Yearly archive for 1998

Gramscianos enfezadinhos, uni-vos

Olavo de Carvalho

26 de dezembro de 1998

Alguns dias atrás, tendo encontrado na Internet um sitebrasileiro dedicado a Antonio Gramsci – o ideólogo italiano que critico duramente em A Nova Era e a Revolução Cultural –, propus aos responsáveis pela página um intercâmbio de links, argumentando, em tom de blague, que seria bom constar da sua bibliografia pelo menos um livro contra o gramscismo, “para não dar na vista” já que alegavam ser tão democráticos. Os fulanos levaram a coisa a mal, subiram nos tamanquinhos e, em pleno dia de Natal, me enviaram uma carta enfezada.

Reproduzo aqui, seguido da minha resposta, esse singular documento (grifos meus):

Carta de Luiz Sérgio Henriques, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira

Sr. Olavo de Carvalho:

Surpreendeu-nos o tom da mensagem que nos foi enviada com a sua assinatura. Desde logo, o senhor, que tanta questão faz de falar em “amor à democracia”, não parece nem um pouco constrangido em nos fazer imposições para que entre nós se estabeleça algum diálogo. Já por isto, não lhe reconhecemos autoridade para nos cobrar a prática da democracia, nem aceitamos a imposição de “condições” para escolhermos os links a incluir em nosso site.

Certamente, registraremos em nossa “Bibliografia”, na próxima alteração do site, o seu livro sobre Gramsci, que até então desconhecíamos. Faremos isso porque nossa intenção, nessa parte do site, é documentar tudo o que se escreveu sobre Gramsci em nosso País, contra ou a favor, de boa ou de má qualidade. Nesse sentido, agradecemos-lhe a indicação do seu livro e lhe solicitamos a gentileza de nos enviar outros títulos sobre Gramsci que, porventura, o senhor tenha produzido (ou de que tenha conhecimento) e que ainda não constem da nossa “Bibliografia”.

Essa inclusão, contudo, não implica de modo algum que consideremos necessário, conforme o senhor afirma, que conste em nossa “Bibliografia” um livro “contra” Gramsci “para não dar na vista”. “Dar na vista” de quem? Felizmente, como já não vivemos numa ditadura, não temos muita preocupação — aliás, temos muito orgulho — em sermos identificados como um site de esquerda, empenhado na luta pela democracia e pelo socialismo, o que, aliás, está expresso com todas as letras na apresentação do mesmo. Para nós, é questão de critério e seriedade que essa definição político-ideológica fique “à vista” de todos os que freqüentam “Gramsci e o Brasil”.

Consideramos muito positivo que o senhor tenha na Internet um site pessoal, no qual expressa suas posições políticas e filosóficas, entre elas as que criticam Antonio Gramsci. Estamos seguros de que o senhor também é a favor de que pessoas de esquerda, identificadas com Gramsci e com o socialismo, possuam seu próprio site, no qual manifestam outras posições, radicalmente diferentes das suas.

Em “Gramsci e o Brasil”, incluímos “links” de páginas que julgamos importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas — e não colocamos, aos “linkados”, nenhuma “condição” para essa inclusão. Portanto, não estamos interessados no intercâmbio que, sob “condições”, o senhor nos propõe. Sem mais, no momento, também lhe desejamos os melhores votos.

Luiz Sérgio Henriques
Carlos Nelson Coutinho e
Marco Aurélio Nogueira,

responsáveis por “Gramsci e o Brasil”.
http://www.artnet.com.br/gramsci
gramsci@artnet.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezados gramscianos,

Muito obrigado pela promessa de citar o meu livro na sua bibliografia, mas de que raio de imposição vocês estão falando? Não sabem a diferença entre impor e propor? A confusão na sua carta é patente: começam reclamando que “impus” e terminam confessando que “propus” – e com isto mostram que sua queixa de “imposição” foi puro fingimento. Um desafio, por definição, não se impõe. Propus um e vocês correram da raia. Isto foi tudo. Se em seguida tentaram disfarçar, encobrindo sua defecção sob as aparências de um nobre ato de independência moral, não posso, sinceramente, dizer que esperava de vocês outra atitude.

Quanto ao exercício da democracia, supus talvez ingenuamente que cobrá-lo fosse um direito de todos os brasileiros e nunca imaginei que fosse necessário ter alguma autoridade especial para isso. Peço informar como se adquire essa autoridade. Anos de militância a favor do regime que assassinou 100 milhões de pessoas seriam talvez credencial bastante? Ou é necessário, depois disso, limpar-se de toda má-consciência mediante duas ou três palavrinhas de abjuração ditas da boca para fora?

Também não sou eu quem faz tanta questão de falar em “democracia”: vocês é que repetem obsessivamente essa palavra a cada três linhas, não sei se para exorcizá-la ou para criar um simulacro de parentesco entre ela e o “socialismo”, termo antinômico do qual fazem acompanhá-la com uma constância verdadeiramente pavloviana.

Qualquer que seja o caso, colocarei na minha página um linkpara a sua, que funcionará como uma bela coleção de notas de rodapé para confirmar minha opinião de que o gramscismo é apenas uma forma elegantemente perversa de totalitarismo.

Sua resposta também será ali reproduzida, para que todos os visitantes tenham o prazer de conhecer a mentalidade gramsciana ao vivo e a cores. Muitos deles já conhecem essa mentalidade, em geral, mas terão aí a oportunidade de captar uma nuance especificamente brasileira que ela vem adquirindo, a qual consiste em cultivar propositadamente o medo da extinta ditadura para poder incriminar como prenúncio de truculências direitistas qualquer crítica mais veemente que se faça à esquerda nacional. É com essa nuance, aliás, que vocês procuram insinuar que eu, um cidadão sem cargo público nem dinheiro nem partido, sou uma ameaça viva contra a existência do seu site. Que bela comédia!

Mas raciocinem, por favor: se eu desejasse extinguir o seu site, por que haveria de propor um intercâmbio de links com ele?

Com meus melhores votos de Natal e Ano Novo,

Olavo de Carvalho

PS 1 – Caso vocês não tenham compreendido o desafio que lhes propus, explico de novo: podem vir em dois, em três ou em mil, e lhes provarei, por a + b, que gramscismo é totalitarismo, por mais que pareça outra coisa. Não fiquem com medo de mim, pois não sou ponta de nenhum iceberg direitista. Sou apenas um rapaz latino-americano e falo somente em meu próprio nome.

PS 2 – Vejo que vocês comemoraram o Natal reunindo-se em três para bolar uma resposta coletiva, quase um abaixo-assinado. Nunca vi maneira mais extravagante (ou gramsciana) de celebrar o nascimento de N. S. Jesus Cristo. Espero que pelo menos o aniversário de Antonio Gramsci vocês passem festivamente com suas famílias em vez de se irritar pensando em mim.

Comentário extra

Os signatários da carta de Natal dizem que não impõemnenhuma condição para colocar algum link na sua homepage, mas, ao mesmo tempo, confessam que só escolhem os que lhes pareçam “importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas” – o que subentende evitar criteriosamente os que possam difundir valores democráticosanti-socialistas. É contraditório, mas não é nada estranho. Os militantes gramscianos fazem exatamente assim por toda parte – jornais, editoras, estações de TV, universidades –, professando em palavras a abertura pluralista e praticando a seletividade mais sectária, até que reste uma só voz audível e tudo o mais seja eco. A cultura brasileira vai se transformando assim num vasto sistema de hyperlinks gramscianos, sempre sob a alegação de democracia.

Vocês já repararam, por exemplo, que quando algum direitista ilustre como Roberto Campos ou Miguel Reale é entrevistado na TV ele é sempre submetido a um interrogatório agressivo que procura comprometer sua imagem? Já notaram que, inversamente, quando o entrevistado é um figurão esquerdista, como Paulo Freire, José Saramago ou Oscar Niemeyer, as perguntas são sempre de natureza a mostrar que são criaturas lindas-maravilhosas? Por que só põem esquerdistas para entrevistar direitistas, enquanto os esquerdistas têm o privilégio de ser sempre entrevistados por seus simpatizantes?Acham que isso é coincidência? Não é não. É um sistema, é uniforme e é mundial. Leiam este parágrafo de Alain Peyrefitte (ex-ministro do Interior do governo gaullista), escrito quando estava no poder o socialista Mitterand:

O domínio da esquerda sobre os jornalistas, reforçado pela tutela política da televisão, induziu àquilo que um socialista lúcido, Thyerry Pfister – jornalista que foi conselheiro técnico do Primeiro-ministro Pierre Mauroy – chama ostensivamente de “lógica manipuladora”. Esta exprime-se mediante a proximidade, habilmente mantida, entre a esfera do poder e os “formadores de opinião”, através de um “jornalismo de conivência”.

Já se viu uma conivência mais acentuada do que, por exemplo, no dia em que o presidente da República se fez interrogar na televisão pelas esposas de dois de seus ministros? Alguém será capaz de imaginar o general de Gaulle, Georges Pompidou ou Valéry Giscard d’Estaing fazendo-se interrogar assim “em família”? Que reações essa prática não teria suscitado!

Alain Peyrefitte, La France en Désarroi, em De la France, Paris, Omnibus, 1996, p. 1034.

Esse gênero de manipulação tem nome: é a revolução cultural gramsciana.

E aqui vai, como prometido, o link para a página democrática onde quem não é comunista não tem vez:

Gramsci e o Brasil

Olavo de Carvalho

Batendo com duas mãos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 24 de dezembro de 1998

O único tema importante deste fim de século, e por isto mesmo o mais ausente da imprensa brasileira, é o governo mundial que está se formando não sei se sob as nossas barbas ou sobre as nossas cabeças, e do qual a globalização financeira, tão falada, não é senão meio e instrumento. Tenho tentado, em vão, introduzir uma visão mais abrangente desse assunto nas páginas dos nossos jornais, encontrando neles (com a honrosa exceção do JT ) aquela resistência típica do cérebro cansado que, não sabendo como processar uma informação nova, se nega a recebê-la.

Uma brecha no muro da indiferença burra foi aberta por Arnaldo Jabor, na sua coluna de 11 de novembro em O Globo , onde ele denuncia o Multilateral Agreement on Investment (MAI) como um golpe fatal na autonomia dos Estados nacionais. Mas não sei se devo cumprimentar o colunista pela sua sensibilidade de perceber o fato novo ou lamentar que o tenha interpretado segundo os velhos cânones do nacionalismo de esquerda, os quais nunca ajudaram a compreender nada e não é agora que vão começar a ajudar.

O MAI, explica Jabor, é um acordo internacional que “dá poderes totais às corporações mais fortes do mundo (leia-se G-7), para processar os países signatários (leia-se ‘emergentes’) por qualquer política governamental que possa prejudicar seus lucros”. A informação é perfeita. Perfeita é também a previsão das conseqüências: o MAI “será assinado pelos Estados nacionais, mas é todo talhado para acabar com o poder dos mesmos Estados nacionais”.

O absurdo é que, sabendo de tais coisas, Jabor não consiga equacioná-las senão nos termos do consagrado esquema neoliberalismo versus social-democracia, com a ênfase na voracidade pirata do primeiro e nas virtudes salvíficas da segunda. Ele se mostra escandalizado, com efeito, de que tamanho acréscimo do poder das empresas sobre os Estados ocorra justamente na hora em que, prenunciando dias melhores, ia “renascendo a preocupação de se instalar um ‘novo keynesianismo’ global contra a voracidade financeira, preocupação ostensiva até de homens como Alan Greenspan, diretor do FED”. O keynesianismo, para os que não sabem, é uma doutrina que, sem chegar a abolir o capitalismo, favorece o fortalecimento do papel do Estado na economia – uma tendência sintética que hoje ressurge com o nome de “terceira via”, e na qual Jabor acredita residir toda a esperança nacional de sair da paralisia patrimonialista sem cair vítima “da fome cega do capitalismo corporativo”.

Desse ponto de vista, a globalização do poder é idêntica a neoliberalismo (liberdade total para as empresas) e oposta à social-democracia (controle da economia privada pelo Estado). Assim, embora enfatizando nominalmente a novidade absoluta do acordo e rejeitando com veemência os argumentos globalistas que vêem nele apenas a inócua implementação de práticas jurídicas já existentes, Jabor acaba por reduzir o episódio a mais um capítulo da velha luta entre o imperialismo capitalista e o esquerdismo nacionalista. Dificilmente alguém poderia com mais eficácia neutralizar aquilo que afirma.

O esquema neoliberalismo-social-democracia, bem como sua pretensa síntese ou “terceira via”, não apenas não permite compreender nada, como foi posto em circulação precisamente para que ninguém compreendesse nada. Foi posto em circulação pelos mesmos poderes que conceberam o MAI, aos quais serve de areia para jogar nos olhos da imprensa. Os homens que dirigem o mundo não são neoliberais nem social-democratas, e aliás não teriam chegado aonde chegaram se não tivessem passado anos estudando a teoria e a técnica do chamado “gerenciamento de conflitos”, justamente para aprender a controlar o fluxo dos acontecimentos mediante o jogo de oposições em cuja realidade aparente se deleita, se embasbaca e se confunde a imprensa do Terceiro Mundo, como um sapo hipnotizado pela serpente.

Se o globalismo que vai arrasando os Estados nacionais é monopólio dos neoliberais e imperialistas, da “direita” em suma, como se há de explicar que a esquerda, em toda parte, lute pela uniformização mundial de direitos (como por exemplo os do trabalhador imigrante), a qual resulta em golpear os Estados nacionais mais fundo – e mais baixo – do que estes foram atingidos pelo MAI? Também não tem aí explicação o fato de que, desejando deter a globalização, a esquerda fomente por toda parte ressentimentos raciais que, integrando os ressentidos na grande comunidade mundial da sua raça, os transforma ipso facto em fatores debilitantes de qualquer união nacional possível. E muitíssimo menos se explicaria racionalmente, na perspectiva jaboriana, a mobilização histérica das esquerdas em favor de um ecologismo global que, por definição, não pode ser administrado autonomamente pelos Estados nacionais, e que, aplicado ao Brasil, já resultou em entregar a ONGs estrangeiras o controle de regiões mais extensas do que alguns Estados da Federação, sem encontrar oposição senão entre os militares, tradicionais bêtes noires da fantasia esquerdista.

Não, não: o globalismo não é neoliberal, pela simples razão de que não é one way . É um movimento de mão dupla, que tanto debilita os poderes nacionais pela apologia do livre comércio e da abolição das fronteiras, quanto o faz pela disseminação de insatisfações e reivindicações esquerdistas que, não podendo ser atendidas na escala dos Estados, terminam por subjugar as nações ao despotismo branco das organizações supranacionais.

Dos esquerdistas que colaboram para esse fim, somente uns poucos o fazem com plena consciência, e destes não posso dizer em público o que penso.

Podem ser facilmente identificados pelo teor ecológico, futurista e vagamente esotérico (“Nova Era”) do seu discurso. Nomeei um deles, semanas atrás, numa nota publicada na revista República , da qual me permito recordar um trecho:

“No folclore midiático brasileiro, ‘esquerda’ ainda significa aquele velho complexo de progressismo e nacionalismo que se opunha às multinacionais. Mas essa esquerda não existe mais: todos os seus remanescentes se tornaram servidores das causas neo-esquerdistas (negros, gays, aborto, etc.) calculadas para debilitar os Estados nacionais e favorecer o poder global.

Todos servem a um novo senhor, parasitando o prestígio do velho – uns por ingenuidade, outros por excesso de esperteza. Por enquanto ainda iludem a opinião pública e talvez a si mesmos. Mas, aos poucos, todos, sem exceção, irão perdendo as inibições, tirando as máscaras e declarando, alto e bom som, quem são e a que vieram. Com sua entrevista em Veja de 26 de agosto, o dr. Leonardo Boff tornou-se o pioneiro desses globalistas neo-assumidos: ‘O mundo – declarou ele – vai ao encontro de uma grande crise, e a saída será a criação de uma central de gerenciamento planetário.’ Que o advento desse tremendo poder central terá algo como a glória e o prestígio de uma nova revelação religiosa, é algo que também o sr. Boff não esconde: ‘Segundo ele, afirma Veja , os empresários andam com uma fome imensa de espiritualidade e estão atentos para a necessidade de uma nova ordem mundial.’ Governo mundial e Nova Ordem: é o paraíso espiritual do FMI.”

Quanto aos outros, que colaboram às tontas e por mera incapacidade de escapar do esquema dualista, a estes digo apenas que está na hora de acordar, de perceber que as causas e bandeiras nada significam apenas pelas belas palavras do seu enunciado abstrato (direitos, igualdade, humanismo, etc., etc.), mas pelo esquema concreto de poder no qual se enquadram como lances de uma estratégia bem complicada, na qual o bem é às vezes calculado precisamente para gerar o mal.

Muitos se gabam de ter superado o esquematismo esquerda-direita, mas continuam presos numa versão mais sutil do mesmo esquema, que é o confronto progressismo-reacionarismo. O futuro deste país depende de que essas pessoas, entre as quais estão algumas de nossas melhores cabeças e alguns corações sinceros, se dêem conta finalmente de que nenhum poder é uniformemente progressista ou reacionário, mas que todas as ambições políticas justas ou injustas, neste mundo, sempre se realizaram dosando espertamente uma coisa e a outra e batendo, em suma, com duas mãos.

Fórmula da minha composição ideológica

Olavo de Carvalho

23 de dezembro de 1998

Alguns leitores cobram-me uma autodefinição ideológica. Outros, mais solícitos, apressam-se em fazê-la por mim, catalogando-me seja como neoliberal, seja como anarquista, seja como conservador, seja até como fascista e o diabo a quatro. Surdo às demandas dos primeiros, que me parecem artificiais e de puro capricho, não posso, no entanto, permanecer insensível ante os esforços dos segundos, que traduzem, a olhos vistos, um anseio genuíno e profundo de suas almas, e, mais que um anseio, uma necessidade vital absoluta, a qual, se não atendida, acaba por se atender a si mesma como um estômago de pobre que, desprovido de alimento, se autodigere mediante uma úlcera. Essas pessoas, com efeito, não sabendo o que fazer de suas vidas sem um catálogo ideológico de tudo, e não dispondo de informações cabais sobre a minha personalidade política, acabam por construí-la com pedaços de si mesmas, colhidos nos bas fonds dos seus respectivos subconscientes e constituídos substancialmente de temores, suspeitas, fantasias macabras e uma vasta coleção de demônios.

Não suportando mais ver tanto sofrimento inútil, nem me conformando com tamanho desperdício de criatividade que mais utilmente se empregaria no hobby literário, ao qual algumas dessas criaturas aliás se dedicam nas horas vagas de seu penoso mister catalogante, decido-me, pois, a fornecer enfim meu perfil ideológico, e não apenas meu perfil de ambos os lados mas também meu auto-retrato de frente e de costas. Direi, em suma, o que vocês querem saber, que não é necessariamente o que vocês querem ouvir.

Infelizmente, não posso me definir com uma só palavra, como seria do gosto de tantos, pela simples razão de que não acredito haver algum conceito abrangente capaz de juntar, numa só unidade compacta, as diferentes atitudes e opiniões de um indivíduo ante os diversos setores da vida. O tipo assim descrito teria a coerência em bloco de uma caricatura, de um Idealtypusweberiano ou de um arquétipo platônico, mas nada teria de um ser humano1.

Toda fórmula ideológica pessoal compõe-se de um amálgama de preferências e repulsas variadas, umas referentes à política, outras à moral, outras à religião, outras à vida econômica e assim por diante. Esses vários elementos não formam quase nunca uma unidade coerente, embora tendam à coerência como numa assíntota, aproximando-se dela sem jamais alcançá-la. Tal esforço de coerenciação denomina-se, precisamente, filosofia, uma atividade que, pela própria natureza, é constante e sempre inacabada.

Não podendo, portanto, me definir com um termo unívoco, limito-me a dar uma lista dos vários elementos que compõem, como podem, minha ideologia pessoal.

  1. Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-los. Quem foi que disse: “A concorrência é um pecado”? O Dr. Leonardo Boff adoraria ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E, como se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria (ou de Esaú e Jacó), a concorrência não é pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D. Rockefeller ou o Dr. Leonardo Boff.

Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma de Estado corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico. Acredito, com Sto. Tomás, que há um preço justo para cada coisa. Mas, como observavam os conimbricenses, o número de variáveis a levar em conta no cálculo do preço justo é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é deixar que as pessoas discutam livremente e admitir que, de algum modo, vox populi, vox Dei. O Estado existe apenas para impedir que os concorrentes se comam vivos, para assegurar as condições logísticas da prática do liberalismo e para, last not leastamparar in extremis quem não tenha a mínima condição de concorrer no mercado.

  1. Em religião, sou tradicionalista e conservador. Não, não sou eu que sou assim. Religião é tradição e conservação. É o fator de imutabilidade que faz contraponto à História, e sem o qual o movimento não seria sequer percebido. Por isto, o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial: o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas para o ar, apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário, como por exemplo o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções, o Concílio tornou a Igreja uma instituição insensata e ridícula, que condena seus próprios santos enquanto se prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a imutabilidade só do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra do Corão, da Torá ou dos Vedas.
  2. Em moral, sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais, permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas, por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformá-lo no errado. “Experimentai de tudo e ficai com o que é bom”, recomendava S. Paulo Apóstolo, meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência, sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código Penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal.
  3. Em educação, sou mais anarquista ainda: não acredito em ensino obrigatório do que quer que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de ensino, público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo. Acho que a educação deveria ser livre, que cada um deve buscá-la na medida de suas necessidades, e considero uma monstruosidade totalitária que, após proclamá-la um direito, o Estado moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás que o mesmo se dá com muitos outros “direitos”, que você acaba exercendo a muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que as mulheres não pudessem trabalhar, mas é um absurdo maior ainda que, obrigadas a trabalhar, não possam ficar em casa para criar seus filhos. Complementarmente, é um crime que se obrigue uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo, se quiser, um trabalho que esteja à altura de suas capacidades e que, no fim, há de educá-la muito mais do que qualquer escola. Tornei-me jornalista ainda quase um menino, aos dezessete anos, e aprendi na redação o que três décadas de escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje me tiraria de lá e me poria numa escola para aprender português nos livros de Paulo Coelho.
  4. Em política internacional, e sobretudo em comércio internacional, sou radicalmente nacionalistaprotecionistae tudo o mais que os globalistas odeiam. Isso não quer dizer que eu seja contra a globalização da economia. Muito menos há aí qualquer contradição com a crença liberal acima subscrita. Apenas, entendo que globalismo não é o mesmo que monopolismo das grandes multinacionais, e que, assim como estas se associam umas com as outras – e com certos Estados – para ficar mais fortes, é justo que o empresário nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio governo para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí a intervenção do Estado não é contra o liberalismo ou a concorrência: ela é, ao contrário, o fator equilibrante que impede a extinção do liberalismo e sua substituição pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o socialismo dos ricos.
  5. Em filosofia, sou realista, meus gurus sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Husserl e Xavier Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer as coisas como são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos filósofos realmente grandes deste século, e perto deles um Foucault ou um Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que marxismo, estruturalismo, desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo, neopositivismo, etc. etc., são filosofias boas para analfabetos funcionais e portanto atendem a uma autêntica necessidade social criada pela rápida expansão do ensino universitário, onde é preciso fabricar professores cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Ler o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée Sauvageou Richard Rorty já é esforço bastante para essa gente, que morreria de congestão cerebral após meia página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.
  6. Em História, acredito na relatividade do progressoe acho que todo progresso se paga com perdas que nem sempre valem a pena. É claro que aprecio os computadores e os direitos constitucionais, mas penso nos milhões de vidas humanas que foram sacrificadas no altar do progresso e me pergunto se nós, sobreviventes, não saímos diminuídos moralmente pelos próprios benefícios que recebemos2. Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não tem Internet mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos. O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem a dignidade de um genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência prática, e quando procura se enfeitar com uma ideologia autoglorificadora, com as pompas de uma utopia futurista, sobretudo “científica”, aí, meus filhos, é que ele se encarna num Robespierre, num Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os séculos antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não nego. Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por ele, a vida de um cabrito. O progresso tanto mais vale quanto menos custa.
  7. Em todos os domínios e circunstâncias, sou contra o governo mundial.Ninguém deve governar o mundo, senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco Mundial, as grandes corporações multinacionais, a Internacional Socialista e todas as entidades do gênero são para mim a encarnação mesma da megalomania e do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os Estados nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia, “os anjos das nações são demônios”. Quer dizer apenas que o chefe mundial dos demônios é muito pior do que todos eles somados.

Que as pessoas acostumadas a identificar globalização e liberalismo não vejam aí contradição alguma. A unificação política e administrativa do mundo não beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre, instituindo a “Terceira Via”. Que é a Terceira Via? É aquela síntese de capitalismo e socialismo que, resguardando a liberdade de movimento para as grandes empresas que apoiam o governo, planeja, controla e determina tudo o mais. Essa síntese não é nova. Surgiu na década de 20 e se chama fascismo. Naquela época o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um fascismo mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias, os mais autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar o governo mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal, democrático, inteligente, capaz de tomar parte no jogo da globalização sem deixar que transformem nosso país numa província ou numa colônia de férias para turistas sexuais. E para isso é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um lado, exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento global e, de outro, incentivando maliciosamente reivindicações socialistas malucas e toda sorte de ressentimentos doentios, divide o povo, desorienta os intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa, a todos, à mercê do poder multinacional.

Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita, segundo as várias exigências que me parecessem mais razoáveis no momento e na situação, que já tive a ocasião de votar em Lula e em Roberto Campos, em Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães e em Delfim Netto, em Franco Montoro e em Fernando Henrique Cardoso. Não votei em Collor: tomei um Engove e votei no Lula. Na eleição seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei em FHC. Mas escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse em discussão e não conforme aquela linearidade rígida de quem é “direitista” ou “esquerdista” como se torce pelo Coríntians ou se crê em Jesus Cristo: de uma vez por todas e por toda a vida. Pois esta coerência só se pode ter nas coisas profundas, duráveis e do coração, e não nessa agitação epidérmica que é a política, onde, sem aviso prévio, de repente as pessoas, idéias e coisas se convertem em seus contrários.

NOTAS:

  1. Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais durável justamente porque se permitiram ajustes e combições “pragmáticas”.
  2. Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da “culpa coletiva”. O que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por nós.

 

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