Olavo de Carvalho

5 de outubro de 1999

Num recente debate no Fórum Sapientia, aprovei entusiasticamente a indicação do sr. Luís Fernando Veríssimo para o “Prêmio Imbecil Coletivo” de 1999. Para não ser acusado de favorecimento injusto, apresento aqui as razões que, no meu entender, adornam de sobrantes méritos o cronista gaúcho na disputa pelo ambicionado galardão. – O. de C.

O sr. Luís Fernando Veríssimo, que na juventude chegou a ser engraçado, tornou-se na idade madura um exibidor profissional de ódio político paramentado de indignação moral. Não há profissão mais rentável no Brasil de hoje. Em todo caso, o sucesso do tolo não é motivo para que se torne assunto destas crônicas, as quais não têm por objetivo insuflar no leitor a revolta contra aquelas banalidades invencíveis que a sabedoria recomenda aceitar com a mais resignada e indiferente mudez. Eu nunca tocaria no nome do sr. Veríssimo se ele não houvesse tocado num assunto que, por tê-lo lecionado desde 1978, tenho o direito de supor que seja da minha conta. Mais que tocar, ele aí mexeu e remexeu, não só com a inabilidade rombuda de quem soldasse circuitos de HD com um maçarico de funileiro, mas também com aquela desenvoltura presunçosa do palpiteiro que, se imaginando um pregador entre índios, crê poder sem risco de vexame fazer passar por sábia a mais compacta ignorância.

Num de seus recentes sermões à taba, o sr. Veríssimo, apelando a elementos de erudição latina adquiridos na noite anterior entre um bocejo e outro, ensinou à indiada que o problema dela era acreditar no trivium de preferência ao quadrivium. Os silvícolas, diante de diagnóstico tão atemorizante, ficaram preocupadíssimos. Mas, para não ser acusado de abusar da boa-fé popular, o sr. Veríssimo logo explicou aos primitivos do que se tratava. Trivium e quadrivium compunham, na educação medieval, o sistema das Artes Liberais — o primeiro dedicado à prática da retórica oca e pomposa (gramática, lógica e retórica), o segundo ao estudo dos mistérios sapienciais (aritmética, geometria, música e astronomia). O Brasil, concluia o sr. Veríssimo, estava na pindaíba porque nas afeições nacionais o trivium “superou as artes precisas, tornadas inconseqüentes pela irrelevância política. A gramática, a retórica e a lógica – ou a gramática, a retórica e a lógica a serviço das abstrações e do narcisismo no poder – definem a realidade. As palavras substituem os fatos” (O Globo, 17 set. 99).

Não vou aqui apelar ao expediente demasiado óbvio de dizer que o sr. Veríssimo, jamais tendo se notabilizado como praticante de artes matemáticas, e não tendo feito outra coisa na vida senão juntar palavras em vista do efeito desmoralizante que pudessem exercer sobre seus desafetos políticos, é em tudo e por tudo um profissional do trivium e, neste, especificamente da retórica, da qual o humorismo polêmico é uma das ferramentas mais típicas e indispensáveis.

Não farei isso por um motivo muito simples. Comparações históricas deslocadas do seu sentido originário para adaptar-se à força a um argumento contencioso voltado contra políticos do dia não fazem parte do arsenal da ciência retórica, aquela em que se notabilizaram os tratados de Aristóteles, Quintiliano e, para citar o mais ilustre entre os recentes, Chaim Perelman. São instrumentos da baixa retórica conhecida como erística — a técnica mais ou menos improvisada de simular argumentos para confundir o adversário ingênuo e impressionar a platéia leiga. Consagrei ao estudo desses instrumentos e dos meios de desmascará-los o meu livro Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão. A Dialética Erística de Arthur Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1998), cuja leitura recomendo fortemente ao sr. Veríssimo, com a advertência de que este conselho não é anúncio comercial e sim prescrição de dever escolar. Se o houvesse lido, o sr. Veríssimo compreenderia que a retórica não faz mal nenhum ao Brasil, pelo simples fato de que há décadas está ausente do nosso currículo escolar (enquanto o francês ou o americano lhe dão lugar de destaque) e, sendo completamente ignorada, não pode ter culpa de que pessoas como o sr. Veríssimo ou seus desafetos pratiquem em lugar dela uma outra coisa qualquer, chamando-a de retórica.

Que a comparação do sr. Veríssimo é forçada, é. Mais não poderia ser. O trivium e o quadrivium não tiveram nunca o sentido que ele lhes dá. Ele foi parar tão longe do assunto que se torna difícil explicar onde errou, porque todo erro supõe alguma referência à realidade, e as Artes Liberais do sr. Veríssimo são apenas a imaginação de um caipira cuja distância dos estudos medievais se mede em escala interestelar. A lógica, por exemplo, nunca teve nada a ver com eloqüência — pelo menos no sentido atual e brasileiro do termo –, e a retórica excluía expressamente do seu domínio a mera arte oratória com que a confunde o sr. Veríssimo, concentrando-se antes na avaliação da credibilidade dos argumentos perante os vários tipos de públicos e correspondendo, mutatis mutandis, ao que hoje é a psicologia da comunicação, uma ciência “de fatos” que, se pode ser acusada de alguma coisa, é de pobreza de abstração. Quem quer que tenha dado ao menos uma lambida na Retóricade Aristóteles sabe disso, donde concluo que o sr. Veríssimo se absteve dessa experiência gustativa, talvez temendo que pudesse lhe ser letal.

Por isto mesmo ele não pode ser acusado sequer de praticar a erística. O argumentador erístico domina seu arsenal de truques e sabe quando trapaceia. Já o sr. Veríssimo age com plena inocência, porque não tem a menor idéia do que está dizendo. Comparando uma coisa que desconhece com outra da qual tem apenas uma vaga idéia, ele chega a conclusões que lembram as de um drogado recém-emerso de uma bad trip a conjeturar em vão onde está e o que foi fazer ali.

Desde logo, imaginar que as artes da linguagem lidem com “abstrações” enquanto as matemáticas se ocupam de “fatos” reflete aquela completa ignorância contra a qual não valem argumentos, melhor convindo, em tais circunstâncias, a chinela da mãe para mandar o sabidinho para a escola.

Em segundo lugar, dizer que os brasileiros preferem a lógica à música é algo tão extravagante que não compreendo que alguém o profira em estado de sobriedade. Bem ao contrário, o que se pode afirmar com razoável certeza é que a afeição dos brasileiros à musicalidade é tão extremada que chegam a fazer dela um substituto da lógica, persuadindo-se da veracidade de uma sentença tão logo afetados por suas qualidades sonoras. O próprio sr. Veríssimo, como se nota pelo caso presente, não parece submeter suas opiniões a outros testes senão o puramente auditivo.

Em terceiro, ignorar o papel central que a música e as matemáticas desempenham na retórica do poder contemporâneo — a primeira moldando a sensibilidade das massas, as segundas estruturando toda a ideologia científica que domina desde a política econômica até a administração de nossos corpos pelo establishment médico-sanitário –, já é elevar a cegueira às dimensões de um culto religioso.

Em quarto lugar, as Artes Liberais compunham um sistema coeso, de modo a permitir, justamente, que o pensar com palavras e o pensar com números formassem uma base única para a compreensão das ciências voltadas a realidades superiores que transcendiam palavras e números. Se há pois disciplinas que valem o mesmo, e entre as quais não se pode estabelecer nenhuma diferença de valor, são aquelas que compõem o trivium e o quadrivium, todas elas igualmente elementares e aliás perpassadas de estruturas comuns que tornam impossível separá-las, como por exemplo as associações entre as órbitas planetárias e as categorias da gramática, ou entre estas e os sólidos geométricos do platonismo. Expliquei alguma coisa disso no meu livreto Astros e Símbolos (1985), que está esgotado, se bem que não tanto quanto a minha paciência de ouvir gente como o sr. Veríssimo falar do que ignora.

E não é estranho que, tão despreparado para lidar com o assunto, o sr. Veríssimo embarque por fim na confusão, que se tornou obrigatória na nossa imprensa, entre “o poder” e “o governo”. Refletindo a incapacidade geral de discernir entre a organização jurídica nominal de um país e as estruturas mais profundas que a determinam — incapacidade que chega a ser espantosa numa geração que se gaba de marxista –, o ocupante mais ou menos casual de um cargo eletivo passou a ser “o poder”, enquanto o vasto império midiático que lá o colocou e de lá há de tirá-lo quando bem entenda se converte, por meio da performance do sr. Veríssimo e grande elenco, na personificação do não-poder, do excluído, do brasileiro pobre que geme inerme sob o tacão dos poderosos. Com truques como esse (também meio inconsciente, pois o sr. Veríssimo jamais seria esperto o bastante para pensar numa coisa dessas), a classe falante oculta o seu próprio poder, fazendo do governo o bode expiatório cujo ruidoso sacrifício permitirá que, por baixo das sacudidas periódicas na superfície do noticiário, ela permaneça, como Minas, onde sempre esteve.

Alguns dirão, lendo estas linhas, que abusei das minhas forças, que joguei décadas de estudo contra um pobre cronista sem pretensões eruditas. Mas o sr. Veríssimo, como aliás toda a geração de pessoas que hoje dominam o pequeno jornalismo e o show business, não apenas tem pretensões eruditas como se prevalece delas para se tornar uma espécie de maître à penserhabilitado a dirigir o curso do destino mental brasileiro, subindo infinitamente acima de suas sandálias de cronista de província nas quais seus rechonchudos pezinhos cabiam com perfeição.

Não há hoje sambista, roqueiro, comentarista esportivo ou apresentador de TV que se abstenha de posar de intelectual e dar lições. A causa disto é patente: uma certa corrente política, desejando exercer sobre o país a hegemonia intelectual, e só dispondo de raríssimos estudiosos sérios em suas fileiras, teve de improvisar “quadros” — que é como ela denomina as pessoas –, e rodear sujeitos como o sr. Veríssimo de um prestígio e de uma autoridade absolutamente desproporcionais às suas capacidades. O resultado é que hoje a denúncia do verbalismo nacional, tão decisiva para a correção dos nossos costumes, se converteu em imitação simiesca de si própria e se prostituiu em demagogia ornamentada de falsa erudição: o verbalismo criou anticorpos e se alimenta de auto-acusações.

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