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Lógica da histeria

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de novembro de 2013

          

Sendo impossível o socialismo perfeito, suas sucessivas encarnações imperfeitas serão sempre e necessariamente consideradas “direitistas” em comparação com suas versões ideais futuras, de modo que a culpa de seus crimes e misérias terá de ser imputada automaticamente à direita, ao capitalismo, aos malditos liberais e conservadores. Do fundo do Gulag, do cemitério ou do exílio, estes serão sempre os autores do mal que os comunistas fizeram.
Isso é um dos preceitos mais essenciais e constantes da lógica revolucionária. Ele corresponde, na prática, ao direito ilimitado de delinqüir, de roubar, de matar e de produzir toda sorte de horrores e misérias, com a garantia não só da impunidade mas de uma consciência eternamente limpa, tanto mais pronta a levantar o dedo acusador quanto maiores são as culpas objetivas que carrega.
É impossível não perceber a identidade cabal entre esse vício estrutural de pensamento e o traço mais característico da mentalidade psicopática, que é a ausência de culpa ou arrependimento, o cinismo perfeito de quem se sente uma vítima inocente no instante mesmo em que se esmera na violência, na mentira e na crueldade.
Os psicopatas não são doentes mentais nem pessoas incapacitadas. São homens inteligentes e astutos sem consciência moral. São criminosos por vocação. Os únicos sentimentos morais que têm são o culto da própria grandeza e a autopiedade: as duas formas, ativa e passiva, do amor-próprio levado às suas últimas conseqüências.
Eles não têm sentimentos morais, mas sabem percebê-los e produzi-los nos outros, sobre os quais adquirem assim o poder de um super-ego dominador e manipulador que neutraliza as funções normais da consciência individual e as substitui por cacoetes de percepção, coletivos e uniformes, favoráveis aos objetivos da política psicopática.
Só por isso não se pode dizer que todos os líderes e intelectuais comunistas sejam psicopatas. Como observou o psiquiatra Andrew Lobaczewski no seu estudo da elite comunista polonesa, um pequeno grupo de psicopatas basta para atrair um vasto círculo de colaboradores e militantes e instilar neles todos os sintomas de uma falsificação histérica da percepção. O histérico não crê naquilo que vê, mas naquilo que diz e repete. Sua experiência direta da realidade é substituída por uma padronização compulsiva que enxerga sempre as coisas pelos mesmos ângulos e não consegue nem imaginar que possam ser vistas de outro modo: a mera tentação de fazê-lo, mesmo por instantes, é reprimida automaticamente ou repelida com horror.
Só um pequeno círculo no topo do movimento comunista compõe-se de psicopatas autênticos. A maioria, do segundo escalão para baixo, é de histéricos. Erik von Kuenhelt-Leddihin documentou extensamente o papel da histeria na militância esquerdista em geral, mas Lobaczewski descobriu que essa histeria não é “causa sui”: é produto da influência penetrante e quase irresistível que os psicopatas exercem sobre as mentes fracas, trocando a sua percepção natural do mundo e de si mesmas por uma “segunda realidade” — para usar o termo de Robert Musil – da qual só podem emergir por um salto intuitivo atemorizador e humilhante que lhes custará, ademais, a perda dos laços de solidariedade grupal, base da sua precária subsistência psicológica.
Lançar as próprias culpas sobre os outros é, no psicopata, um instinto inato e uma das bases do seu poder pessoal. No histérico, é um hábito adquirido, um reflexo defensivo e um instrumento de integração na comunidade protetora.  Nos psicopatas, é uma força. Nos histéricos, um sinal de fraqueza. Não espanta que os primeiros façam uso dele com astúcia e comedimento, os segundos com total destempero, levando a invencionice até o último limite do ridículo e da alucinação.
Mas o dr. Lobaczewski vai um pouco mais fundo na análise do fenômeno. Quando a militância orientada pelos psicopatas sobe à condição de poder político e cultural hegemônico, a deformação histérica torna-se o modo dominante de pensar e se alastra por toda a sociedade, infectando até grupos e indivíduos alheios ou hostis ao movimento revolucionário.
Daí a contaminação da linguagem de comentaristas “de direita” pela mágica histérica de tentar inverter as proporções da realidade mediante a simples inversão das palavras.  Quando proclamam que Lula ou Dilma são “de direita”, os srs. José Nêumanne Pinto e Demétrio Magnoli, homens insuspeitos de colaboração consciente com o “establishment” esquerdista, só provam que foram vítimas inconscientes dessa contaminação. Por definição, todo governo “de transição” para o socialismo é menos socialista, portanto mais direitista, do que o seu sucessor esperado, assim como todo socialismo real é menos socialista e mais “direitista” do que qualquer socialismo ideal. Ver nisso a prova de um direitismo substantivo, transmutando uma diferença de grau numa identidade de essências é um erro lógico tão grosseiro que só faz sentido como mentira psicopática ou macaqueação histérica. O psicopata vive de criar impressões, o histérico de absorvê-las, imitá-las e propagá-las. Os srs. Nêumanne e Magnoli querem dar a impressão de que o petismo é mau. Para isso, absorvem, imitam e propagam o estereótipo verbal criado por psicopatas comunistas para salvar automaticamente a reputação da esquerda após cada novo fiasco, de modo que ela possa repeti-lo de novo e de novo.  Combatem o petismo de hoje fomentando o petismo de amanhã.

Os médicos e os beagles

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de outubro de 2013

          

Todo mundo tem alguma opinião sobre o caso do Instituto Royal. Eu não tenho nenhuma. Vejo nele, no entanto, uma amostra didaticamente clara do quanto os debates correntes na vida diária, hoje em dia, são ecos meio inconscientes de conflitos internos do movimento revolucionário mundial.
Entrar numa discussão sem saber qual a origem histórica das ideias que defendemos e atacamos é a melhor maneira de fortalecer ou debilitar correntes ideológico-políticas que desconhecemos. Assim ajudamos a produzir resultados  que, se deles tivéssemos antecipadamente alguma consciência, talvez nos parecessem horríveis.
Nesses confrontos de opinião, cada um acredita piamente falar em nome de puros valores universais, em si mesmos inquestionáveis. No caso em questão, é o  dever de piedade para com os animais contra o dever médico de salvar vidas humanas.
Acontece que, colocada assim, a questão só pode ser decidida pela adesão aos “direitos dos animais”, tal como formulados pelo filósofo Peter Singer, ou pela proclamação da prioridade absoluta da autoridade cient ífica.
Os valores que legitimam os argumentos são, em si mesmos, universais e abstratos, mas as escolhas práticas incumbidas de traduzi-los em ações no mundo real não são nem abstratas nem universais: são propostas ideológicas nascidas dentro do movimento revolucionário em duas épocas distintas do seu desenvolvimento.
 Você pode argumentar em nome de valores puros, mas, sem saber, está pondo lenha na fogueira em que a mentalidade revolucionária vem queimando o mundo há mais de dois séculos.
  Até os tempos de Luís XIV pelo menos, os médicos eram funcionários subalternos como os cozinheiros, os adestradores de cavalos e os pintores (mesmo ilustres como Velásquez ou Michelangelo).
Foi a Revolução Francesa que, na esteira do Iluminismo, fez deles uma classe de sábios e como que sacerdotes, investidos de um papel de relevo no guiamento moral da espécie humana.
O positivismo de Augusto Comte – cujos netos e bisnetos ainda andam pelo mundo, sob nomes diversos – completou o rito de sagração mediante a idéia da “política científica”, segundo a qual o mundo só teria paz quando as decisões políticas fossem tomadas racionalmente por uma elite científica, eliminado todo direito às divergências subjetivas e às “razões do coração” (o melhor livro que conheço a respeito é Régénérer l’Espèce Humaine. Utopie Médicale et Lumières, do historiador Xavier Martin, Paris, 2008).
 A partir de então, muitas questões de natureza filosófica e religiosa foram transferidas para a alçada da classe médico-científica, que, naturalmente, fazia abstração dos seus aspectos mais problemáticos e sutis, reduzindo tudo aos parâmetros do seu método especializado e, em última análise, à distinção do “normal” e do  “patológico”.
Até hoje, no entanto, essa dupla de conceitos é alvo de dissensões ferozes, contrastando com a nitidez pacífica da antiga distinção religiosa entre vícios e virtudes, que, nominalmente, ela veio substituir pela racionalidade de conceitos “claros e distintos”.
Por exemplo, o homossexualismo é normal ou é doença? O gayzismo tem hoje o prestígio de uma causa revolucionária, mas houve um tempo em que o profeta mesmo da “liberação sexual”, o psiquiatra alemão Wilhelm Reich, via nas práticas homossexuais uma perversão típica da sociedade capitalista, destinada a desaparecer da face da Terra tão logo a energia sexual fosse liberada da repressão burguesa e todos fossem felizes para sempre no paraíso heterossexual socialista.
A transferência da autoridade moral para a classe científica resultou na dissolução de inúmeros conceitos científicos na massa amorfa de infindáveis debates ideológicos mais confusos e mais insolúveis do que qualquer disputa  teológica do século13.
 O direito ao uso praticamente ilimitado de animais na experimentaçã  científica é algo que teria escandalizado um escolástico da Idade Média –  para não mencionar os franciscanos, que conversava m com passarinhos; mas, no século 19, isso pareceu inteiramente normal, porque era simplesmente um passo a mais na progressiva concentração revolucionária do poder nas mãos de uma elite iluminada, e incumbida de “regenerar a espécie humana”.
Não demorou muito para que, corroída pelo debate científico, a antiga noção bíblica do homem como imagem de Deus cedesse lugar à concepção da humanidade como uma simples espécie animal entre outras, tornando portanto aceitável a idéia de usar os próprios seres humanos como cobaias de laboratório ou de tratá-los com eletrochoques caso divergissem “patologicamente” da ideologia governamental.
O movimento revolucionário evolui, ao mesmo tempo, por expansão e por autonegação. O horror totalitário que ele próprio criou cedeu lugar, assim, ao discurso dos “direitos das minorias”. Mas foi daí mesmo que, na fase seguinte do debate revolucionário, o professor Peter Singer tirou a conclusão de que devia condenar como delito de “especismo” a prioridade dos direitos humanos sobre os “direitos dos animais” e proclamar que é mais justo, num experimento científico, sacrificar antes um bebê mongolóide do que um macaco-prego inteligente.
 Eis aí o pano-de-fundo ideológico sobre o qual se desenrola, sem esperança de solução, o debate entre os advogados dos Beagles e os defensores do Instituto Royal.
O mandamento cristão da piedade, aplicado com critério e inteligência, seria suficiente para dirimir todas as dúvidas e orientar o procedimento em cada caso concreto. Mas quem quer voltar a essas velharias em pleno século 21?

A revolução abrangente

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de outubro de 2013

          

Há dois traços essenciais do movimento revolucionário que seus opositores mal conseguem perceber, muito menos utilizar para combatê-lo eficazmente.

O primeiro é a recusa de fixar uma meta definida ou um prazo para alcançá-la. Isso permite que o movimento revolucionário absorva toda sorte de forças e tendências inconexas, unidas tão somente pelo ódio comum a um inimigo que permanece também vago e indefinido o bastante para deixar à liderança revolucionária o espaço livre para toda sorte de arranjos e acomodações oportunistas.

Se você perguntar, por exemplo, em que é que a disseminação do homossexualismo pode contribuir para a estatização da economia, ou em que é que a islamização das massas pode contribuir para a disseminação do homossexualismo, a resposta, em ambos os casos é uma só: em nada.

No entanto essas três tendências estão irmanadas no combate e juntas contribuem para o fortalecimento do poder revolucionário. A elas somam-se o feminismo, o abortismo, o indigenismo, o ecologismo, a negritude, o movimento pelos “direitos dos animais”, a liberação das drogas etc. etc. etc.

A lista não tem fim. Qualquer coisa que tenha alguma força corrosiva serve. Contra que se unem essas forças? Nominalmente é– às vezes – contra uma coisa denominada “o sistema”, mas isso é só um símbolo unificador e não uma entidade existente, já que o movimento revolucionário está amplamente escorado no apoio de organizações que personificam o “sistema” da maneira mais clara e inconfundível, como as fundações bilionárias, a grande mídia, a indústria do show business, os organismos internacionais e assim por diante.

Longe, portanto, de se condensar numa “ideologia”, o movimento revolucionário se caracteriza pela sua capacidade de integrar e utilizar discursos ideológicos os mais diversos e heterogêneos. Ideologicamente, seu único princípio de unidade é o ódio feroz e incansável a tudo o que não seja ele próprio, ou a tudo o que se oponha à expansão ilimitada do seu poder.

A força de coesão que mantém juntos os componentes dessa massa heteróclita de ódios e rancores disparatados situa-se na esfera da estratégia e não da ideologia. Essa unidade estratégica reflete-se no fato de que, pelas vias mais diversas e aparentemente incompatíveis entre si, o movimento revolucionário sai sempre fortalecido, haja o que houver.

O segundo traço a que me refiro reside em que o movimento revolucionário não pretende só modificar a situação aqui ou ali, mas dirigir o curso integral da história do mundo. Desde suas origens mais remotas – as rebeliões dos hussitas e taboritas no século 15 – esse movimento já trouxe consigo uma interpretação abrangente da história universal e a ambição, ou necessidade compulsiva, de amoldar a ela, até em seus detalhes mais mínimos, a vida de toda a humanidade vindoura.

Somente uma outra força histórica abraçou meta semelhante: o Islã. Imaginar que a Cristandade teve objetivo similar é uma ilusão de ótica. O cristianismo sempre lutou pela expansão mundial, mas levando a povos e nações uma mensagem de salvação que se dirigia às almas individuais  – sem trazer junto nenhum projeto abrangente de uma nova sociedade, antes adaptando-se plasticamente às mais diversas realidades sociais, culturais e políticas que encontrava pela frente.

O Islã, ao contrário, é por essência um projeto de sociedade, um código civil completo que regula todas relações humanas — sociais, econômicas, familiares, políticas etc. — e, a rigor, apenas  aceita conviver com outras formas de sociedade enquanto não se sente forte o bastante para islamizá-las de alto a baixo e banir do espaço público – e até mesmo da vida privada – tudo o que não seja expressamente determinado pelo Corão.

Não espanta, portanto, que, após se haverem ignorado mutuamente por longo tempo, o Islã e o movimento revolucionário viessem a se dar as mãos tão logo a luta de classes e a luta de raças, nas primeiras décadas do século 20, com o comunismo e o nazismo,  respectivamente, assumiram a feição explícita de uma guerra de culturas e de nações pelo domínio do globo terrestre.

É certo que essa aliança não poderá durar eternamente. Uma luta de morte entre muçulmanos e revolucionários será inevitável tão logo uns e outros se sintam a salvo de seus inimigos comuns. Mas não há um prazo certo para isso acontecer.

 O que importa é que esses dois traços – a indefinição plástica das metas e a universalidade das ambições – asseguram ao movimento revolucionário uma flexibilidade de meios de ação que desnorteia os seus adversários e lhe permite transfigurar derrotas em vitórias como num passe de mágica.

Os exemplos mais notórios são o sucesso político obtido pelo Vietnã do Norte após a destruição quase completa das suas forças militares, o ressurgimento mundial do esquerdismo quando a queda da URSS parecia anunciar a sua extinção próxima e, em escala menor e mais local, o processo em curso que vai transformando as Farc, de grupo guerrilheiro militarmente moribundo, em força política triunfante, legalmente reconhecida.

Em face desse monstro de mil faces e de inumeráveis tentáculos, as resistências que se apresentam são apenas parciais e episódicas, baseadas quase sempre em uma visão paroquialmente estreita dos fatores em jogo, ora inspirada em valores religiosos, ora em sentimentos patrióticos daqui ou dali, ora em interesses econômicos de grupos e facções.

Na verdade,  essas forças de resistência sobrevivem não pelos seus próprios méritos, mas tão somente pelo caráter essencialmente negativo do movimento revolucionário, um movimento que cresce por autodestruição e nada pode construir de estável.

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