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Capitalismo e tradição

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 10 de janeiro de 2008

A descrição que Marx fornece do capitalismo é inteiramente baseada na premissa de que as relações econômicas são a “essência” da vida social. Nessa perspectiva, todos os elementos culturais, psicológicos, morais e religiosos que compõem a trama mesma da experiência diária, alguns dos quais arraigados em tradições anteriores de muitos milênios ao advento do capitalismo, podem ser totalmente omitidos do quadro, sobrando em lugar deles o seco e descarnado esquema da relação capital-trabalho, fundada na alienação, no “fetichismo do dinheiro”, na destruição de todos os laços de participação comunitária. Ato contínuo, esse esquema é projetado retroativamente sobre a cultura em geral, ocupando o lugar das realidades omitidas e tornando-se ele próprio o dado cultural fundamental: toda a existência humana sob o capitalismo é vista então como despersonalização, frieza inumana, redução dos seres humanos ao estado de átomos anônimos jogados de um lado para outro pelas forças mecânicas da produção e do consumo.

O atrativo hipnótico dessa descrição macabra é tão forte que muita gente continua acreditando nela a despeito do fato de que um capitalismo tal como ela apresenta jamais existiu. O capitalismo não é nem nunca foi uma cultura, muito menos uma cultura universalmente devoradora capaz de suprimir a herança tradicional, comunitária e religiosa, espalhando por toda parte novas relações humanas fundadas no puro poder do dinheiro. No mínimo, a refutação integral dessa hipótese está no fato mesmo de que o país onde o capitalismo mais se expandiu foi aquele que permaneceu mais apegado às suas raízes comunitárias e religiosas — os EUA — enquanto os povos mais vulneráveis à modernização ateística iam na direção oposta, caindo no estatismo centralizador de perfil positivista, socialista ou fascista. Não é possível comparar a construção teórica de Marx em O Capital com a montanha de fatos acumulada em A Democracia na América de Tocqueville sem concluir que aquela construção foi inteiramente erigida no ar.

Também não é lícito ignorar o fato de que a estrutura constitucional e legal do Estado americano – mais ou menos intacta até hoje – não foi nenhuma criação do capitalismo oitocentista, mas a simples sistematização de normas tradicionais que já vigoravam nas colônias desde séculos antes da independência (leiam, se puderem, o clássico A Constitutional History of the United States , de Andrew C. McLaughlin).

O capitalismo não é uma cultura: é um conjunto de relações econômicas que se desenvolve dentro de uma cultura preexistente e a ela se adapta, renovando-a e fortalecendo-a. Se, ao contrário, ele busca sufocá-la e substituir-se a ela, é ele quem se atrofia e se torna indefeso ante a tentação socialista.

A história recente dos EUA confirma isso tanto quanto a sua história mais remota confirma os laços entre capitalismo e tradição. A debilitação da crença religiosa e das afeições comunitárias veio junto com o crescimento avassalador do Estado-babá que não se satisfaz com o controle da economia mas quer se meter em todos os assuntos da vida privada. Isso deveria bastar para ensinar aos liberais ateus que os belos ideais do seu iluminismo “científico”, se realizados, não conduzirão a nenhum paraíso de liberdade, mas apenas contribuirão para tornar a descrição marxista do capitalismo uma profecia auto-realizável. Lukács e Gramsci, por seu lado, estavam certíssimos ao notar que o principal obstáculo à revolução socialista não é a economia capitalista em si, mas as tradições culturais e religiosas que lhe servem de moldura protetiva.

Desproporção monstruosa

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 03 de janeiro de 2008

A ordem de prisão emitida por um juiz italiano contra participantes da “Operação Condor” é a prova mais evidente de que o assalto contínuo à honra dos militares latino-americanos não é um aglomerado casual de “revanchismos”: é uma operação estratégica montada em escala internacional para atemorizar, desfibrar e subjugar as Forças Armadas do continente, colocando a serviço da revolução lulo-chavista o que reste delas no fim de um longo rosário de humilhações.

Essa operação articula-se, por oposição dialética, com a penetração de simpáticos e risonhos intelectuais de esquerda nos meios militares, de modo que a pressão de fora seja complementada desde dentro pela oferta de acomodações sedutoras, que os mais sonsos interpretam como sinal de reconciliação genuína. Estender a mão a quem se arroga o direito de mordê-la é mover guerra assimétrica contra si próprio. Tal é a principal atividade bélica em que o governo esquerdista deseja adestrar as nossas Forças Armadas.

A aberração mais chocante da política mundial é que, depois de extensamente revelados os crimes contra a humanidade praticados pelos regimes comunistas, não só seus autores tenham sido poupados de prestar contas, mas seus cúmplices nas democracias ocidentais continuem tendo espaço para brilhar na política, nas cátedras e no show business e passar pitos na sociedade livre, como se fossem modelos de santidade.

Mesmo o nosso regime militar não teve a coragem de acusar os comunistas pela cumplicidade ativa com governos genocidas, limitando-se a persegui-los por atos locais de terrorismo, isto é, a combater não o horror em si, mas apenas um de seus métodos.

A impunidade absoluta que o comodismo do establishment ocidental garantiu a esses celerados fez com que, em vez de se envergonhar de seus crimes, eles ganhassem redobrada confiança na lindeza de seus feitos hediondos, organizando-se para fazer o “longo braço da revolução” cair como um raio sobre quem quer que tenha cumprido o dever de combatê-los.

A mídia consagra a inversão, qualificando, por exemplo, de “operário” o terrorista italiano Libero Giancarlo Castiglia, de “seqüestro” a sua prisão pelas autoridades brasileiras (aliás não confirmada).

Ora, mesmo descontadas suas atividades na guerrilha do Araguaia, que não eram de natureza filantrópica, Libero Castiglia era um militante do PC do B. Sabem o que isso significa, na escala real das coisas? A simples existência do PC do B é um escândalo que brada aos céus, tanto quanto o seria a de um partido nazista ou de uma filial brasileira da Al-Qaeda. Membro devoto de uma rede internacional de apoio ao comunismo chinês, esse partido é co-responsável pelos crimes da ditadura mais sanguinária e genocida que o mundo já conheceu, cujo rol de vítimas não fica, segundo os estudos mais recentes, abaixo da cifra de setenta milhões de pessoas (v. Reevaluating China’s Democide to be 73,000,000).

Qualquer agressão que seus membros tenham sofrido, por mais condenável que seja em si mesma, é um nada em comparação com a crueldade sem fim que eles nunca cessaram de promover e legitimar (v. uma pequena amostra em La prisión de Jilin usa “camas mortales” para torturar a practicantes de Falun Gong) e pela qual não deram jamais o menor sinal de arrependimento.

Não tem sentido investigar com tanta dedicação delitos menores enquanto se lança um véu de esquecimento sobre os maiores. O senso das proporções não é um simples componente da Justiça. É a própria Justiça.

Conhecimento e controle

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 2007

Num dos últimos números da Prospect , Ian Stewart, professor de matemática na Universidade de Warwick, observa que os computadores tornaram possível construir demonstrações matemáticas que se estendem por milhões e milhões de páginas, subtraindo-se ao controle humano. Acreditar nessas provas – ou negá-las – será um salto no escuro: o hiperdesenvolvimento da racionalidade matemática ameaça desembocar na total irracionalidade. Será, pergunta Stewart, “a morte da prova”? Muitos dizem “sim”; ele se alinha com os que dizem “não” – mas, é claro, uma vez colocada a questão nesses termos, a prova da resposta teria de prolongar-se por alguns milhões de páginas.

O problema, porém, não está na dificuldade da resposta: está na questão mesma. Quem disse que a racionalidade humana pode ser incrementada mediante o aprimoramento da técnica lógico-matemática? Esta última consiste essencialmente da silogística, ou combinação de duas premissas para obter uma conclusão. Vários silogismos em seqüência formam uma cadeia dedutiva, ou demonstração.

As normas básicas dessa arte foram lançadas por Aristóteles e bastaram para as necessidades gerais da mente humana durante uns 2.300 anos. Foi a partir da segunda metade do século 19 que alguns estudiosos acharam conveniente preencher os hiatos, de modo que o raciocínio fosse contínuo, sem saltos intuitivos. Para facilitar o empreendimento, trocaram a linguagem verbal da lógica clássica pela simbolização matemática. Isso acelerava a construção das cadeias dedutivas e permitia a mecanização do raciocínio, antecipando os computadores.

Com o advento dos computadores, o processo tornou-se ainda mais rápido – tão rápido que permitia montar em poucos segundos demonstrações tão complexas que a mente humana já não as podia acompanhar. O projeto de tornar as demonstrações mais precisas e confiáveis acabou por torná-las impossíveis de conferir. É confiar nos computadores ou desistir de provar o que quer que seja.

Isso é alarmante só em aparência. Qualquer instrumento que se descubra ou invente, afinal, só existe precisamente para desempenhar alguma função com mais eficácia do que o ser humano poderia fazê-lo diretamente com os meios de que a natureza o dotou. O primeiro sujeito que teve a idéia de montar um cavalo só obteve nisso algum sucesso porque era mais rápido andar a cavalo do que a pé. As roupas só continuam sendo usadas há milênios porque protegem mais do que a pele.

O problema é que é muito incômodo você alimentar um computador com umas dúzias de milhares de premissas e dois segundos depois ele devolver a você uma conclusão pronta sem que você possa ter a menor idéia do trajeto que ele percorreu. Você se sente como se estivesse consultando um oráculo. Isso não seria nem um pouco desconfortável, é claro, se além da solução do problema você não desejasse também ter o controle da situação. E a desgraça é que os primeiros lógico-matemáticos se meteram nisso justamente com a esperança idiota de obter maior controle da situação. Como todos os cientistas modernos, eles não estavam interessados em conhecimento propriamente dito, mas em poder. “Savoir pour prévoir, prévoir pour pouvoir”, era a divisa de Auguste Comte. Eles queriam construir um Golem, mas um Golem obediente. O Golem, uma vez crescidinho, já não podia concordar com isso.

Toda técnica tem seus inconvenientes, e é pura bobagem acreditar que técnicas aumentam o poder “do” ser humano. Na melhor das hipóteses, elas aumentam o poder de uns à custa de diminuir o dos outros. Para compensar a diferença, é preciso inventar outras técnicas – políticas e sociológicas – cujos inconvenientes, em geral, são maiores ainda.

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