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Qual mente humana?

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 2 de abril de 2006

Pretendendo distinguir-se de seus antecedentes antigos e medievais pela virtude do senso crítico em oposição à fé dogmática, o pensamento moderno nasce montado num conjunto de suposições de uma ingenuidade tão gritante, que é como se séculos de tirocínio crítico tivessem de repente desaparecido da memória humana e sido substituídos pela presunção infantil de saber tudo por meio de truques simples, como que por mágica.

A doutrina da mente humana como centro regulador e fonte dos significados, que é o dogma central da modernidade, só pode parecer verossímil se o filósofo basear todas as suas conclusões no modelo esquemático de um observador consciente perante um objeto passivo do mundo físico – pedra, árvore, montanha –, abstraindo-se por completo da ação que porventura esse objeto, se fosse um cão ou um ser humano, poderia exercer sobre o observador pretensamente inatingível e supremo.

Chega a ser estranho que, ante algum dos filósofos que proclamavam a soberania da mente como centro ordenador do caos externo, ninguém da platéia se erguesse para perguntar:

— Qual mente humana, cara pálida? A sua ou a minha? Eu sou um caos que você ordena ou você é o caos e eu a fonte da ordem? Pois, se você responder que nós dois nos ordenamos um ao outro, estará admitindo acima de nós ambos um princípio ordenador comum que nos transcende e que não fazemos senão colocar em ação no momento em que mutuamente ordenamos, nas formas reconhecíveis com que nos apresentamos visualmente um ao outro, os supostos aglomerados caóticos de nossas respectivas presenças corporais

De Descartes a Kant, um século e meio decorrerá antes que essa dificuldade tão óbvia apareça com plena clareza e receba um tratamento crítico mais elaborado. O poder ordenador sobre o presumido caos da realidade será então transferido da mente humana individual para a universalidade da razão e das formas a priori da sensibilidade. Mas essa solução é ridícula: equivale a supor que, entre dois observadores, cada um transmite ao outro impressões sensíveis caóticas que ambos põem em ordem instantaneamente graças à universalidade de suas respectivas razões e formas a priori. Ou seja: pode ser que, por baixo das formas humanas com que nos vemos mutuamente, você seja de fato uma galinha e eu um hipopótamo, e só nos vemos com formas humanas idênticas porque, malgrado a diferença imensurável e incognoscível de nossas respectivas estruturas corporais “em si mesmas”, fomos miraculosamente dotados de idêntica racionalidade humana e idênticas formas a priori da sensibilidade. A hipótese é tão rebuscada e artificiosa que chega a ser cômico que tenha sido vista como uma solução em vez de um problema. Não teria sido muito mais racional supor que nos vemos com formas humanas porque nossos corpos têm formas humanas, comproporcionadas aliás às suas respectivas estruturas de percepção e faculdades racionais? Ah, não! Isso nunca! Isso seria supor uma razão abrangente que ordenasse ao mesmo tempo o mundo, os seres e as respectivas faculdades de percepção e raciocínio. Seria incorrer em pecado mortal de aristotelismo. Seria falta de “senso crítico”. Senso crítico, nesse sentido, é fugir da experiência real e limitar o exame a exemplos ficcionais impossíveis em si, mas logicamente apropriados à conclusão que se pretende obter.

A. A. V. R.

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 19 de março de 2006

Tenho sugerido, para eliminar a polêmica em torno do aborto e satisfazer os instintos humanitários dos adeptos dessa prática, uma solução fácil e rápida que denomino Auto-Aborto Voluntário Retroativo (A. A. V. R.). Inspira-se no exemplo de um francês, deficiente físico, que processou seus pais por não o haverem abortado. Processou e ganhou. Ora, se um erro pode ser punido, com muito mais razão deve poder ser corrigido. Cada amante do aborto, portanto, pode alcançar a plena satisfação de suas reivindicações esmagando o próprio crânio a fórceps ou por meio de qualquer outro instrumento obstétrico apropriado e solicitando, antes ou depois desse ato cirúrgico, a anulação do seu registro civil de nascimento. Consumada a sua total erradicação do mundo físico e histórico, o distinto ainda teria a satisfação de poder ingressar na esfera do além portando um curriculum mortis idêntico àquele de milhões de bebês que, antes dele, exerceram o direito inalienável de ser abortados.

Observo, de passagem, que, se a apologia do abortismo é feita em nome da liberdade da mulher dispor do seu próprio corpo, a sentença acima referida mostrou que para os próprios abortistas essa liberdade não existe de maneira alguma, já que negam a cada mãe o direito dar prosseguimento a uma gravidez que seu filhinho, no futuro, possa vir a julgar indesejável. O A. A. V. R. protegerá os abortistas contra esse tipo de encrencas lógicas modelo exterminador-do-futuro, retirando-os deste baixo mundo antes que alguém se dê conta de que são completamente loucos.

***

Conforme se viu na Folha de S. Paulo do dia 12, até o sr. Luiz Werneck Vianna, que só não é ainda mais comunista do que é porque já preencheu com a substância gasosa do marxismo o vácuo inteiro do seu ser, admite que não sou porta-voz de nenhum interesse de classe. Esse reconhecimento é ainda mais confiável porque, na boca dele, não é elogio: é vitupério. Tanto que vem seguido da conclusão de que, por isso mesmo, não sou um intelectual. A única função dos intelectuais, na cartilha gramsciana seguida pelo sr. Werneck, é fazer propaganda pró ou contra os interesses burgueses. Como não faço nada disso, estou fora.

A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgeses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária.

Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame.

Tal é a profissão do sr. Werneck, que acredita por isso ser um “intelectual”. Naturalmente ele sabe que, no vocabulário gramsciano, qualquer prestadora de serviços eróticos que suba num caixote para discursar contra o baixo preço do michê já é, ipso facto, uma intelectual. Ele sabe que as coisas são assim, mas também sabe que as pessoas em geral não conhecem essa acepção do termo e o usam, ao contrário, para designar algo que lhes parece lindamente aristocrático. Portanto ele sabe que, ao negar-me a condição de intelectual no primeiro sentido — o que é perfeitamente justo –, soa como se me negasse as lindezas aristocráticas das quais apreciaria que a platéia o julgasse portador.

A forma mentis dos intelectuais ativistas é toda feita desses jogos de duplo sentido, que as fofoqueiras de arrabalde dominam tão bem mas em cujas complexidades eles às vezes se enroscam ao ponto de colar na própria testa o rótulo pejorativo que desejariam estampar na do inimigo.

U Tcháve nu Garnavá

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 5 de março de 2006

Pelo espírito de Juò Bananère
Psicografado por Olavo de Carvalho

Incapaz de descrever com minhas próprias palavras os últimos acontecimentos da República Luliana, recorri aos préstimos do Além e, invocando mais alto espírito, recebi dele a mensagem abaixo reproduzida. Para quem não conhece, Juò Bananère, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, foi o poeta que celebrou em português macarrônico, nos anos 20, a vida dos imigrantes italianos no Brasil (na internet há uma página comemorativa dele em http://bananere.art.br/ ).

Lá vigna alegre u Re Momo pulâno,
gua gorôa a brigliá nus gogorutto,
as bágna enórmi in festa arebolânu,
nas rúa levânu os abláusu tutto.

U Tcháve, indisgraziatto sargentó
Du pobri inzércitu da Invenezuela,
Di invédjia da gorôa non si güentó
I foi logu intentânu tomá ela.

Metêo as mão nus bôrso dus coitádu
Dus invenezuelânu – ay caramba ! –,
Saiu botânu banca pra tudus ládu
I gompró logo una isgóla di sámba.

Saiu dizênu qui era u Chè Guevara
I u Simó Bolíva reingarnádu.
U Ré, dianti de una tamagna gara
di bau ficó até inrevortádu,

Ma u Tcháve, qui no era nada trôxa,
Mandó logo gomprá tutto us jurádu,
Pra êglis fazê um jurgamento nas côxa
I dá pra êgli u prêmiu ambizionádu.

Agora é egli u tchéfi dus fulió
I nu vai largá a arapadura tam cêdu.
U Ré, guá maió cara di brocoió,
Fui mêmu é pra gáza tchupânu u dedu.

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