Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de outubro de 2009

Nosso presidente, que jamais derramou uma lágrima pelos 40 mil brasileiros assassinados anualmente e muito menos fez algo para protegê-los, derreteu-se em prantos ante a escolha do Rio para sede dos próximos Jogos Olímpicos. Não é a primeira vez que ele dá mostras de sua notável capacidade lacrimejante. Ele chorou duplamente ao ser eleito e ao ser empossado, chorou vezes inumeráveis ao anunciar do alto dos palanques seus planos de governo, chorou no enterro do deputado petista Carlos Wilson, no das vítimas da chuva em Sta. Catarina e no dos mortos do acidente em Alcântara, chorou ao inaugurar o projeto “Luz Para Todos”, chorou ao enaltecer seus próprios feitos num encontro de estudantes em São Paulo, chorou no Senegal dizendo que era de arrependimento pela escravatura, chorou ao prometer acabar com o desemprego em 2003 e depois novamente em 2006 (os desempregados continuam chorando até agora), e chorou quando o deputado Roberto Jefferson lhe falou do Mensalão: soluçou tão convulsivamente que ficou até parecendo que era o último a saber do imbroglio. São apenas amostras colhidas a esmo. Digitando “Lula chora” no Google obtive 29.600 respostas, e ante a mera perspectiva de examiná-las uma a uma quem sente ganas de chorar sou eu.

Diante dessa torrente de lágrimas, seria injusto negar que o sr. presidente tenha bons sentimentos. Que os tem, tem. O problema é que são morbidamente seletivos: para seus companheiros de militância, para os grupos sociais onde espera recrutar eleitores, e sobretudo para si próprio, coitadinho, é uma comoção arrebatadora, um enternecimento irresistível, um transbordamento de compaixão sem fim. Para os demais, tudo o que ele tem a oferecer é aquela forma requintada de crueldade passiva que se chama a indiferença. Incluem-se nessa categoria os 40 mil acima mencionados, as crianças brasileiras envenenadas pelas drogas das Farc, os malditos 17 mil reacionários fuzilados por seu amigo Fidel Castro e sobretudo as vítimas do terrorismo nacional, cujas famílias vivem no mais abjeto esquecimento enquanto os assassinos de seus pais e avós se empanturram de verbas federais, seja na condição de “indenizados”, seja na de ministros, senadores, deputados, chefes de gabinete etc. etc. etc.

Longe de mim a suspeita de que as lágrimas de S. Excia. sejam fingidas. É justamente a espontaneidade delas que mostra o quanto os bons instintos presidenciais são seletivos, daquela seletividade natural e até inconsciente que revela, num instante, uma personalidade, a forma inteira de uma alma e de uma consciência. Se essa seletividade privilegia, enfatiza e enaltece com naturalidade espantosa os interesses político-publicitários do sr. presidente e ao mesmo tempo o torna cego e insensível para tudo o mais, não é porque haja nela alguma premeditação astuta, mas, bem ao contrário, é porque, simplesmente, ele é assim.

Sua consciência moral, em suma, é deformada pelo longo hábito, meio partidário, meio mafioso, da separação estanque entre os “amigos” e os “outros”, entre “gente nossa” e “aquela gente”. Se seus acessos de bondade vêm a ser sempre politicamente oportunos, não é porque ele os planeje, mas porque, no fundo da sua alma, ele não consegue conceber o bem senão sob a forma estreita e específica de uma estratégia partidária, sendo perfeitamente indiferente a tudo o que fique fora ou acima dela.

Especialmente acima. A prova mais patente da sua insensibilidade a quaisquer valores que transcendam a luta partidária veio logo após sua audiência com o Papa — momento culminante na vida de todo fiel católico –, quando, tendo comungado sem confessar, redobrou a blasfêmia ao fazer chacota do ocorrido, dizendo que assim procedera por ser alma sem pecados. Para esse homem, até mesmo a religião que diz professar ardentemente não tem nenhum significado em si mesma, o Deus que ele diz adorar não tem nenhuma autoridade moral para julgá-lo, devendo antes amoldar-se com humildade à condição de personagem de piada instrumental ad majorem Lulis gloriam. Que depois, na África, ele exiba arrependimento por uma escravatura que jamais praticou, e faça acompanhar suas lágrimas da conveniente citação papal, eis aí a prova de que, na escala da sua consciência, sua alma cristã tem mais satisfações a prestar ante o auditório imediato do que ante o Juízo Final.

Subjugando ao oportunismo partidário mesmo aquilo que há de mais alto e venerável, suas efusões de bondade não são senão expressões visíveis de uma mesquinharia profunda, de uma pequenez de alma que, para dizer o mínimo, não é um bom exemplo para se dar às crianças.

Desprovido, ao menos aparentemente, da truculência natural de um Fidel Castro ou de um Pol-Pot, bem como da fanfarronice histriônica de um Hugo Chávez, esse homem traz no coração, como eles, aquela típica mistura de insensibilidade moral e sentimentalismo kitsch que caracteriza os sociopatas. Sua indiferença ao sofrimento real dos estranhos ao seu círculo de interesses contrasta de tal modo com suas tiradas de autopiedade obscena e com seu emocionalismo à flor da pele nas ocasiões politicamente convenientes, que não vejo como escapar à conclusão de que S. Excia. é uma alma deformada, cuja feiúra, exibida com ingênuo despudor a cada novo pronunciamento seu, condensa simbolicamente a miséria geral da época.

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