Posts Tagged Vaticano

O início da confusão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de novembro de 2012

Lendo esse tour de force historiográfico admirável que é O Concílio Vaticano II. Uma História Nunca Escrita, de Roberto de Mattei, chamaram-me a atenção duas séries de fenômenos que se repetiram ao longo de todo o Concílio, ao ponto de marcar para sempre a sua fisionomia no quadro da história das ideias no século 20. De um lado, aparece o contraste entre a malícia e destreza política da minoria progressista, cujo ativismo incansável venceu todas as resistências, impôs à assembleia praticamente tudo o que desejava, e a ingenuidade patética dos conservadores, que chegaram ali despreocupados, sem ter ideia de que os esperava um adversário tenaz e organizado.

A maioria do episcopado acreditava piamente que o modernismo teológico condenado no Syllabus de Pio 9 em 1864 estava morto e enterrado. O Concílio mostrou que ele estava se fazendo de defunto para assaltar o coveiro. Renovadas, maquiadas, camufladas sob mil aparências desnorteantes, patrocinadas no fim das contas pelos próprios papas que teriam a obrigação de condená-las, as teses modernistas reapareceram  com  força avassaladora, reduzindo os oponentes ao estado de estupor paralisante, de indignação impotente, que a Bíblia descreve como “escândalo”.

Mas esse fenômeno, por mais chocante que pareça, não foi propriamente novidade: apenas reencenou, em escala eclesial, o crônico triunfalismo suicida dos conservadores em geral – não só religiosos –, que universalmente confundem a teoria com a prática, a superioridade abstrata com a supremacia de facto, e, porque impugnaram os erros do adversário, acreditam que com isso o removeram do cenário histórico, muito se surpreendendo quando o bicho sai do túmulo com um sorriso de escárnio e os faz de otários pela enésima vez.

Se a vida fosse um tratado de lógica, as ideias cretinas não teriam vez; não existiriam revolucionários, demagogos insanos, inventores de sociedades paradisíacas que invariavelmente se transmutam, no devido tempo, em infernos sangrentos. Mas a vida  é um teatro do absurdo, onde as promessas enganadoras são justamente as mais persuasivas e onde desprezar os conselhos da sabedoria parece ser a obrigação número um do ser humano.

Na Igreja ou fora dela, revolucionários e conservadores esmeram-se em ignorar essa obviedade, os primeiros buscando incansavelmente novos e sofisticados motivos para deixar-se seduzir pela serpente, os segundos apostando que, deixada a si mesma, sem advertências especiais, desta vez Eva rejeitará a maçã. O que mais me surpreendeu no panorama traçado por de Mattei não foi, portanto, que essa tragicomédia de erros se repetisse. Foi a pobreza intelectual, a rigidez mental dos debates, onde posições firmadas  de antemão se confrontaram estaticamente, sem  interpenetração dialética nem fecundação mútua, reduzindo tudo, em última instância, a uma disputa política no sentido de Carl Schmitt, a uma contagem de cabeças.

O partido progressista, é verdade, chegou ali armado de um instrumental dialético mais aprimorado e sutil, mas de uma dialética perversa, que em vez de compreender em profundidade as intenções do adversário buscava apenas macaquear-lhes as aparências para convertê-las  nos seus opostos, dando-se os ares inocentes de quem seguia a tradição católica no instante mesmo em que fazia tudo para destruí-la.

 Em favor dos progressistas, deve-se reconhecer também que descreviam acuradamente o estado de coisas na sociedade moderna, apenas conferindo-lhe indevidamente o valor e o status de um princípio fundador, de uma fonte doutrinal, consagrando em lugar da revelação a autoridade do fato consumado. Por exemplo: o planeta está superpovoado? Suprima-se a primazia da procriação na doutrina católica do matrimônio. Os comunistas dominaram metade do mundo? Passemos a afagá-los, esquecendo tudo o que os papas falaram contra eles.

E o que fizeram os conservadores? Limitaram-se a repetir  mecanicamente a doutrina de sempre, opondo-a às pretensões modernistas como se estivessem no mesmo plano, como se fossem programas antagônicos de partidos políticos. Não fizeram o mínimo esforço de absorver e transcender criativamente essas pretensões, de provar em ato a superioridade da doutrina tradicional pela sua força de explicar e compreender desde a raiz a realidade sociocultural da qual seus adversários se faziam meros bonecos de ventríloquo e legitimadores acríticos, quando não apologistas deslumbrados.

A palavra “concílio”, que significa “assembleia”, vem da mesma raiz do verbo “conciliar”. Mas, nas condições mencionadas, a única conciliação possível entre os opostos era o acordo político, um ajuste mecânico de concessões que só favorece os mais astutos e oportunistas, como  acabou acontecendo. Nada da conciliação dialética que ensinava o velho Aristóteles, a qual exige absorção, integração e superação. A malícia de uns e a inércia intelectual de outros fizeram do Concílio o toque inaugural da confusão contemporânea.

Ludibriando os católicos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de outubro de 2010

Ao ver que ia perdendo o apoio da Igreja à sua protegida Dilma Roussef, cujo abortismo radical e persistente nem os desmentidos de última hora, nem as abjetas e blasfematórias encenações de fé católica da candidata puderam camuflar, o sr. Presidente da República, em desespero, decidiu recorrer ao crime eleitoral explícito: usando o Estado como instrumento de chantagem, ameaçou romper a concordata do governo brasileiro com o Vaticano caso o eleitorado católico se recuse a continuar sendo otário do PT, como o foi servilmente durante tantas décadas por obra e graça de comunistas vestidos de bispos.

O próprio Lula, algum tempo atrás, reconheceu que devia sua carreira política ao eleitorado católico, que aqueles bispos e a mídia cúmplice haviam logrado enganar cinicamente, encobrindo o programa comunista e abortista do PT com a imagem beatificada e perfumada de “Lulinha Paz e Amor”.

O fim da farsa, embora tardio e parcial, não só privou Dilma Roussef da anunciada vitória no primeiro turno, mas serviu para desmascarar a autoridade religiosa postiça de tantos sacerdotes e prelados que só entraram na carreira eclesiástica para aí realizar o programa estratégico de Antonio Gramsci: esvaziar a Igreja de todo o seu conteúdo espiritual e usá-la como dócil instrumento da política comunista. A Teologia da Libertação é o braço mais ativo desse programa e, como ninguém ignora, o catolicismo de Lula – e do PT em geral – é o da Teologia da Libertação. Não o de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Não deixa de ser útil lembrar que a Igreja, desde sua fundação, teve de lutar menos contra os seus inimigos ostensivos do que contra os seus falsificadores. Tal é, aliás, a definição de “heresia”, palavra que hoje tantos usam sem conhecer-lhe o significado: não qualquer doutrina anticatólica, ou não católica, e sim a falsa doutrina católica oferecida indevidamente em nome da Igreja. Lembrem-se disso quando algum professorzinho aparecer alardeando que a Igreja “perseguia doutrinas adversas”. Heresia não é divergência de idéias, é crime de fraude. Da Antigüidade até hoje, gnósticos, arianistas e tutti quanti jamais hesitaram em fingir-se de católicos para vender, sob roupagem inocente, as idéias mais opostas e hostis aos ensinamentos de Cristo. Com freqüência, obtiveram nesse empreendimento sucessos espetaculares, embora passageiros. Ainda no século XIX praticamente todos os seminários da França e da Alemanha ensinavam, com o nome de teologia católica, uma pasta confusa de idéias cartesianas, iluministas e românticas, na qual os jovens aprendizes, iludidos pelos prestígios intelectuais do dia, não enxergavam nada de maligno. Foi só a decisiva intervenção do Papa Leão XIII que acabou com a palhaçada, mediante a bula “Aeterni Patris” (1879), que restaurou o ensino da teologia católica tradicional. Se quiserem uma boa resenha desses fatos, leiam a obra em quatro volumes de Etienne Couvert, “De la Gnose à l’Ecumenisme” (Éditions de Chiré, 1989).

No século XX, à medida que o movimento neotomista inaugurado por Leão XIII reconquistava o prestígio intelectual da Igreja, os eternos falsários abdicaram temporariamente da propaganda aberta e voltaram-se, em massa, para a estratégia da infiltração discreta, praticada em escala industrial a partir da década de 30 graças à iniciativa da KGB (leiam o depoimento de Bella Dodd em “School of Darkness”: há cópias circulando pela internet). Foi só em 1963, no Concílio Vaticano II, que, sentindo-se protegidos pela atmosfera de mudança, voltaram a vender impunemente, ao público geral, seus simulacros de cristianismo.

A fundação do PT e toda a sua carreira de crimes inigualáveis não foram senão a extensão remota desses fatos a um país periférico. O PT sempre foi a encarnação viva de um catolicismo de fancaria, concebido para ludibriar os fiéis e induzi-los a trabalhar pelo avanço do comunismo.

Não espanta que a própria entidade que personifica esse catolicismo ante o público seja, ela própria, uma fraude publicitária: a CNBB fala em nome da Igreja e posa, ante os fiéis, como expressão suma da autoridade eclesiástica, mas não é sequer uma entidade da Igreja, é uma simples sociedade civil sem lugar nem função na hierarquia católica. Os bispos, individualmente, têm autoridade para falar em nome da Igreja. A CNBB, não. Quando a CNBB repreende um bispo, ela falsifica e inverte a hierarquia. Está na hora de os fiéis, em massa, tomarem consciência disso.

Influências discretas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 8 de maio de 2008

Quando o pintor e poeta suíço Frithjof Schuon (1907-1998) voltou do Oriente nos anos 40, transfigurado em mestre supremo de uma das mais influentes organizações esotéricas muçulmanas e anunciando que iria islamizar a Europa, deu a clara impressão de que estava completamente louco. Hoje convém examinar com humildade as suas palavras e o curso das suas ações, cuja eficiência avassaladora contrasta com a total discrição com que foram empreendidas.

Desde logo, a criação da tariqa (loja iniciática islâmica) de Schuon em Lausanne foi saudada pelo escritor esotérico René Guénon (1886-1951) como o único resultado promissor obtido pelos seus próprios esforços de quatro décadas. Isso mostra claramente o sentido desses esforços e, malgrado a posterior ruptura entre Guénon e Schuon, evidencia a perfeita continuidade da obra desses dois esoteristas, cujos discípulos respectivos hoje em dia preferem odiar-se mutuamente em vez de celebrar a vitória comum sobre uma Europa espiritualmente debilitada.

Na década de 20, Guénon, autor de análises magistrais sobre a decadência do Ocidente europeu, havia concluído que só três caminhos se ofereciam a essa civilização: a queda na barbárie, a restauração da Igreja católica ou a islamização. Quando pronunciou aquelas palavras sobre Frithjof Schuon, ele já havia desistido da segunda alternativa. O fiasco do Concílio Vaticano II, cujas aparências os papas em vão tentam ainda salvar, veio a provar que seu diagnóstico, em linhas gerais, estava certo.

A Europa radicalmente descristianizada é hoje o palco de uma concorrência aberta entre a barbárie e o islamismo. Não há terceira via, aparentemente (“civilização laica” é piada). A possibilidade de um resgate da opção cristã depende inteiramente da influência americana ou da dedicação admirável de padres e pastores orientais e africanos que, num giro paradoxal da História, voltam para tentar recatequizar o povo que os cristianizou.

A ação de personagens como Guénon e Schuon passa despercebida à mídia, aos analistas políticos e aos “intelectuais” em geral, que têm os olhos fixados hipnoticamente na superfície vistosa dos acontecimentos. Mas sem ela a “ocupação por dentro” por meio da imigração teria permanecido inócua, por falta das condições culturais que desarmaram a elite intelectual e política européia. Guénon e Schuon muito contribuíram para criá-las, subjugando as camadas mais altas e circunspectas dessa elite ao culto da superioridade intelectual do Oriente em todas as áreas decisivas, fora as ciências naturais e a tecnologia.

Guénon assinava seus primeiros artigos com o pseudônimo Sphynx (Esfinge), denotando que seus leitores não tinham opção senão aproveitar inteligentemente suas lições ou deixar-se dominar por elas sem entendê-las. Num único país europeu essas lições foram meditadas com seriedade por pensadores independentes: a Romênia. Quando morei em Bucareste, não encontrei ali um só intelectual eminente que não tivesse uma compreensão profunda e crítica da obra de Guénon.

No resto da Europa, o que se viu foi a alternância entre a recusa incompreensiva e a submissão devota, incluindo um número significativo de conversões secretas ao islã e a arregimentação de muitos intelectuais e líderes – entre eles o futuro rei da Inglaterra – no esquema de proteção estatal ao expansionismo islâmico. Não por coincidência, a Romênia é um dos raros países europeus onde a penetração muçulmana é irrisória.

Para fazer uma idéia da força da influência sutil de Guénon e Schuon, basta saber que este último interferiu diretamente na produção da crise entre monsenhor Lefèvre e o Vaticano, em 1976, e até hoje os historiadores católicos – sejam progressistas ou conservadores – nem se deram a mínima conta disso.

Sei que escrevi este artigo para poucos leitores e que, destes, alguns dos que podem mais ou menos compreendê-lo vão seguramente detestá-lo. Mas há coisas que é preciso dizer só para, no futuro, não ser acusado de dar testemunho tardio.

Veja todos os arquivos por ano