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Filósofos no exílio

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de setembro de 2011

O exílio voluntário ou forçado – mais freqüentemente voluntário – parece ser um destino mais comum entre os filósofos do que entre qualquer outro grupo de intelectuais criadores. Sócrates só não foi embora de Atenas porque achou que estava velho demais para aceitar essa oferta do tribunal que o condenou. Preferiu a morte. Platão retirou-se para uma cidade vizinha, na esperança de que suas idéias pudessem inspirar o governo local, e só voltou para Atenas porque o plano fracassou. Aristóteles passou praticamente toda a sua vida ativa longe da terra natal. Descartes não escreveu um único livro na França; tudo na Holanda, onde morou por vinte anos. Spinoza não saiu do país, mas correu para longe de Amsterdam, onde os rabinos o haviam condenado por heresia. John Locke escreveu sua obra principal em Paris, e David Hume foi redigir seu Tratado nas vizinhanças do colégio de La Flèche, o mesmo do qual Descartes procurara guardar distancia. Emil Cioran, espremido numa mansarda em Paris, implorava aos visitantes que não falassem romeno com ele, pois isso atrapalhava o esforço insano que ele desenvolvia para se tornar o maior prosador francês do século (conseguiu). E nem menciono a infinidade de filósofos que fugiram da perseguição comunista e nazista, indo se instalar em Paris, em Londres, na Flórida ou na Califórnia. A lista ultrapassaria de muito as dimensões deste artigo. Muitos deles, passado o perigo, não conseguiram se adaptar de novo no país de origem, preferindo permanecer para sempre na pátria adotiva.

Em comparação, pintores, músicos e romancistas parecem necessitar da atmosfera nativa, longe da qual sentem definhar sua inspiração. Quem pode imaginar Dostoievski ou Tolstói afastados para sempre da Rússia, Dickens morando em Miami, Giovanni Verga sem a Sicília ou William Faulkner longe do seu querido e abominado Deep South? Talvez o símbolo mais característico da ligação do escritor com sua terra natal tenha sido George Webber, o herói de You Can’t Go Home Again, de Thomas Wolfe, que saiu buscando sua alma no vasto mundo e só a encontrou ao voltar para casa. Soljenitsin, liberto da opressão comunista depois de décadas de sofrimento, premiado e instalado num hotel suíço de cinco estrelas, queixava-se de que ali não podia escrever, porque não ouvia ninguém em volta falando russo.

Toda regra, é claro, tem exceção. Kant jamais ultrapassou as fronteiras da sua pequena Koenigsberg, mas não sei se o faria caso tivesse saúde para isso. Benedetto Croce era tão apegado à sua Nápoles que, comentavam os amigos, conhecia cada pedra das ruas da cidade. Os dois maiores filósofos romenos – Petre Tsutsea e Constantin Noica – não saíram do pais: o primeiro ficou na cadeia, o segundo em prisão domiciliar. Não sei aonde teriam ido parar se a polícia relaxasse a vigilância.

No mais, o exílio dos filósofos tem mesmo todo o jeito de ser uma constante, ou quase. Um motivo óbvio para isso é o impulso de manter distância da cultura natal para descontaminar-se dela por dentro e olhá-la com independência. Distância externa e interna, portanto. Toda filosofia tem pretensões de validade universal e, se alguma inspiração obtém do meio originário, logo busca se desvencilhar dele para entrar num diálogo com homens de todos os lugares e de todas as épocas.

O exílio filosófico também não e só espacial, mas temporal. O filósofo não pode ser um mero “homem do seu tempo”: tem de abrir-se a influências vindas de séculos remotos, que o libertarão da prisão mental da sua época e, através dele, lançarão as sementes de um futuro às vezes bem longínquo. Sto. Tomas adquiriu sua formação mais de Aristóteles que de qualquer dos seus contemporâneos. Só veio a receber a atenção universal que merecia depois da Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII (1879). Leibniz deixou-se impregnar profundamente de uma filosofia escolástica que os homens do seu século desprezavam e julgavam extinta para sempre. Graças a isso, teve intuições cujo acerto magistral só a ciência do século XX viria confirmar. Martin Heidegger foi mais influenciado pelos pré-socraticos do que mesmo por seu mestre imediato, Edmund Husserl (ele próprio um exilado voluntário). E René Descartes, malgrado seus ocasionais arroubos de ineditismo, acabou mostrando um agudo senso da supratemporalidade ao confessar: “Os antigos peripatéticos não disseram uma palavra que não fosse nova, nem eu alguma que não fosse velha.”

A mentira estrutural

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de setembro de 2007


Quando falo em “mentalidade revolucionária”, não me refiro só aos revolucionários ex professo, mas a uma certa estrutura de percepção que pode estar presente em indivíduos alheios à atividade política. Um de seus traços característicos é o pseudoprofetismo: o sujeito se imagina o portador de um novo mundo – que pode ser um novo mundo científico, artístico, moral, religioso, político ou tudo isso ao mesmo tempo – e tão inebriado fica ante a visão desse futuro brilhante que sua percepção da vida atual se torna deformada, grotesca e, no sentido mais radical e absoluto, falsa.

A mentira e o fingimento, que a humanidade normal usa como expedientes ocasionais e momentâneos, são no revolucionário a base constante da sua visão de si mesmo e do universo. Eu usaria a palavra “histeria” para descrever esse quadro, se ele não fosse compatível com uma conduta externa aparentemente normal em tudo quanto esteja fora da área de atuação específica do indivíduo. Quando René Descartes, nas Meditações de Filosofia Primeira, confunde o seu eu temporal concreto com a idéia universal do eu cognoscente e passa de um ao outro sem perceber que toma como narrativa autobiográfica o que é mera análise lógica de um conceito abstrato, isso é evidentemente um sintoma histérico, embora na vida diária o filósofo não desse o menor indício de histeria. Talvez “histeria intelectual” seja o termo. E histeria significa deixar-se arrebatar pelo próprio fingimento ao ponto de acreditar nele piamente.

No revolucionário político, o fingimento exerce por isso mesmo uma função totalmente diversa daquela que tem nos políticos normais. Estes mentem quando lhes interessa, com a parcimônia necessária a manter um controle razoável da própria encenação. Suas mentiras são conscientes e refletidas, compatíveis com o realismo mais grosso e saudável. O revolucionário, como mede a vida presente com a régua do futuro maravilhoso que imagina personificar, simplesmente não pode enxergar as coisas como são. Ele tem de falsificar tudo para que os méritos hipotéticos da sociedade prometida sejam tomados como virtudes atuais da sua própria pessoa e do seu partido. A mentira do político comum é instrumental e pontual, a do revolucionário é estrutural, permanente e expansiva: não podendo dosar conscientemente a mentira e a verdade, ele tem de destruir no público mesmo a capacidade de fazer essa distinção. Daí a “revolução cultural”, o desmantelamento sistemático da inteligência popular.

Quando o sr. Luís Inácio posa de nacionalista durão ao proclamar que “a Amazônia tem dono” e poucas horas depois abre o território amazônico à cobiça internacional como quem anuncia um loteamento, o contraste é tão ostensivo, tão obviamente escandaloso, que a hipótese do fingimento instrumental tem de ser afastada in limine. O sr. Luís Inácio não é idiota ao ponto de pensar que pode enganar alguém com uma mentira tão patente. Mas é louco o bastante para deixar-se enganar ele mesmo por ela, acreditando que o entreguismo, se praticado por um representante autorizado do futuro beatífico, se torna instantaneamente uma espécie de amor à pátria. Transfigurada pelo pseudoprofetismo, a contradição vira identidade, e honny soit qui mal y pense.

Longe de camuflar o abismo entre suas palavras e seus atos, o revolucionário o exibe com uma candura estupefaciente, que desarma o espectador. Ele não quer propriamente enganar o público. Quer estupidificá-lo para que viva em estado de engano permanente, como aliás ele próprio.

90 anos em 9 segundos

 Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 14 de setembro de 2000

“No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Seus cochilos acabaram por produzir o sonho filosófico conhecido como escolástica, que tinha por base Aristóteles e os ensinamentos da Igreja. A filosofia foi rudemente despertada desses devaneios medievais no século 17 pela chegada de Descartes, com sua declaração `Cogito, ergo sum’ (Penso, logo existo). Uma era de esclarecimento havia começado: o conhecimento baseava-se na razão.”

(Paul Strathern, Nietzsche em 90 minutos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.)

O livro que traz essa afirmação, escrito para jovens, é hoje abundantemente distribuído entre estudantes do ensino médio. Quem quer que ingresse no estudo da filosofia por meio dele levará consigo, provavelmente pelo resto da vida útil do seu intelecto, um escotoma, um ponto cego bem no meio do seu horizonte de visão. Nada tem mais força hipnótica sobre as mentes juvenis do que um tacanho preconceito revestido da aura de uma verdade libertária. Uma vez introjetado o esquema do sr. Strathern, o cérebro do leitor já não poderá ser reconduzido à normalidade nem mesmo pela improvável leitura direta dos textos aludidos – porque os textos escolásticos estarão acima da capacidade de quem aprendeu filosofia com o sr. Strathern e os de Descartes serão lidos na linha sugerida pelo sr. Strathern.

Na realidade, o que ele diz é o contrário do que se encontra nos textos. Nas célebres Meditações de Filosofia Primeira, René Descartes, em busca da certeza absoluta, fundamento de todas as ciências, encontra como primeiro e inabalável ponto de apoio a certeza do próprio pensamento. Se penso, existo, ao menos enquanto penso. Não posso pensar e, ao mesmo tempo, negar que existo. Tal é a descoberta que ele enuncia no “Cogito ergo sum”. Só que, em seguida, ele percebe que dessa certeza puramente subjetiva ele não pode deduzir nada sobre o mundo exterior, nem mesmo a existência de um universo físico em torno. Preso na sua jaula solipsista, Descartes constata que, para sair dela, precisa de uma segunda certeza: a certeza do mundo físico. E onde ele vai buscá-la? Vai buscá-la no seguinte argumento: se tenho em mim o sentimento da existência do mundo exterior e se este sentimento não pode ser deduzido de mim mesmo, isto é, da certeza inicial do “cogito”, então só pode ter sido posto na minha alma pelo próprio Deus; e, como Deus é bom, não iria me enganar infundindo-me a certeza de coisas erradas. Logo, fica provado que o mundo exterior existe.

Compreenderam bem? Numa só penada, o devoto milico aposentado, que acabara de fazer uma peregrinação à Igreja de Nossa Senhora de Loreto para pedir inspiração, faz, não da razão, mas da fé cega na bondade de Deus, a base da certeza do mundo exterior, o princípio de todo conhecimento objetivo, o fundamento das ciências da natureza. É um monumental exagero de carolice a que nem o mais piedoso dos escolásticos jamais ousaria chegar, de vez que todos estavam advertidos, pelo menos desde Boécio (século 6) da necessidade de depurar a fé no cadinho da razão.

Por isso mesmo, F. W. von Schelling, um dos gigantes da modernidade, sobre o qual aliás não poderia pesar a menor suspeita de ser católico, dizia que, na passagem da escolástica ao cartesianismo, a filosofia tinha caído para um nível pueril. Leibniz, de maneira mais delicada, afirmava a mesma coisa, e também Husserl, entre homenagens de praxe a René Descartes, deixava claro não compactuar com o que chamava, pejorativamente, “exercícios de cinegética antiescolástica”.

Está claro que o sr. Strathern, seja ele quem for, jamais leu Descartes. Seu Descartes não é o filósofo de carne e osso, autor do Discurso do Método e das Meditações. É uma imagem popular, colhida na cultura de almanaque e reproduzida em milhões de almanaques para a imbecilização geral dos jovens.

Para metê-la no miolo mole de um ginasiano distraído, não é preciso nem os 90 minutos mencionados no título: sua ação cretinizante é instantânea, seu efeito, duradouro. Em nove segundos o leitor terá a garantia de, pelos 90 anos seguintes, não compreender nem René Descartes, nem a escolástica, nem, a rigor, coisa nenhuma.

No entanto, não é somente pela sua facilidade de absorção que o ensinamento do sr. Strathern será bem recebido. É também porque coincide, no tom geral, com o discurso anticatólico cuja repetição psitacídea é a condição inicial para, nas classes falantes, um sujeito ser admitido como espírito esclarecido.

E é assim que, de esclarecimento em esclarecimento, com a ajuda de solícitas professorinhas e devotados jornalistas culturais, a burrice, cada vez mais, rege o mundo.

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