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O futuro da direita

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 2008

A Playboy deste mês publica uma entrevista reveladora com alguns líderes emergentes do chamado “liberalismo” brasileiro, filhos de velhos caciques regionais falecidos, aposentados ou desativados. Reveladora, digo eu, porque ilustra com clareza didática algumas obviedades que tenho publicado nesta coluna, mas que os bem-pensantes insistem em não querer admitir, como outrora se recusavam a admitir a existência do Foro de São Paulo.

A mais flagrante delas é que não existe direita politicamente relevante no Brasil. Os entrevistados não só rejeitam a denominação de direitistas – o que já é bastante significativo, tendo em vista o orgulho com que os esquerdistas se assumem como tais –, mas subscrevem no fim das contas todo o programa sociocultural da esquerda, com a única diferença de que desejariam realizá-lo pelo livre mercado em vez da ação estatal direta.

Que isso constitua mesmo uma diferença, é altamente duvidoso. Do ponto de vista econômico, a disputa entre liberais e socialistas no mundo vai-se tornando cada vez mais adjetiva: nenhum político é louco o bastante para advogar em público a supressão do Estado previdenciário, nem idiota o suficiente para continuar acreditando na eliminação total da propriedade privada. A guerra entre os sistemas tornou-se uma tênue oscilação para lá e para cá de um confortável meio-termo. A direita quer o capitalismo sob a proteção do governo-babá, a esquerda quer o socialismo vitaminado pela força do livre mercado. É a tese de Paul Edward Gottfried em After Liberalism : Mass Democracy in the Managerial State (Princeton University Press, 2001): junto com o socialismo real morreu também o liberalismo ideal. A vitória da “revolução dos gerentes” matou os dois, inaugurando a era da democracia de massas, o que é o mesmo que dizer: o império universal da burocracia.

Com isso, o foco da disputa efetiva transferiu-se para um domínio mais sutil — e infinitamente mais decisivo para o futuro da humanidade: o sonho do espírito revolucionário já não é o controle estatal da economia, mas o controle estatal da vida privada, da mentalidade popular, dos usos e costumes, da imaginação e dos sentimentos. É promover a ruptura total com as tradições históricas e operar enfim a longamente ambicionada mutação radical da natureza humana. Décadas atrás os melhores cérebros da esquerda – Lukács, Gramsci, os frankfurtianos – já haviam concluído que nesse campo, e não na economia, seria travada a batalha decisiva. Mas a idéia era prematura quando a lançaram. O advento da “democracia de massas” vem dar-lhe uma atualidade explosiva, preparando o terreno para a revolução cultural globalizada.

No novo contexto, o dever máximo ou único de uma direita historicamente consciente é defender os princípios e valores civilizacionais milenares, resistindo à ambição insana de planejadores sociais para os quais a espécie humana não passa de matéria-prima para experimentos que variam entre o irresponsável e o macabro.

Mas muito provavelmente essa resistência será em breve criminalizada como extremismo de direita, e, se não lutar como um exército de leões, desaparecerá do cenário político decente. Só sobrará lugar para a “direita bossa nova”, como a chama a Playboy – a direita que cede tudo em troca de um pouco de capitalismo.

A economia de mercado deve, sim, ser defendida, porque só nela os princípios e valores hoje ameaçados podem subsistir. Mas abdicar deles em troca da economia de mercado pura e simples, fazendo dela a única finalidade em vez de um meio entre outros, é servir duplamente ao esquerdismo, entregando-lhe de mão-beijada o que ele mais almeja conquistar e ainda criando uma camuflagem “capitalista” para dar aparência inofensiva à mais temível mutação revolucionária de todos os tempos.

Proporção inversa

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 14 de fevereiro de 2008

A ofensiva cultural soviética começou nos anos 20 e durou até o fim da URSS. Tanto pelas dimensões quanto pelos métodos que empregava, foi fenômeno sem similares no mundo. Não houve onde sua influência não penetrasse, determinando os rumos da história cultural de nações inteiras. Seus meios de ação estendiam-se para muito além da propaganda, dos festivais, das turnês de artistas e congressos de escritores. Iam muito além das viagens de cortesia, inumeráveis e freqüentemente prolongadas em estágios de treinamento na KGB. Iam muito além do financiamento perpétuo a milhares de escritores e jornalistas. Iam até mesmo além da dominação exercida sobre centenas de jornais, revistas e estações de rádio em todo o mundo. Incluiam todos os recursos usados em espionagem, monitorando a vida pessoal dos “companheiros de viagem” para mantê-los sob a ameaça de chantagem, implantando discretos comitês de censura na imprensa cultural, nas universidades e nos meios editoriais para boicotar os autores indesejáveis até o limite da exclusão total e bajular os desejáveis até o limite da idolatria. Após a queda da URSS, a máquina laboriosamente montada não se desmantelou: adaptou-se à estratégia gramsciana e à nova organização da esquerda internacional em “redes”, muniu-se de novas fontes de financiamento e, aliviada do entulho burocrático soviético, continuou funcionando, mais eficiente do que nunca e tão prepotente quanto sempre.

A história cultural do Brasil nas últimas seis ou sete décadas é absolutamente incompreensível sem o estudo dessa imensa obra de engenharia, cujo custo não se pode calcular.

No entanto, não existe nenhum livro brasileiro a respeito, e a imensa bibliografia estrangeira sobre o assunto (muito aumentada depois da abertura dos Arquivos de Moscou) continua vetada ao nosso público. Nas universidades e na mídia, muitos de nossos intelectuais continuam trabalhando nas linhas determinadas por Stálin, Karl Radek e Willi Münzenberg, não porque ainda tenham alguma conexão formal com o aparato (a maioria nem tem), mas simplesmente porque nunca aprenderam a fazer outra coisa. O mais patético é que em geral esses indivíduos, tão ciosos de “historicidade”, não têm a menor suspeita da origem de seus hábitos mentais. Vivendo da ignorância das suas próprias raízes ocultas, tornam-nas ainda mais invisíveis mediante o hábito compulsivo de ofuscar-se lançando uma luz demasiado forte sobre a história secreta (ou suposta história secreta) de seus desafetos políticos. O número de livros-denúncia contra a CIA que circulam no Brasil supera em muito o dos agentes da CIA já localizados comprovadamente no país. Não é de estranhar que àqueles livros se some agora, com formidável alarde midiático, o de Frances Stonor Saunders sobre o Congresso pela Liberdade da Cultura, a resposta muito modesta e tardia (e, no mínimo, moralmente obrigatória), que a CIA esboçou ao avanço cultural soviético entre os anos 1950-1967 (The Cultural Cold War, publicado pela Record com o título de Quem Pagou a Conta?). Embora enfatizando que o empreendimento tinha objetivos de propaganda política – como se algum dos participantes o ignorasse! –, a autora nada consegue alegar contra o argumento de que o Congresso se distingue de seu antagonista por jamais ter usado de chantagem, intimidação ou censura, nem rebaixado artistas à condição de office-boys, nem subornado alguém para mentir deliberadamente, práticas usuais da KGB na guerra cultural. No fim das contas, a tese de Saunders pode ser resumida nesta frase: “No seu auge, o Congresso empregava dúzias de funcionários.” Mesmo no seu ponto mais baixo, a ofensiva cultural soviética não empregava dúzias de pessoas, mas dúzias de milhares. Se a diferença entre as duas campanhas é inversamente proporcional à atenção que recebem da mídia brasileira, isso só mostra o sucesso continuado de uma delas.

Infração de trânsito

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 07 de fevereiro de 2008

Sempre que um agente da esquerda armada é preso em flagrante delito, a reação-padrão da esquerda desarmada é dupla e simultânea: de um lado, denuncia o sujeito como ex-militante que abandonou a luta política para praticar em benefício próprio o “capitalismo selvagem”; de outro, organiza campanhas para protegê-lo e libertá-lo como se ele não fosse um bandido comum e sim um honrado “combatente pela liberdade”. E faz isso sem se preocupar nem mesmo em simular coerência, sabendo que a contradição, quanto mais cinicamente ostensiva, mais tem o dom de inibir no público o desejo de percebê-la.

O artifício ainda tem a vantagem adicional de equalizar capitalismo e bandidagem, como se a simples voracidade de lucros, mesmo inescrupulosos, fosse a mesma coisa que seqüestros, homicídios, assaltos e narcotráfico. Para cúmulo de ironia, a própria “direita” (seja isto lá o que for) colabora com o empreendimento, endossando o diversionismo na sonsa esperança de desmoralizar a esquerda mediante a alegação de que ela é vulnerável à tentação capitalista – o que é propriamente aquilo que os retóricos da antigüidade chamavam de “argumento suicida”.

O mesmo procedimento aplica-se a gangues inteiras, quando os crimes que elas praticam em prol da revolução comunista começam a aparecer na mídia em tons demasiado chocantes: por um lado, a esquerda elegante busca se desvincular de qualquer ligação aparente com elas, acusando-as de trocar os ideais revolucionários pelo enriquecimento ilícito; por outro, continua a afagá-las nas reuniões do Foro de São Paulo e a fornecer-lhes todo o apoio jurídico, diplomático e institucional para que sejam reconhecidas internacionalmente como organizações políticas legítimas.

É mais que evidente que as duas operações estão ligadas uma à outra – no mínimo, porque os agentes são os mesmos – e que ambas são planejadas como complementos necessários sem os quais a ação violenta não poderia produzir os resultados políticos almejados. O desinformante e o agente de influência são tão criminosos quanto o seqüestrador, o assassino, o traficante. São o lado “colarinho branco” da estratégia revolucionária.

Essa divisão de trabalho é tão antiga quanto o próprio movimento comunista, para o qual ela não passa de rotina banal. Infelizmente, no Brasil só parecem saber disso os próprios comunistas e dois ou três estudiosos excêntricos. Para os demais, os dados da equação — a ação armada, a manipulação diversionista e a rede de proteção legitimadora — permanecem separados como grãos de poeira cósmica em três galáxias distantes. No fundo, essas pessoas talvez saibam que se enganam a si próprias. Mas sempre resta a esperança de que a auto-sugestão, forçada até o extremo limite da fantasia psicótica, transmute magicamente a realidade das coisas. É isso o que no Brasil de hoje se chama “pensamento empresarial”.

Graças a esse fenômeno, é pouco provável que alguém neste país se dê conta de que a revelação da parceria entre Hugo Chávez e o narcotráfico das Farc (v. Revealed: Chávez role in cocaine trail to Europe), somando-se às informações que resumi em Digitais do Foro de São Paulo, é a prova final de que a ditadura venezuelana não constitui um fenômeno isolado, mas apenas uma das engrenagens da estratégia revolucionária continental elaborada pelo Foro de São Paulo.

É claro que, como os demais brasileiros, estou preocupado com a gastança federal em cartões de crédito. Mas acusar só por esse delito os autores do maior concurso de crimes já observado na América Latina é como punir um serial killer por infração de trânsito.

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