição dos fatos, através de uma quantidade de técnicas de pesquisa histórica: crítica dos textos, dos testemunhos, epigrafia, numismática etc. – uma quantidade de técnicas de investigação histórica que se aprimoram muito neste começo do século passado e montam este monumento que é a ciência histórica de hoje – uma ciência de enorme precisão, quase uma ciência exata. Mas junto com a formação dessa ciência vem o efeito colateral. Quando uma ciência faz sucesso, os outros ramos do saber querem imitá-la. Os modos de pensar que são característicos da ciência histórica acabam então contaminando todas as outras ciências e também a filosofia. Como acontecera antes com a física. Na Renascença, o sucesso de Newton, Galileu etc. contaminava todo mundo, todos começaram a pensar em termos físicos, levando os modelos da física para todos os setores do conhecimento. No século XX, todos pensam informaticamente. O sucesso, primeiro, da lógica matemática, e, depois, da informática, que é filhote dela, faz os modelos lógico-matemáticos e informáticos serem adotados para todos os fins e em todas as ciências: há modelos informáticos em biologia, em neurologia, em economia, em antropologia. No momento eles parecem ter uma força explicativa muito grande, parecem nos dar a visão da realidade mesma, mas no futuro eles também serão relativizados. Os modelos sempre ajudam em alguma coisa, mas criam o perigo do que chamo ilusão retroativa. O processo é este: Um indivíduo inventa uma máquina destinada a imitar alguns processos do cérebro humano. Esta máquina chama-se computador, e funciona. Retroativamente, começa-se a explicar o cérebro humano como se ele fosse uma imitação do computador, e não o computador uma imitação de cérebro. Isto aconteceu na Renascença com o aperfeiçoamento da arte da relojoaria. O relógio de bolso foi inventado pelos beneditinos na Idade Média. Na Renascença, começaram a vender relógio de bolso para todo mundo. Logo em seguida, começa-se a explicar o funcionamento do corpo humano como se ele fosse um mecanismo de relógio. O homem inventa um modelo imitado a partir de alguma função dele mesmo, e em seguida ele se explica a si mesmo por esta função, e a função pelo modelo que a imita. Um caso de aprendiz de feiticeiro. Fica fascinado pelo que ele mesmo inventou e acha que aquilo tem um poder explicativo, que o rabo é capaz de abanar o cachorro. Não podemos esquecer que todos os equipamentos e todas as ciências são invenções do homem. E como disse o Cristo: “O homem não foi feito para o sábado, e sim o sábado para o homem”. A ciência também foi feita pelo homem para o homem e ele tem o direito de usar dela como bem entenda, e nunca pode esquecer que uma ciência é um conjunto de procedimentos que ele mesmo inventou para conhecer algo, e que poderão ser substituídos por outros amanhã ou depois se houver uma maneira melhor de conhecer aquilo. Portanto, não existe a ciência que possa ser modelo universalmente válido para as outras, nem modelo que possa explicar a coisa pela qual se modela.

Métodos que foram inventados para estudar História, se aplicados para estudar outro assunto, podem render alguma coisa, mas nunca tão bem como para estudar a própria História. Mas ao longo dos tempos o que vemos é que toda ciência que faz sucesso imprime o seu modelo a todo o universo cultural. O historicismo é um filhote da ciência histórica. Ora, a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos matemáticos. Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo. Se você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um lado ele expressa um conjunto de relações que se dão dentro de uma determinada figura geométrica – o triângulo retângulo –, mas por outro lado, é um pensamento que um certo sujeito teve num certo momento da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que chamamos objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se refere (a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo aspecto subjetivo ou histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber se a soma dos quadrados dos catetos dá o quadrado da hipotenusa ou o triplo do quadrado da hipotenusa. O que interessa é que num certo ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um tal Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele.

O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e solapando todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão chamado Antonio Gramsci, teórico do Partido Comunista, que inventou o “historicismo absoluto”. Isto significa que todas as ciências, todos os conhecimentos são apenas expressões de momentos históricos e a única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção de verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal época, em tal sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para a sociedade naquele momento. Gramsci é tido em alta conta por muitos. Mas quando você entra num esquema de pensamento como o de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa nenhuma, e quanto menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e quanto mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de anti-educação.

A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo que o homem faz é incompleto. Os homens morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou há contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte prossiga o trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e compreender para além dele, se possível. Mas hoje em dia há certas doutrinas filosóficas, ou melhor, ideológicas que não se destinam propriamente a ser compreendidas. Destinam-se a obscurecer as inteligências e a substituir a intelecção pessoal e direta por um sentimento de pertinência a um grupo ou partido ou igreja que é, ele sim, o sujeito coletivo encarregado de ter as intelecções. Assim, cada membro se dispensa de buscar a compreensão pessoal e as provas, seguro de que nos escalões superiores há sempre alguém que sabe o que ele não sabe. Antonio Gramsci é um protótipo do sujeito que não escreve para ser compreendido, mas para ser obedecido por quem não compreende. Aliás ele próprio também não se entendia, porque em seu pensamento não há propriamente o que entender, do ponto de vista teorético, mas somente o que obedecer. O historicismo absoluto é a absolutização do tempo. Ora, o tempo é uma relação entre momentos. Então, o historicismo absoluto é a absolutização do relativo, ou a relatividade absoluta, ou a relativa absolutidade. E o que quer dizer isto? É uma proposta que não pode ser compreendida. Se os elementos da relação nada são em si mesmos e considerados fora da relação, então é a relação que os constitui, mas como poderia uma relação entre nada e nada produzir alguma coisa? Gramsci, como muitos outros marxistas, confunde relação e totalidade. Dissolve as substâncias individuais numa rede de relações que é tomada, em si e por si, como a verdadeira realidade, como se uma relação considerada independentemente de seus elementos não fosse apenas uma abstração lógica. A “História” é assim divinizada como única realidade, como se toda história não fosse história de alguém, como se uma história pudesse ser sujeito de si mesma. Mas o gramscismo já é o historicismo febril.

É claro que o historicismo não é todo loucura. É um dos grandes movimentos de idéias do Ocidente moderno, uma coisa digna de todo respeito. Porém tem seus limites. Só serve para você entender história, saber por que os homens pensaram isto ou aquilo em determinado momento, mas não para entender os objetos a respeito de que eles pensaram. Senão, seria admitir que a história comeu todas as demais ciências. Ela passa a ser física, fisiologia, matemática – tudo, enfim: uma única superciência que abole todas as demais. Mas, se a história tem a pretensão de ser a ciência universal e come todas as outras, cada ciência vizinha pode ter a mesma pretensão. Que campos na realidade estão dentro de quais, quais estão contíguos, quais hierarquizados – isto é problema grave, não pode ser resolvido na base de uma ciência comer outras. Se o historiador acha que a ciência dele é suprema, o físico tem o mesmo direito de achar que o fundamento de tudo está na física, e que a história não é senão uma pseudociência. Chega um terceiro e diz: “Não é nada disto, é tudo um problema de linguística. Porque para falar de física e de história vocês usam signos”. Aí pega as leis da gramática e mostra que todas as proposições da física e da história não passam de arranjos gramaticais e semânticos – e é uma verdade, tanto quanto é verdade que as leis da física são acontecimentos históricos e que os acontecimentos históricos se desenrolam num mundo regido pelas leis da física. Estes são os vários imperialismos das várias ciências, cada um querendo comer o outro. Assim como há o historicismo, temos o fisicismo, o linguisticismo, o matematicismo etc etc. Cada uma destas hipóteses faz sucesso porque obtém alguns resultados bons – mas depois começa a ampliar desmesuradamente seu campo de aplicação até virar uma metafísica, ou pseudometafísica. É claro, no entanto, que nenhuma ciência em particular pode, por si, fundamentar uma metafísica.

Imaginem então o que o historicismo não faz com alguém que morreu há mais de dois mil anos. Se ele relativiza até o que está acontecendo hoje, imagine o que se passou tanto tempo atrás. Você pega tudo que o sujeito falou, coloca numa distância formidável, refere tudo ao meio histórico-social, psicológico etc., e reduz todo o pensamento dele a um acontecimento histórico que se deu numa outra cultura, num outro tempo, com outros interesses, e que afinal de contas não é verdadeiro nem falso porque naquele tempo os padrões de veracidade e falsidade eram outros que não os de hoje, isto torna impossível discutir se afinal de contas Aristóteles ou Platão ou outro qualquer tinha razão naquilo que afirmava. Porém um pensamento que já não podemos julgar verdadeiro ou falso não tem mais importância efetiva, é apenas uma curiosidade histórica, uma peça de museu tornada inútil e incompreensível. O historicismo pode, por essa via, chegar a nivelar descobertas valiosas e bobagens puras, achatando a ambas como “fatos históricos”. Aristóteles, por exemplo, foi quem inventou a lógica tal como a concebemos. Ele inventou quase todas as ciências que conhecemos – a história da filosofia, a biologia, a fisiologia, a anatomia; toda a nossa nomenclatura de ciência é uma criação de Aristóteles. Este mesmo sujeito que fez tudo isto, num dado momento declara que a mulher tem mais dentes que o homem. Um sujeito desta envergadura falando uma asneira destas! Pois, do ponto de vista historicista absoluto, vale a mesma coisa a contagem aristotélica dos dentes e o conjunto da ciência aristotélica, já que foi o mesmo Aristóteles que produziu ambas as coisas, no mesmo ambiente histórico e sob a ação das mesmas causas históricas.

É claro que você pode explicar o surgimento da geometria na Grécia em função das condições culturais ambientes. Mas isto explica a origem da geometria, não seu valor cognitivo. Este só pode ser avaliado por meios geométricos, não históricos. Como faço para saber se o teorema de Pitágoras está certo? Estudo a origem histórica do teorema de Pitágoras ou a demonstração geométrica desse teorema? Saber quais as condições em que foi gerada a idéia nada me diz sobre se ela é verdadeira ou falsa. As idéias falsas têm uma origem histórica, tal como a têm as verdadeiras. No dia em que Aristóteles atinou com a estrutura do silogismo – o raciocínio em três etapas, em que dadas duas premissas, tira-se uma conclusão – devia haver alguma condição externa, psicológica que o predispunha a isto. E no dia em que contou errado os dentes da sua mulher, também. Teve causa a primeira como a teve a segunda coisa. Historicamente dá na mesma explicar a asneira ou a grande descoberta. Há um grande repertório destas asneiras. Sto. Anselmo diz que, plantando-se um escorpião, nasce uma vaca. Santo Anselmo é um dos grandes gênios da filosofia, e fala uma coisa destas! Há para isto alguma causa histórica e biográfica, como as há para os sutis argumentos metafísicos que o mesmo Anselmo produziu num momento de mais lucidez. O ponto de vista histórico só diz o que as pessoas fizeram, porque fizeram e com que fins. Não diz se as ações e as idéias são sensatas ou insensatas, se estão certas ou erradas.

Outros preconceitos: sociologismo e antropologismo

Do mesmo modo, mais tarde, quando se desenvolvem as ciências sociais, sociologia e antropologia, também surge um imperialismo destas. Você refere tudo ao quadro social, às famosas classes sociais, proletariado, burguesia etc. Dá para você pegar todo o conjunto do saber de um determinado momento e referi-lo à estrutura de classes, encontrar as analogias entre ele e a ideologia da classe dominante. Assim. tomando meras analogias estruturais como se fossem nexos de causa e efeito, você pode “provar” que existe uma biologia burguesa, uma física burguesa, como existe uma biologia proletária, uma fisiologia proletária e assim por diante.

Desde que usado com modéstia e articulado com outros critérios, o critério das classes sociais pode ser esclarecedor, até certo ponto. Certas maneiras típicas de montar o universo da ciência de fato parecem estar associadas a determinadas classes sociais. Vemos por exemplo que existe uma filosofia medieval, feita praticamente por membros do clero (os universitários faziam parte do clero, a universidade era uma casta letrada separada do restante da sociedade), e isto produz um tipo de ciência. Mais tarde, começa a surgir um outro tipo de intelectual que já não está na universidade, o intelectual palaciano, da aristocracia, não mais do clero. Existe uma diferença de conteúdo entre a ciência de uns e outros, assim como uma diferença de estrutura global e de perspectiva. Portanto a hipótese das classes sociais não é um absurdo. Mas ela está evidentemente limitada por duas coisas:

1. As classes sociais não são o único fator que conta. Há, por exemplo, o fator nacional. Só um cego não percebe que, se há um saber burguês ou proletário ou clerical, há também um saber germânico, ou francês ou anglo-saxônico.

2. Saber se determinada descoberta científica é fruto da ciência clerical, aristocrática, burguesa ou proletária não me diz se essa descoberta é verdadeira ou falsa. Julgar a veracidade dos conhecimentos em função de sua origem social é cúmulo do sociologismo. Este sociologismo chegou a produzir alguns fenômenos grotescos no século XX. Na União Soviética a genética de Mendel até a década de 40 era proibida por ser genética burguesa. Havia um geneticista marxista chamado Lissenko, cujas teorias foram endossadas pelo Estado soviético a título de genética proletária. Lamentavelmente, neste caso, como aliás em tantos outros, a burguesia é que tinha razão. E hoje em dia ninguém mais fala em Lissenko, a não ser como exemplo do mal que o pensamento ideológico pode fazer à ciência.

Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum sucesso moldam a cabeça de todo mundo. O historicismo se torna tanto mais poderoso quanto mais distante no tempo está seu objeto. É mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos atrás como expressão de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa idéia para saber se é verdadeira ou falsa.

Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil explicar a dança da chuva em função dos costumes e outras instituições dessa tribo que aprender a fazer a dança da chuva para ver se funciona. Depois que você explicou tudo aquilo antropologicamente, e reduziu tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a visão da natureza, que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do corpo de crenças daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para qualquer um, e evidentemente a eficácia da dança sobre a natureza deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que de física mágica) e não por fatores sociológicos.

Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram queimadas. Os inquisidores mandavam matar as bruxas porque estavam persuadidos de que a bruxaria funcionava, desencadeava efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir colheiras. Quem praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o antropólogo ou historiador e explica: são “crenças da época”. Acreditamos portanto que todo o fenômeno da bruxaria e da sua perseguição pode ser compreendido dentro do campo sociológico, ou antropológico, como mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois chega outro sujeito e estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o estudo Mudanças Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o fenômeno da bruxaria com base nas descobertas fisiológicas de Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é realmente possível matar uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática da bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de uma sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade física que é a mesma para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a história ou a antropologia relativizou, é reabsolutizado, revalidado pela fisiologia.

A vacina contra tudo isto é entender que todas as ciências são legítimas no seu próprio campo e alguma coisa delas se pode aproveitar no campo vizinho, mas nunca tudo. Quanto mais distante no tempo e quanto mais estranha é a cultura de onde vem uma idéia, mais fácil é relativizá-la ou historicizá-a, justamente porque o sentido objetivo dessa idéia nos escapa; e, neste sentido, historicizar ou sociologizar essa idéia é apenas uma forma científica de ignorância.

Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles

O pobre Aristóteles, colocado 2.400 anos atrás, imaginem a desgraça historicista que fizeram com ele! Tanto que há quase duzentos anos no Ocidente moderno ninguém mais discute se esta ou aquela tese aristotélica é verdadeira ou falsa, sensata ou absurda. Só se discute a “interpretação histórica” de Aristóteles. E particularmente se discute se o sistema aristotélico é um todo fechado ou se, ao conrário, o pensamento de Aristóteles evoluiu no tempo. Enquanto isto, não se discute se o próprio conteúdo do pensamento de Aristóteles é verdadeiro ou falso. Estão trocando o estudo da filosofia de Aristóteles pelo da história da filosofia de Aristóteles.

Todo estudo de filosofia do século XVIII para trás, em qualquer faculdade de filosofia deste país, é feito quase que exclusivamente pelo lado historicista. Todos os pensamentos perderam a atualidade e você só os estuda como expressões da sua época. Mas vale a pena você estudar os pensamentos que outros tiveram durante séculos para depois não saber se tais pensamentos são verdadeiros ou falsos? É claro que o estudo histórico tem sentido mas não tem sentido abolir todas as outras perspectivas em nome da perspectiva histórica, porque isto é afinal absolutizar o historicismo e esquecer que ele também é um produto histórico, relativo portanto.

Jean Jacques Rousseau fez a teoria do bom selvagem: “O homem no estado de natureza era bom; veio a sociedade e o corrompeu.” Podemos estudar isto do ponto de vista interno para saber se esta doutrina é verdadeira ou falsa, ou podemos estudá-la historicamente. Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na cabeça de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios, inclusive do Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera simpática em relação aos índios. Fazia um ou dois séculos que havia um crescente afluxo de índios para a Europa e Rousseau naturalmente viu um destes índios numa feira, ouviu o falatório e naturalmente lhe ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função do ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa? Saber que Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição ajuda a julgar a veracidade da idéia?

Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica sabendo por que fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia, mas desenvolve uma atitude leviana em que não se interessa mais por saber se as idéias são verdadeiras ou falsas. Este é um dos principais motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As pessoas “curtem” as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas, rejeitando outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame quanto à sua veracidade. A filosofia aí tende a tornar-se um deleite mental, ou um depósito de argumentos para uso das ideologias, uma técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito a respeito do real.

A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é totalmente falsa. Há idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas esferas mais relativas da vida. A esfera mais relativa é a esfera moral. As idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma comunidade que tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a procriação – isto não existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos, ou metafísicos, ou biológicos, como queiram, mas não são culturais. Não sendo culturais, não podem mudar com as mudanças de cultura. Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer forma de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas coisas correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as formas de casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há alguma cultura onde não exista casamento de espécie alguma? Casamento, comércio, preservação da vida são princípios universais que nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto gêneros, não têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa também não têm história. Tem história a descoberta desta idéia, mas não a idéia mesma.

Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis metafísicas – não caberia especular isto agora.

Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história da filosofia. Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e para isto temos o o dever de fazer uma série de discussões metodológicas preliminares, deixando tudo bem esclarecido.

Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender historicamente, que há pensamentos de Aristóteles que não podemos entender em função de sua época e nem da personalidade de Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente para seus objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não somente da história, mas da ciência à qual essa idéia pertence. O historicismo é um dos pais do relativismo generalizado que hoje impera. As pessoas estão seguras de que todas as idéias sempre mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse um verdadeiro dogma. Não interessa agora a discussão sobre o fundamento destes princípios imutáveis, se é ontológico, se é natural, – mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad Lorenz diz que a perda da capacidade de perceber princípios universais é um sinal de decadência biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por exemplo: em quase todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra mãe têm as mesmas raízes. A letra M em mãe é universal. Em pai, BPV ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é produto da história, da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre uma língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não tenha sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm uma história mas nem tudo nas línguas tem história.

O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem duzentos anos é recente. Importante é que ele é vigente ainda, e determina a maneira de as pessoas pensarem. As pessoas acreditam naquilo como se fosse a realidade mesma e, pior, como se todo mundo sempre tivesse pensado assim. Tudo o que a gente não sabe de onde surgiu nos parece a realidade mesma. O valor dogmático do historicismo provém de que ele esquece que ele mesmo é uma moda histórica.

O exagero historicista nos estudos aristotélicos. Sua origem.

Por outro lado, não podemos esquecer que, nos estudos sobre Aristóteles, o historicismo surge em reação a uma espécie de exagero contrário – o exagero sistematista. Aconteceu o seguinte: Aristóteles escreveu basicamente três tipos de escritos; os que se destinavam à publicação, dos quais se tiravam várias cópias; os escritos que eram apostilas e anotações de aulas, destinados aos alunos; e alguns escritos que eram para seu próprio uso. Destes três tipos, só o segundo sobreviveu – as anotações de aula. Os outros dois tipos, pessoais e publicados, desapareceram. Isto quer dizer que aproximadamente uns cinquenta anos depois da morte de Aristóteles os livros publicados dele já estavam começando a desaparecer; mais tarde não sobrou nada.

No começo da era cristã, séculos I, II, só tinham sobrado os tratados, os textos científicos que eram usados em aula. Ora, a evolução que o pensamento de Aristóteles vai sofrendo ao longo do tempo se manifestaria sobretudo na diferença entre os rascunhos da maturidade e os escritos publicados, obras da juventude. Destas só sobraram fragmentos e citações. Ora, se desapareceram os escritos da juventude, você não tem mais traços de uma evolução, só aparece o produto final. Então, tem-se a impressão de que Aristóteles nasceu com sua filosofia pronta e acabada. O sistema está pronto e não se compõe de partes que se vão dialeticamente formando ao longo do tempo; compõe-se não de partes sucessivas, como numa história, mas de partes simultâneas como num organismo. Toda a interpretação medieval de Aristóteles é feita exclusivamente em cima dos tratados e é uma interpretação organicista, vê o pensamento de Aristóteles como se fosse um organismo completo. Foi só depois, com a redescoberta de fragmentos de escritos de juventude e com a reconstituição a partir destas citações que foi possível ver que Aristóteles nem sempre tinha pensado assim. E daí surge a idéia historicista, que por sua vez tende a se absolutizar e a negar qualquer caráter orgânico e sistêmico ao pensamento de Aristóteles, subdividindo-o em “fases” que são como que várias filosofias diferentes.

O confronto das duas maneiras de pensar se dá sobretudo nos dois últimos séculos. Com as primeiras conquistas da ciência histórica nascente, naturalmente aparece uma interpretação historicista de Aristóteles contra a qual reage Franz Brentano. Este produz aos 24 anos de idade – caso de precocidade raríssimo em filosofia – a melhor exposição da organicidade, da unidade do pensamento de Aristóteles no livro Da Significação do Ser em Aristóteles, que se torna o texto clássico desta interpretação. No nosso século, na década de 20, aparece a obra de Werner Jaeger que representa a outra corrente, ou seja o historicismo.

Estamos cercando Aristóteles por fora – até agora nada falei do conteúdo do pensamento de Aristóteles. Estamos falando primeiro do que os outros pensaram que ele era. Por isso digo que é um personagem múltiplo e ao longo da história foram sendo criados novos Aristóteles, de acordo com interesses de época. Para corrigir este desvio historicista, temos de fazer um recuo em sentido contrário ao que faz o historicismo. Este faz com que as idéias, referidas aos seus momentos no tempo, recuem e fiquem distantes de nós, percam a atualidade. Teríamos de fazer o contrário, revigorar sua atualidade, olhando-as não como idéias surgidas num determinado momento no tempo, mas como idéias que fossem válidas para nós agora. Ou seja, não basta perguntar o que nós hoje pensamos do que Aristóteles pensou há 2400 anos atrás, mas também o que Aristóteles pensaria de nós hoje. E esta opção não é impossível. Aristóteles era gente, pertencia à mesma espécie biológica que nós, não podia ser tão radicalmente diferente de nós e não tem sentido fazer que o distanciamento temporal de dois seres se sobreponha à sua identidade de espécie. Ou seja, entre um boi antigo e um boi moderno pode haver muitas diferenças. Um pode ter mais proteínas, ser mais cuidado, de uma raça que se formou depois – mas no fundo é tudo boi. Aristóteles é gente como nós – esta é a primeira exigência do nosso método. Em segundo lugar, Aristóteles, como qualquer ser humano, vivia no tempo e sabia que ia morrer e que depois disto ia continuar a existir gente neste planeta. Portanto, como todo ser humano, ele deveria ter alguma expectativa sobre o que deveria acontecer depois. Se prolongarmos, ampliarmos esta expectativa por 2400 anos, obteremos o julgamento que Aristóteles faria de nós, assim como podemos nos julgar partindo das expectativas que tínhamos quando crianças ou adolescentes. Este método de fazer com que o julgamento seja de dupla via é o único que pode pode dar equilíbrio e senso de justiça às nossas conclusões. Se absolutizamos um ponto de vista, o do “nosso” tempo, relativizando todos os outros tempos – o que estamos fazendo? Criamos uma espécie de cronocentrismo. Fala-se muito em etnocentrismo, mas pior é o cronocentrismo – achar que o nosso tempo é soberano, como se antes dele não houvesse existido outros e como se ele não estivesse destinado a passar também. Não basta ver as outra épocas com o olho da nossa, temos de ver a nossa com os olhos das outras, senão ficamos cegos, perdemos o fio da continuidade da existência humana. Para fazer estas duas operações é que fiz a lista dos estudos aristotélicos. Vamos estudar brevemente, antes de entrar no conteúdo do pensamento de Aristóteles, a evolução do que pensaram sobre ele ao longo do tempo, examinar por onde o olharam, que questões se levantaram, o que pareceu importante e desimportante, essencial ou acidental na sua obra em cada época. Como o remontaram ou dsmontaram e que soluções deram aos pontos obscuros da sua doutrina.

A variação aí é tão grande que podemos ir não só da escola sistematista para a historicista, mas podemos levantar ainda um outro contraste. Durante muito tempo o pensamento de Aristóteles pareceu o sistema mais completo que existia. Hoje em dia a tese dominante é a de Pierre Aubenque, que diz: “O pensamento de Aristóteles é incompleto e incompletável”. Como viemos parar longe de Brentano! Afinal, o pensamento de Aristóteles é um organismo que se formou e evoluiu no tempo ou é uma estrutura firme e acabada desde o princípio? É um sistema completo e fechado ou é o esboço de um plano que não chegou a se realizar? É um sistema completo ou um projeto incompletável? No confronto entre sistematistas e historicistas, completistas e incompletistas, a impressão que fica é que é impossível entender Aristóteles. As pessoas o entendem das maneiras mais diversas. Um lê: “Aristóteles diz que isto é quadrado”. E outro: “Ele assegura que é redondo.” E um terceiro: “Ele diz que é um triângulo.” Isto é para dar uma idéia de como achar a verdade pode ser difícil.

Aula II – Parte II

 

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