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Moral e genocídio

Olavo de Carvalho


O Globo, 1o de setembro de 2001

Não me lembro de jamais ter falado ou pensado mal de alguém por sua conduta sexual, por mais esquisita que ela pudesse parecer aos que me rodeavam. Além de não me considerar um buquê de virtudes para que a comparação com os outros fosse de algum reconforto para o meu ego periclitante, conheço-me o bastante para poder dizer, com toda a sinceridade, que sou incapaz de me interessar pela vida privada de quem quer que seja. Posso estar errado, mas, numa época em que o genocídio e as prisões em massa se tornaram banalidade, alguém perder o seu tempo escandalizando-se com pequenas indecências me parece uma imperdoável frescura.

Na base de toda moral está o senso das proporções. O segundo mandamento formula-o da maneira mais eloqüente. Quando passar a era dos Robespierres, Hitlers, Lenins, Pol-Pots e Castros, quando o mundo voltar ao normal e a humanidade reconquistar seu rosto humano, talvez os filmes pornôs e a gandaia geral comecem a me incomodar. Por enquanto, considero-as apenas naturais reações de fuga diante de uma situação intolerável, que não passa sequer pela consciência: vai direto de um sentimento de terror difuso para uma cama de bordel, onde tudo se dilui, por instantes, num deleitoso esquecimento.

O próprio Papa já disse que numa época de loucura coletiva o peso dos pecados não é o mesmo.

Daí o meu profundo desinteresse e até irritação ante campanhas moralizantes de qualquer espécie. No entanto, por idênticas razões, não posso suportar que a defesa do direito à esquisitice se torne, ela própria, um neomoralismo mais intolerante e mais imbecil do que qualquer puritanice já registrada ao longo da História. Quando um conservador se enche de indignação ante coisas que no máximo seriam dignas de riso ou de piedade, sinto estar na presença de um louco enfurecido. Mas, quando um apologista de qualquer “sex lib” pretende que seus gostos sexuais sejam mais dignos de respeito e de proteção estatal do que a devoção religiosa dos outros, aí vejo que o louco já passou dos limites da loucura e entrou no campo da maldade pura e simples. Nunca, em hipótese alguma, a busca de um prazer corporal qualquer será coisa mais elevada, mais respeitável e mais digna de proteção oficial do que a busca da verdade, sobretudo quando esta importa em sacrifícios pessoais, como se dá no caso da devoção religiosa, de qualquer devoção religiosa, e mais ainda daquela que siga a linha de alguma das religiões antigas e universais, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, que construíram a humanidade e fizeram de nós alguma coisa mais valiosa que um chimpanzé.

Deleites eróticos, gastronômicos, químicos ou indumentários são e serão sempre direitos menores, em cuja defesa não se deve empregar mais tempo ou energia do que na preservação da dignidade humana ou do direito de pensar. Se duvidam da sinceridade com que digo isso, por favor observem que, sendo fumante contumaz e impenitente, muito constrangido pelo antitabagismo psicótico reinante, raramente ou nunca me lembro de escrever em defesa do meu direito de fumar.

Se perdemos o senso da diferença entre o prazer e o dever, se não somos mais capazes de estabelecer uma hierarquia de prioridades entre o que gratifica o nosso corpo e o que eleva nossa consciência, então nos tornamos indignos da condição humana e damos razão aos que, considerando a produção de gente uma atividade tecnológica e industrial como qualquer outra, pretendam atirar à câmara de gás os que não sejam aprovados no controle de qualidade.

Se prezamos antes o deleite do corpo do que os deveres do espírito, então, sem a menor dúvida possível, somos neodarwinistas e nazistas até a medula do nosso ser. Por isso mesmo é que considero indecente, hediondo e intolerável o critério de prioridades adotado pelo Ministério brasileiro da Justiça nas propostas que pretende apresentar à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, que começou ontem em Durban, África do Sul. Ultrabadalado por causa de suas “posições progressistas”, o Ministério pretende atacar de frente toda discriminação sexual e isto está muito bem. O que não está muito bem é que, na sua afetação de bons sentimentos pelos grupos discriminados, essa entidade não tenha uma só palavra a dizer em favor dos católicos que estão sendo massacrados na China e cujos apelos desesperados, jamais ecoados pela mídia nacional, nos chegam diariamente através da agência vaticana Fides. Muito menos se preocupa o bondoso Ministério com as mães chinesas que continuam a ser fuziladas às pencas quando se recusam a abortar seus filhos. Nem tem, a piedosíssima repartição burocrática, o menor olhar de piedade para com os religiosos budistas que, após o massacre de um milhão de seus compatriotas, fugiram do Tibete e hoje vivem errantes pelo mundo. Nada disso comove o sentimentalíssimo dr. Gregori, embora ele deva ao prestígio da religião a sua carreira política.

Sim, sofrer constrangimento por ser homossexual é triste, é revoltante. Mas aquele que sofre não apenas constrangimentos menores, e sim prisão, tortura e morte por ter consagrado sua vida ao espírito, será ele menos digno de proteção e respeito?

A inversão das proporções na agenda libertária do nosso Ministério é tanto mais abominável quando se considera que os mesmos países que se destacaram na perseguição a grupos religiosos são também notórios repressores de homossexuais, se bem que em grau menor. Mas neste caso o Ministério estrila, naquele não. Por que o direito de uns ao prazer há de ser mais sacrossanto que o direito de outros à vida? Será que, no entendimento desse nosso governo, “gozar é preciso, viver não é preciso”?

Nenhuma perseguição ou discriminação sofrida por qualquer grupo sexual, racial, ou cultural ao longo de toda a história humana se compara, em números e em crueldade, ao destino terrível que a modernidade impôs aos religiosos. Mais seres humanos foram condenados à morte desde o século XIX por serem ortodoxos, católicos, protestantes, budistas, judeus ou muçulmanos do que, ao longo de todos os séculos, por qualquer outro motivo.

Mesmo a discriminação racial, longe de ser um fenômeno básico e independente, não foi senão o efeito colateral da aplicação de doutrinas materialistas e darwinistas que pretenderam, com base numa pseudobiologia, desbancar a convicção religiosa da substancial igualdade dos homens perante o Eterno. A multiplicidade aparente dos sintomas da maldade coletiva remete sempre a uma doença básica: a revolta contra Deus.

Se a conferência de Durban e o nosso Ministério da Justiça ocultarem esse fato sob uma tagarelice desproporcional em torno de formas menores e secundárias de discriminação e perseguição, eles terão assumido, perante a História, o papel de legitimadores, ao menos involuntários, do maior e mais monstruoso dos genocídios.

 

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