Olavo de Carvalho

República, 15 de junho de 1999.

Sexta-feira, 14 de maio, fui convidado pelo programa Opinião Nacional, da TV Cultura de São Paulo, a dizer por telefone, do Rio, o que pensava das quotas raciais nos empregos. O que penso é simples: conferir direitos especiais aos cidadãos de determinada raça é negá-los aos de outras raças; é racismo descarado. Porém, mal eu havia começado a dizê-lo, o entrevistador Heródoto Barbeiro me informou que um outro convidado, diante das câmeras, iria responder às minhas abreviadíssimas declarações de entrevistado invisível.

Era um advogado de nome Hédio — sim, Hédio — da Silva Júnior, fundador de um tal Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdade e especialista em processos de negros contra brancos. Não fiquei sabendo se o doutor era branco ou preto, pois minha TV a cabo estava desligada por falta de pagamento. O que pude compreender do que ouvi foi que até o momento seus clientes são raros, já que a população negra não está consciente de ser vítima do racismo, e ainda mais escassos os seus possíveis sucessos forenses, já que a população branca não está consciente de ser racista e assim é quase impossível provar crime de racismo. No intuito de remediar tão lamentável situação, empenha-se o referido causídico numa campanha de esclarecimento para que os brancos se tornem racistas assumidos e os pretos se sintam horrivelmente discriminados — um resultado que, segundo ele, trará a completa e definitiva eliminação do racismo brasileiro.

Um exemplo dos métodos usados para tão nobre finalidade consiste em apregoar que qualquer anúncio de emprego que exija “boa aparência” exclui, por hipótese, os candidatos pretos, todos de péssima aparência na aparente opinião do dr. Hédio. Se o anunciante nem de longe pensou nisso, dane-se: como se trata de racismo inconsciente, pouco importa o que você pensa que está fazendo — quem sabe é o dr. Hédio. Ele lhe dirá quais foram suas intenções inconscientes — e você irá parar na cadeia por um crime que não sabe que cometeu.

O dr. Hédio inaugura, com isso, uma revolução jurídica de conseqüências portentosas. Na antiga ciência do direito, o criminoso não podia alegar ignorância da lei. Na nova, ninguém poderá alegar ignorância dos conteúdos do próprio inconsciente. A invenção é inteiramente original no mundo jurídico, já que seu único antecedente foi no campo da literatura de ficção (v. Franz Kafka, O Processo). Em homenagem a seu criador, será portanto denominada, no futuro, jurisprudência hedionda.

Mas tudo isso só chegou ao meu conhecimento depois, quando uma boa alma paulista me reproduziu parte da entrevista gravada. Na hora, só o que ouvi foi a resposta que o dr. Hédio me ofereceu diante das câmeras — um insulto seguido de uma mentira:

— Esse é o discurso típico de um servidor do poder. É um argumento desatualizado, que foi muito usado durante a ditadura.

Revidei o insulto mais ou menos assim. A causa defendida pelo dr. Hédio tem o apoio do governo Bill Clinton, da Rainha da Inglaterra, da ONU, do Banco Mundial, das fundações Ford e Rockefeller, de centenas de empresas multinacionais, do New York Times e todo o establishment midiático norte-americano, do nosso presidente e sua digníssima esposa, da Rede Globo, da TV Cultura — e eu é que sou um servidor do poder! A estratégia assumida dos poderes globalistas contra as nações é precisamente fomentar lealdades supranacionais (raciais, sexuais, ecológicas) para enfraquecer a unidade das culturas nacionais e solapar o poder dos Estados. Eles gastam nisso rios de dinheiro, inclusive no programa de educação discriminatória (só para negros) financiado no Brasil pelo Bank Boston — tudo para garantir as costas quentes de gente como o dr. Hédio. Esse doutor era realmente um cara de pau.

Mais tarde descobri que o dr. Hédio recebe ajuda em dinheiro da União Européia e da Fundação Ford. Ele não é portanto um “servo” do poder: é um empregado bem pago. É um representante imperialismo cultural empenhado em jogar brasileiros contra brasileiros, em destruir nossa confiança no alto valor da nossa cultura inter-racial para que, esquecidos da nossa superioridade moral nesse ponto, consintamos na abjeção de receber lições de democracia racial de um povo que finge combater seu próprio racismo invertendo os polos da discriminação. É um propagandista da demagogia globalista politically correct, o mais pérfido instrumento que alguém já inventou para quebrar o pacto da lealdade nacional, dividindo para reinar. Como advogado que incita os negros a se sentir discriminados quando não o são e os brancos a assumir à força de chantagem emocional um racismo que abominam, o dr. Hédio vive disso, ganha com isso e não tem com isso o menor drama de consciência: quem poderá abalar aquela firmeza de convicção que nasce do matrimônio indissolúvel entre uma ideologia insana e um sólido interesse profissional? O rótulo difamatório de “servidor do poder” que o doutor colava na minha testa era enfim a mesma coisa que aquele racismo que ele atribuía aos outros: pura autoprojeção. E a população negra deste país há de depositar sua confiança nesse tipo de gente?

À segunda observação do dr. Hédio eu teria respondido, se pudesse, que o debate das quotas foi posterior ao fim da ditadura e não pode antes disso ter suscitado qualquer argumento que fosse; que portanto a estapafúrdia alegação hédica, hediana, hedionda ou hediota só se explicava pelo safadíssimo desejo de criar um comprometimento artificioso da minha imagem com a de uma ditadura que, na época, só não me pôs na cadeia porque não chegou a minha vez. Mas não pude dizer mais nada: diante da minha resposta à primeira parte, o entrevistador Barbeiro agradeceu gentilmente minha participação e desligou rapidinho, ciente de que fizera, ao me convidar, a maior barbeiragem. Afinal, todo o programa fora calculado para realçar, com dinheiro público, o charme e a simpatia das doutrinas hediondas.

NOTA

Com o título editorial “Só preto, com preconceito” , este artigo saiu na revista República de junho de 1999, em reação a um insulto claramente difamatório que me fora lançado pelo dr. Hédio da Silva no programa Opinião Nacional, da TV Cultura de São Paulo. Fui ali chamado de “servo do poder”. O sujeito podia ter-me chamado de qualquer coisa, que eu nem ligaria. Disso, não. Ninguém tem o direito de colar esse rótulo infamante na testa de um homem que para conservar sua independência consentiu em não ter casa própria, nem carro, nem cartão de crédito, nem cheque especial, e que tanto ama essa independência que nem chega a sentir falta dessas coisas não obstante úteis e saudáveis; de um homem que sempre viveu de seu trabalho e nunca recebeu (nem pediu) subsídio de poderoso nenhum, brasileiro ou estrangeiro; de um homem, sobretudo, que se alguma vez abriu a boca foi sempre e sistematicamente para defender o mais fraco: a esquerda, quando a direita mandava; a direita, hoje, quando a esquerda impera e ganha dinheiro a rodo. Fiz minha divisa o apelo de Ortega y Gasset — “En toda lucha de ideas o de sentimientos, cuando veáis que de una parte combaten muchos y de outra pocos, sospechad que la razón está en estos últimos. Noblemente prestad vuestro auxilio a los que son menos contra los que son más” –, e não admito que este meu único ponto de orgulho seja enlameado pelas palavras de um bocó irresponsável que nunca me viu e não sabe quem sou. Desprovido de meios de resposta proporcionais à amplitude de divulgação da ofensa, pois a repercussão da TV é incalculavelmente superior à da palavra escrita, respondi à despropositada agressão verbal por meio do único veículo que estava a meu alcance naquele momento. Inconformado de que eu exercesse, mesmo com limites, o meu direito de resposta, o pretensioso causídico telefonou furioso para a redação de República, ameaçando tomar contra a revista não sei quais providencias judiciais que, na sua imaginação, seriam cabíveis no caso. Valha-me Deus! O sujeito quer insultar à vontade e ainda processar quem responda. Mas pretensões judiciais extravagantes não me espantam num advogado cuja especialidade é defender pessoas que nem sabem que foram ofendidas contra pessoas que nem sabem que as ofenderam. Qualquer que seja o caso, estou aqui aguardando ansiosamente a convocação da Justiça para ter o prazer de repetir na frente da autoridade cada palavra que escrevi neste artigo, acrescentando ainda a seguinte informação comprobatória: o arrogante difamador que se permite chamar os outros de “servos do poder” é autor de uma obrinha jurídica que acaba de ser publicada com o patrocínio da Fundação Ford e da Comunidade Econômica Européia (1).

Disse, repito e provo: Servo do poder é você, Hédio da Silva.

(1) V. Hédio da Silva Jr. Anti-racismo – coletânea de leis brasileiras – federais,estaduais, municipais, São Paulo, Ed. Oliveira Mendes, 1998. Apoio cultural: Comunidade Européia, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Fundação Ford. (1a. edição), 311 pp.

P. S. – Se o dr. Hédio quiser responder ao artigo ou à nota que lhe dá fecho, concederei ao distinto, nesta homepage e sem qualquer restrição, aquele mesmo direito de resposta que tanto o escandaliza quando usado para rebater um insulto seu.

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