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Pensem nisso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de janeiro de 2010

Um dos traços constantes da vida brasileira é a coexistência de dois tipos de política heterogêneos e incomunicáveis: de um lado, a política “profissional” cuja única finalidade é o acesso a cargos públicos, compreendidos como posições privilegiadas para a conquista de benefícios pessoais ou grupais (acompanhados ou não de boas intenções de governo); de outro, a política revolucionária, empenhada na conquista do poder total sobre a sociedade e na introdução de mudanças estruturais irreversíveis.

A segunda usa ocasionalmente os instrumentos da primeira, mas sobretudo cria os seus próprios, desconhecidos dela. Os “movimentos sociais”, o adestramento de formidáveis massas militantes dispostas a tudo, a ocupação de espaços não só na administração federal mas em todas as áreas estrategicamente vitais e, last not least, a conquista da hegemonia cultural estão entre esses instrumentos, que para o político “profissional” são distantes e até incompreensíveis, tão obsessiva e autocastradora é a sua concentração na mera disputa de cargos eleitorais.

As próximas eleições presidenciais vão opor, numa disputa desigual, as armas da política revolucionária às da política “profissional”. Estas últimas consistem apenas nos meios usuais de propaganda eleitoral, enquanto as daquela abrangem o domínio sistêmico de todos os meios disponíveis de ação sobre a sociedade: o político “profissional” tem a seu favor apenas os eleitores, que se manifestam uma vez a cada quatro anos e depois o esquecem ou passam a odiá-lo. O revolucionário tem a vasta militância organizada, devotada a uma luta diária e constante, pronta a matar e morrer por aquele que personifica as suas aspirações.

Nas últimas décadas a expansão maciça da política revolucionária colocou os políticos “profissionais” numa posição de impotência quase absoluta, que reduz a praticamente nada as vantagens de uma eventual vitória nas eleições.

Se eleito, o Sr. Jose Serra terá de comandar uma máquina estatal dominada de alto a baixo pelos seus adversários, a começar pelos oito juízes lulistas do Supremo Tribunal Federal. O PT e seus partidos aliados comandam, além disso, uma rede de organizações militantes com alguns milhões de membros devotos, prontos a ocupar as ruas gritando slogans contra o novo presidente ao primeiro chamado de seus líderes. Comandam também o operariado de todas as indústrias estratégicas e a rede de acampamentos do MST espalhados ao longo de todas as principais rodovias federais e estaduais: podem paralisar o país inteiro da noite para o dia. Reinam, ademais sobre um ambiente psicossocial inteiramente seduzido pelos seus estereótipos e palavras de ordem, a que nem mesmo seus mais enfezados inimigos ousam se opor frontalmente.

Somente a política revolucionária entende o que é o poder na sua acepção substantiva. O velho tipo do político “profissional” entende apenas a disputa de cargos, confunde o mandato legal com a posse efetiva do poder. Sem militância, sem ocupação de espaços, sem guerra cultural, não há domínio do poder. Fernando Collor de Mello pagou caro por ignorar essa distinção elementar: confiou na iniciativa espontânea de seus eleitores – massa espalhada e amorfa, incapaz de fazer face à força organizada da militância.

Não vejo no horizonte o menor sinal de que os adeptos do Sr. José Serra tenham aprendido a lição: hipnotizados pela esperança da vitória eleitoral, não vêem que tudo o que estão querendo é colocar na presidência um homem isolado, sem apoio militante, escorado tão somente na força difusa e simbólica da “opinião pública” — um homem que, à menor sombra de deslize, terá contra si o ódio da militância revolucionária explodindo nas ruas e será varrido do cenário político com a mesma facilidade com que o foi o ex-presidente Collor.

Há pelo menos vinte anos venho advertindo aos próceres antipetistas que o voto, ainda que avassaladoramente majoritário, não garante ninguém no poder: o que garante é militância, é massa organizada, disposta a apoiar o eleito não só no breve instante do voto mas todos os dias e por todos os meios. Vejam a situação da governadora do Rio Grande do Sul e entenderão o que estou dizendo: quando a oposição se vangloriou de ter “varrido o PT do Estado gaúcho”, não percebeu que o expulsara somente de um cargo público.

Não desprezo as vitórias eleitorais, mas sei que, por si, elas nada decidem a longo prazo. E não vejo que, até agora, as forças de oposição tenham tomado consciência disso.

Boicotando um herói nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 14 de fevereiro de 2008

Nesta época de frouxos, omissos e subornados, o juiz federal Odilon Rodrigues de Oliveira é um brasileiro diferente. Eu gostaria de dizer que ele é simplesmente um brasileiro, mas não posso. Ele é honesto, corajoso e inflexível na busca da verdade — três qualidades que em geral não se encontram nem na Presidência da República, nem no Parlamento, nem no Supremo Tribunal Federal, nem no comando das Forças Armadas, nem no alto clero, nem na grande mídia, nem nas cátedras universitárias, nem nas classes letradas em geral. No povo, não digo que tenham desaparecido de todo, mas é difícil encontrá-las juntas. Os honestos são frouxos, os corajosos berram a primeira tolice que lhes passa pela cabeça, os que buscam a verdade guardam-na para si, tremendo de medo, ostentando em lugar dela um sorriso de complacência com a mentira triunfante, e não raro chamam a isso caridade cristã.

Desde que descobriu provas da estreita colaboração entre a narcoguerrilha colombiana, o PCC e o Comando Vermelho, o juiz Odilon está jurado de morte. Não pode sair às ruas nem voltar para casa. Há muitos meses ele passa os dias e as noites trancado no seu gabinete na 3ª Vara Federal de Campo Grande (MS), alimentando-se de sanduíches, dormindo numa cama de campanha. Enquanto muitas excelências federais desfrutam nos melhores hotéis e restaurantes as delícias dos cartões corporativos entre um e outro aceno de cumplicidade fraternal às Farc nas reuniões do Foro de São Paulo, ele zela pela segurança do Brasil. Ele não sairá do seu abrigo enquanto ela não for restaurada. Segundo deduzo de uma notícia recente, isso vai demorar.

A notícia é a seguinte. Sabendo perfeitamente que o juiz está para ouvir cinqüenta testemunhas de um processo no qual o traficante Fernandinho Beira-Mar e 23 dos seus comparsas são acusados de lavar R$ 12 milhões obtidos no tráfico internacional de drogas, o Supremo Tribunal Federal decidiu garantir aos réus presos o direito de estar presentes a todos os atos dos processos judiciais aos quais respondem. O problema é que essa decisão torna praticamente impossível levar o processo adiante. O próprio juiz já havia advertido em março de 2007: “Não tenho dúvidas de que a presença de Beira-Mar na fronteira representa alto risco em relação à sua própria pessoa. Pode até haver tentativa de resgate, o que acho difícil de ser concretizado, mas o risco de vida é incomparavelmente maior.”

O risco não é só para o acusado. É para o próprio juiz. Ao interrogar as testemunhas na presença de todos os réus, ele estará diretamente ao alcance daqueles que juraram matá-lo. A decisão do STF equivale, na prática, a uma sentença de morte lavrada contra Odilon Rodrigues de Oliveira pelo crime de haver revelado os delitos daqueles a quem os líderes do nosso partido governante preferem continuar tratando, em privado, como companheiros diletos, e em público como honrados “combatentes pela liberdade”.

A maioria das testemunhas reside no município de Coronel Sapucaia (MS), cidadezinha que só uma avenida separa de Capitán Bado, no Paraguai, e na qual o réu principal tem aliados e inimigos. Entre estes últimos, destaca-se o traficante Carlos Cabral, cujo filho de três anos foi assassinado pelos homens de Beira-Mar. Cabral jurou vingança. A presença dos réus na cidade é a oportunidade que ele espera. Mesmo tendo transferido as audiências para a cidade vizinha de Amambaí, o juiz está sob o risco de ter de interrogar as testemunhas sob uma chuva de balas. Para evitar isso, ele pediu ao Comando Militar do Oeste (CMO) autorização para fazer as audiências no Regimento Militar de Amambaí. Como o Exército respondesse que isso dependia de autorização da presidência da República, o juiz encaminhou o pedido ao ministro da Defesa, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. Adivinhem o resultado.
Jobim alegou que o Exército não pode nem ceder salas para a audiência nem manter os presos sob custódia no quartel, porque existem — notem o estilo — “óbices constitucionais, legais e institucionais, acometendo a instituição de providências ou responsabilidades para as quais não está devidamente preparada e legalmente amparada”.

O juiz não sabe mais a quem apelar: “Criou-se um impasse e o processo está parado.”

A notícia saiu no último dia 10 (v. Presença de Beira-Mar cria impasse em processo), com um centésimo do destaque que merecia. E foi publicada a seco, sem a mínima referência às suas implicações políticas e morais mais diretas, que são óbvias para quem estuda o assunto mas não necessariamente perceptíveis ao público em geral. Para percebê-las, é preciso raciocinar um pouco:

1º. O sr. presidente da República é um parceiro tradicional dos narcoguerrilheiros colombianos no quadro do Foro de São Paulo e já mostrou sua total falta de disposição não só de fazer algo contra eles mas até de chamá-los pela denominação apropriada de terroristas.

2º. Como assinalei recentemente (v. Infração de trânsito), o partido governante faz tudo o que pode para dar apoio aos agentes das Farc presos no Brasil, ao mesmo tempo que, por um lado, os qualifica de bandidos comuns para fingir que não têm vinculação com o movimento esquerdista e, por outro, os aceita como membros regulares do Foro de São Paulo, provando que essa vinculação existe.

3º. Se, nesse quadro, duas decisões sucessivas das autoridades federais – o STF e o ministro da Defesa – boicotam os esforços de um herói nacional que revelou verdades indesejáveis sobre os amigos do partido governante e paralisam um processo que arrisca trazer à tona uma nova dose dessas verdades, a chance de que se trate de mais uma dupla e feliz coincidência somando-se a tantas outras coincidências anteriores é, com toda a evidência, das mais modestas. Mas, se for provado que não se trata de coincidências, então será preciso concluir que todo o establishment federal se tornou um aparato auxiliar do Foro de São Paulo e das Farc. E, neste caso, será ridículo continuar falando em ordem, lei, constituição, direitos, etc. No império do crime não há nada disso.

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