Amor incondicional à mentira

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de março de 2012

A tradução brasileira do estudo magistral de Tony Judt, Passado Imperfeito. Um Olhar Crítico sobre a Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra (Rio, Nova Fronteira, 2012), acontecimento excepcional num mercado livreiro amplamente dominado pela literatura de autoglorificação esquerdista, fornece às almas sinceras que ainda restem neste país a ocasião de meditar um dos fenômenos mais salientes – e mais deprimentes – da política mundial no último século e meio.

O período aí enfocado notabilizou-se pela tenacidade obstinada com que alguns dos intelectuais de maior destaque na França – Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Emmanuel Mounier, Edgar Morin, Claude Roy e outros tantos – fizeram das tripas coração para negar fatos bem provados e, assim procedendo, se tornaram cúmplices do genocídio comunista, responsável por mais mortes do que duas guerras mundiais somadas.

Na velhice, muitos daqueles colaboracionistas históricos publicaram livros de memórias, onde, admitindo finalmente o crime, buscavam e rebuscavam atenuantes psicológicos, cada um realçando miúdas diferenças do seu caso individual de modo a parecer menos culpado que os outros.

Não tentarei nem resumir, aqui, as investigações meticulosas e sutis com que o historiador britânico (autor de muitas outras obras importantes sobre a esquerda francesa, como Marxism and the French Left e Socialism in Provence), busca desvendar o sentido histórico dessa epidemia de degradações morais, seguida, após meio século, de um festival de desculpas esfarrapadas.

Tudo o que posso fazer é recomendar a leitura do seu livro e assinalar, de passagem, que a conduta abjeta daqueles intelectuais eminentes não foi um caso isolado. Bem ao contrário: fazer ouvidos moucos ao clamor dos fatos e à voz da consciência, passando daí à ocultação ativa e aos ataques odientos contra as testemunhas da verdade, tem sido a atitude repetitiva e imutável da elite esquerdista sempre que os fatos vão a contrapelo do que desejaria apregoar. Igualmente constante é o reconhecimento tardio da verdade sufocada, acolchoado sistematicamente em amortecedores sofísticos e desconversas rebuscadas que acabam por fazer da pretensa confissão um novo crime.

Pois durante décadas a intelligentzia esquerdista dos EUA não negou por todos os meios a realidade patente da penetração de agentes soviéticos nos altos escalões do governo de Washington, chegando a cunhar um termo de grande efeito publicitário – o “macartismo” – para marcar com o ferrete da infâmia toda tentativa de revelar fatos que desde a abertura dos Arquivos de Moscou já ninguém pode negar em sã consciência?

Essa mesma gente não insistiu em pintar os revolucionários de Mao Dzedong com as feições róseas de “reformadores agrários cristãos”, desarmando toda resistência e preparando o caminho para a liquidação de setenta milhões de inocentes pela ditadura mais sangrenta que o mundo já conheceu?

Os luminares da mídia novaiorquina não capricharam na ocultação sistemática do caráter comunista da Revolução Cubana, para reconhecê-lo só quando o Estado policial castrista já havia se consolidado ao ponto de não poder mais ser removido?

A militância esquerdista inteira não ostentou e ostenta ainda uma aura de sublime idealismo humanitário por ter boicotado a intervenção no Vietnã, quando sabia perfeitamente que a retirada das tropas americanas produziria como conseqüência inevitável a tomada do poder pelos comunistas e a instauração do terror genocida que, naquele país e no vizinho Camboja, viria a liquidar em poucos meses três milhões de pessoas, três vezes mais do que haviam matado os trinta anos de guerra?

E quem não viu, na semana passada, a mídia americana, incapaz de refutar as provas candentes de falsificação dos documentos do presidente Barack Hussein Obama, optar por escondê-las sob toda sorte de insinuações e conjeturas sobre as possíveis e impossíveis motivações íntimas dos investigadores?

Aqui mesmo, no Brasil, vocês não viram o beautiful people inteiro da mídia, das universidades e do Parlamento negar e ocultar por dezesseis anos a existência e as ações do Foro de São Paulo, só vindo a admiti-las, entre eufemismos e anestéticos de um cinismo sem par, quando se sentiu seguro de que a revelação era tardia demais para deter a tomada do poder em escala continental por aquela organização criminosa?

Não estão vendo agora mesmo a palavra “verdade” ser prostituída e esvaziada de toda substância, ao servir de nome para uma comissão cujo propósito mais óbvio é o de ocultar os crimes de um partido sob a ampliação hiperbólica dos crimes do outro?

Que essa constância, que essa persistência obstinada na negação do inegável seja apenas uma coleção de curiosas coincidências, ou que tudo não passe de desvios acidentais no quadro de uma vida intelectual que permanece, fora disso, perfeitamente saudável e nobre, eis duas hipóteses loucas que o pensamento racional tem de impugnar, in limine, como sintomas agravados do mesmo desejo de ocultação.

Ao contrário, o que gera tudo isso é uma e sempre a mesma semente perversa, cuja identidade se revela na constância inexorável com que seus frutos espalham sangue, terror, humilhação e fracasso em todos os quadrantes da terra.

Essa raiz é aquela que denominei “mentalidade revolucionária”. Sendo por essência uma inversão estrutural do sentido do tempo, da ação e da ordem real das causas, a mentalidade revolucionária é também e necessariamente ódio à verdade, ódio à  consciência, ódio a tudo quanto o coração humano, no seu mais íntimo, sabe e não pode negar. É opção radical e intransigente pela mentira.

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