Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de julho de 2006
Um porta-voz do Exército, por telefone, informou ao Diário do Comércio, e prometeu confirmar oficialmente, que a carta publicada no Alerta Total, aqui comentada no artigo anterior, não é autêntica ou pelo menos não partiu dos comandantes militares. Eu deveria portanto escrever ao editor daquele site, Jorge Serrão, reclamando de ele me fazer gastar neurônios à toa com a análise de um documento forjado. Se não o faço, é porque não considero que o meu esforço tenha sido tempo perdido.
Se os comandantes não escreveram a carta, alguém a escreveu em lugar deles e, espalhando-a pela internet até chegar ao Alerta Total, conseguiu lhe dar tão ampla divulgação que dezenas de leitores, perplexos, me enviaram cópias dela, pedindo que a comentasse. Não é preciso ser muito esperto para perceber que esse fato é tão significativo do presente estado de coisas quanto o seria o próprio documento, se autêntico. Também, quem quer que leia o meu artigo com atenção notará que a análise de significado, ali empreendida, enfocou apenas o texto em si, sem entrar no mérito dos objetivos políticos visados pelos seus presumidos autores. O resultado da análise, pois, permanece intacto a despeito da revelação da falsa autoria. Esse resultado, caso o leitor não se recorde, consistiu na afirmativa de que os remetentes da carta, que eu então acreditava serem os comandantes militares, transmitiam nela uma idéia atenuada da situação presente, raciocinando segundo uma falsa analogia com os tempos finais do governo Goulart e escamoteando o poderio e a agressividade infinitamente maiores da esquerda revolucionária hoje em dia. Não há o que mudar nessa conclusão. Só o que é preciso fazer agora é ampliar a análise levando em conta o desmentido da autoria e colocando o documento no seu efetivo contexto político. E aí a coisa fica ainda mais interessante.
Se algum anônimo tentou dar a impressão de que o primeiro escalão militar estava preocupado com as ligações entre a atual corrupção no governo e as velhas maquinações revolucionárias da esquerda continental, mas quis fazer isso sem dar com a língua nos dentes quanto ao agravamento dramático da situação entre 1964 e agora, está claro que o objetivo do farsante foi atrair a atenção do público para uma possível e talvez genuína irritação militar com o governo, mas abafando, ao mesmo tempo, os motivos que a tornariam ainda mais justa e razoável. Ora, que raio de coisa é isso senão desinformação alarmista, preparação dos espíritos para que se encham de hostilidade profilática contra um golpe militar que não está sendo tramado de maneira alguma? E para que haveria alguém de alertar contra uma trama golpista inexistente, senão para dar preventivamente ares de contragolpe a alguma trama existente?
A pergunta revela-se ainda mais pertinente quando se considera que todo golpe é contra alguma coisa e que, para descobrir quais tendências golpistas podem existir dentro de um grupo social, basta saber contra quem se fala usualmente nesse grupo. Se tomarmos as declarações oficiais dos srs. comandantes, os exemplares da revista da Escola Superior de Guerra (Defesa Nacional) e os discursos pronunciados nos clubes militares como amostras significativas do pensamento castrense, notaremos que nesse meio só se fala contra três coisas: (1) o baixo orçamento das Forças Armadas (e a conseqüente míngua dos soldos militares); (2) a corrupção dos políticos; (3) a “cobiça internacional” (subentende-se: americana). Com exceção de pequenos grupos de oficiais da reserva que representam antes o passado do que o presente, e que a meu ver são o que de melhor e mais quixotesco ainda resta nas Forças Armadas, em parte alguma do meio militar se ouve ou se lê uma só palavra contra o Foro de São Paulo, contra o esquema revolucionário continental, contra Fidel Castro ou contra Hugo Chávez. Quem quer que, hoje, tentasse unir num empreendimento golpista a classe militar, teria enorme dificuldade de fazê-lo em nome do anticomunismo de 1964. Desaparelhados para compreender a ameaça comunista desde que o governo Sarney retirou a disciplina de “guerra revolucionária” do currículo das escolas militares, castrados coletivamente por um sistema de promoções que favorece antes os burocratas bem comportadinhos do que os verdadeiros líderes, desmoralizados, atemorizados e esgotados pela hostilidade da mídia inteira, os militares brasileiros, hoje, anseiam mais por um sorriso paternal da esquerda triunfante do que por uma oportunidade de lutar contra ela. Iniciativas golpistas podem florescer, é claro, alimentadas pelo caos em torno. Mas não se voltarão, como em 1964, contra o comunismo internacional, mesmo que este seja hoje muito mais perigoso, mais forte e mais agressivo que o daquela época.
O levante militar de 1964 refletiu uma cultura impregnada de conservadorismo cristão e anticomunismo tradicional – raízes que foram extirpadas da mentalidade nacional por quarenta anos de revolução cultural gramsciana. A “ideologia militar” subsistente compõe-se de moralismo politicamente neutro, ressentimento corporativo e nacionalismo: desses três fatores, nenhum é intrinsecamente anti-esquerdista e os três podem ser absorvidos e instrumentalizados pela estratégia da esquerda. Podem ser, não: já estão sendo, e há bastante tempo. Quem viu, como eu, centenas de oficiais brasileiros inflamados de entusiasmo lulista quando da visita do candidato do PT ao Clube da Aeronáutica logo antes da eleição de 2002, sabe que as Forças Armadas brasileiras já não são as de antigamente. Em 1964, a tendência do espírito militar era exagerar o perigo comunista, o qual nem era tão ameaçador quanto ele próprio se alardeava, se tivermos em vista a facilidade incruenta com que em seguida se desmantelou da noite para o dia o esquema subversivo de João Goulart; hoje, quando esse perigo é incomparavelmente maior, a tendência é minimizá-lo ao ponto de o tornar invisível – e quem conhece a importância estratégica que Antonio Gramsci dava à invisibilidade sabe que isso é a melhor colaboração que o esquema comunista continental poderia receber.
Há ainda outro aspecto que deve ser levado em conta. Ao longo de trinta anos ou mais, a esquerda fez tudo o que podia para favorecer a ascensão do banditismo: ensinou técnicas de guerrilha urbana aos delinqüentes presos na Ilha Grande, integrou quadrilhas de criminosos no esquema do Foro de São Paulo; cultivou com devoção fiel a fantasia ideológica que desculpa o criminoso e inculpa a sociedade; promoveu líderes do narcotráfico à condição de “líderes comunitários” e “intelectuais populares”; glamurizou as drogas como meio de “libertação psicológica”; promoveu o massacre moral da polícia através da mídia, do show business e das escolas, ao ponto de tornar os policiais uma classe inibida e atemorizada, persuadida de que o cumprimento fiel das suas funções legais só lhe trará novas perseguições e punições; debilitou o senso moral dos formadores de opinião por meio de engodos acadêmicos como o multiculturalismo, o relativismo, a maliciosa exploração psicológica das frustrações raciais e sexuais das minorias; garantiu a impunidade para os delinqüentes menores de idade; promoveu por todos os meios a desmoralização do direito de propriedade; e por fim diminuiu as penas para os crimes hediondos. Sua ação no sentido de fortalecer o crime e debilitar a sociedade foi tão coerente, tão contínua e tão abrangente que ela basta para explicar a desordem e a violência atuais, para as quais ela própria fabrica, ex post facto, pretextos diversionistas destinados a agravar ainda mais o estado de coisas. O resultado desse esforço sistemático e perverso está hoje ante os olhos de todos, e ele é a maior prova de que o esquerdismo é criminoso em si, por essência e vocação.
Alcançado esse resultado, só restam ao esquema esquerdista dominante duas alternativas: ou governar em aliança com a bandidagem, tentando organizá-la como força armada paralegal e subjugando a ela o que resta do aparato policial e militar do Estado; ou dar a volta por cima, usando como pretexto a atmosfera geral de pavor, criando um Estado repressivo com a ajuda das forças militares, aparecendo como salvador da pátria e angariando o apoio maciço de uma população amedrontada, desmoralizada, disposta a aceitar todas as exigências ditatoriais em troca de uma promessa de alívio.
É cedo ainda para a liderança esquerdista optar por uma dessas vias. Por enquanto, ela pode prosseguir no entretenimento dialético de acirrar as contradições, apostando nos dois cavalos ao mesmo tempo e esperando para ver qual das alternativas será a mais vantajosa no instante temível da mutação revolucionária.
No trato com as duas forças opostas, ela tem sabido até agora conduzir com habilitade notável a manipulação perigosa do “duplo jogo duplo”, de um lado fomentando o banditismo sem lhe ceder o controle total da situação, do outro estonteando e subjugando as forças armadas por meio da bem dosada alternância de pancadas difamatórias e lisonjas sedutoras.
Por mais sofisticada que seja a brincadeira, ela não é original: é o procedimento-padrão da estratégia revolucionária desde o século XVIII.
Num ponto qualquer do processo, será preciso escolher. A experiência histórica ensina que, no fim, a aliança com os militares predomina sempre. É mais fácil utilizar as forças estatais já existentes do que organizar uma nova com elementos anárquicos, rebeldes e ilimitadamente ambiciosos. É absolutamente impossível que, entre os estrategistas do Foro de São Paulo, nenhum esteja consciente disso. O momento de trair os amigos delinqüentes e esmagá-los entre aplausos da população está chegando, como chegou para Robespierre, para Lênin, para Hitler, para Mao Dzedong e para Fidel Castro. A massa tem de ser preparada para vivenciar o advento da ditadura sangrenta como um consolo e uma libertação. O regime criminoso, como sempre aconteceu, será cimentado com o sangue dos criminosos. O socialismo não admite delinqüentes porque ele é o monopólio estatal da delinqüência.
Ainda há tempo para as forças liberais e conservadoras abortarem a gestação desse feto hediondo. Mas só o conseguirão por um ataque direto ao coração mesmo da estratégia maligna. É preciso mostrar ao povo a unidade profunda de banditismo, corrupção e revolução comunista. É preciso conscientizar as Forças Armadas do engodo trágico em que estão caindo quando se desorientam e cedem ante a alternância pavloviana de afagos e pancadas. Durante muito tempo até os políticos e empresários mais antipetistas resistiram a essas obviedades. Mas a declaração recente do senador Jorge Bornhausen sobre a epidemia de assassinatosem São Paulo mostra que, por fim, uma luz parece ter brilhado no cérebro da oposição: “O PT pode estar manuseando, manipulando essas ações. O PT vive no submundo de Santo André, vive no submundo do mensalão e vive no submundo do MLST. Então, tudo é possível, nada seria surpresa.”
Essa foi a coisa mais importante que algum líder liberal-conservador brasileiro disse nos últimos trinta anos. Importante, mas não nova. O que os políticos levam décadas para perceber é às vezes anunciado com muita antecedência pelo observador atento. Depois de insistir desde 1993 no tema da unidade de revolução e crime, resumi tudo num artigo publicado em O Globo em 7 de maio de 2005, que quase com certeza apressou a minha demissão daquele ex-grande jornal rebaixado a house organ do PT: a taxa anual de homicídios que o Brasil havia alcançado — cinqüenta mil por ano segundo a ONU, cento e cinqüenta mil segundo o livro do jornalista Luís Mir, Guerra Civil – bastava, dizia eu, “para fazer de um país um bicho amestrado, pronto para curvar-se docilmente, como os alemães do período entre guerras, àquele novo tipo de autoridade anunciado por Fritz Lang no seu filme profético de 1933, O Testamento do Dr. Mabuse: ‘Quando a humanidade, subjugada pelo temor da delinqüência, se tornar louca por efeito do medo e do horror, e quando o caos se converter em lei suprema, então terá chegado o tempo para o Império do Crime.’”
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Na página do Ministério do Trabalho, http://www.mtecbo.gov.br/busca/competencias.asp?codigo=5198, encontra-se um manual de ensino distribuído oficialmente pelo governo brasileiro a interessadas e interessados em seguir carreira no oficio de prostituta ou prostituto. Muitos visitantes do site se escandalizam com o conteúdo das instruções. Eu não. Vejo nelas um auspicioso sinal de restauração da moralidade. Num país onde todos pontificam sobre o que ignoram, nossos governantes dão um exemplo de probidade intelectual lecionando matéria na qual têm a autoridade da longa prática.
Curiosamente, entre as habilidades requeridas para a exercício profissional, meticulosamente listadas pelo site, como por exemplo “capacidade de persuasão”, “capacidade de expressão gestual”, “conquistar o cliente” etc., não consta a prática do sexo oral, anal ou mesmo vaginal. Não consta sequer aquilo que os anúncios de massagistas denominam pudicamente “finalização manual”. Convenhamos que, sem esses elementos, a atividade nos lupanares se reduzirá à cobrança de emolumentos em troca de serviços inexistentes, etéreos ou meramente simbólicos, em nada se distinguindo, portanto, das sessões do Congresso Nacional ou das reuniões ministeriais no Palácio do Planalto. Invertendo a ordem natural das gerações, as mães seguirão o exemplo dos filhos em vez de lhes servir de modelos.
Mas a originalidade da situação não pára por aí. Como a lei penal brasileira não proíbe o exercício da prostituição mas pune o ganho extraído dela por terceiros, nosso governo, ao regulamentar o ofício das marafonas e cobrar-lhes impostos, instituiu o monopólio estatal do lenocínio, de modo que os cafetões e catefinas, doravante, não serão criminalmente responsabilizados pela natureza das suas atividades, mas somente porque se entregam a elas por iniciativa privada. O Estado, segundo Hegel, é a mais sublime encarnação da razão. Passando para a esfera estatal, amoldando-se aos ditames da ética socialista e deixando de ser uma hedionda exploração burguesa, a cafetinagem se livra do seu ranço pecaminoso milenar e ganha um lugar de honra entre as mais altas e nobres atividades humanas.
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O escritor mineiro Júlio Severo, autor do livro O Movimento Homossexual que fez dele um alvo preferencial do ódio das ONGs bilionárias auto-incumbidas de orientar moralmente o Brasil, tem sofrido toda sorte de perseguições e humilhações judiciais por querer educar seu filho em casa em vez de entregá-lo aos cuidados de pedagogos iluminados, e também por julgar que o menino deve ser dispensado de tomar vacinas que, na opinião de seus pais, possam ser danosas à sua saúde.
Sem surpresa, noto que até alguns dos melhores articulistas conservadores, incapazes de negar solidariedade a esse combatente solitário e valoroso numa hora difícil, divergem dele no tópico das vacinas, argumentando que, em questões que envolvam decisões científicas, a autoridade do Estado deve prevalecer sobre a vontade dos pais.
É perfeitamente possível ser conservador, com sinceridade, sem jamais ter levado até o fundo a crítica cultural conservadora e libertária às crenças da modernidade. Esses articulistas, obviamente, não se deram conta da absurdidade intrínseca da premissa subentendida, segundo a qual as idéias científicas legitimadas institucionalmente devem ter alguma autoridade sobre a vida social. Se a ciência se propõe ser a livre investigação racional dos dados da realidade, nenhuma conclusão que ela ofereça sobre o que quer que seja pode estar isenta de crítica e portanto nenhuma pode ter “autoridade”, exceto no sentido do prestígio intelectual desprovido de respaldo privilegiado do poder estatal. A estatização da autoridade científica, em qualquer grau que seja, prenuncia a morte da ciência e o advento da “ditadura científica” preconizada por Auguste Comte, que aliás morreu maluco. A autoridade estatal é o refúgio do cientificismo, não da ciência.
Não tenho a menor convicção pessoal quanto às vacinas. Já li provas científicas eloqüentes de que são úteis e de que são perniciosas, e me considero humildemente em dúvida até segunda ordem. Alguns de meus oito filhos tomaram vacinas, outros não. Todos foram abençoados com saúde, força e vigor extraordinários, e nenhum deles deve isso aos méritos da ciência estatal, mas a Deus e a ninguém mais. Tenho o direito às minhas dúvidas, tanto quanto Júlio Severo tem direito às suas certezas. O Estado e sua burocracia científica que vão para o diabo, que é pai dos dois.