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Fato consumado

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 20 de julho de 2006

Uma revolução não consiste em “tomar o poder”. A tomada do poder é apenas um elo numa cadeia de transformações que começa muito antes e termina muito depois dela. Uma revolução é um processo complexo, que se estende por décadas e se desenrola com ritmos desiguais, entre fluxos e refluxos, às vezes simulando ter cessado por completo, às vezes precipitando-se em crises espasmódicas que parecem o fim do mundo. Durante muito tempo, a unidade do processo só é visível aos que o planejaram e a uns poucos observadores qualificados. O restante da população se deixa confundir pela variedade polimorfa dos acontecimentos, sem atinar com a lógica por trás da confusão aparente.

Uma das linhas de força essenciais que compõem uma revolução é a lenta e gradativa substituição da ordem legal por um novo critério legitimador, injetado sutilmente, de início, mas depois impondo-se de maneira cada vez mais descarada, até que o apelo à antiga norma se torne reconhecidamente impotente, reduzindo-se a objeto de chacota.

O MST poderia, sem dificuldade, ter-se registrado como ONG e solicitado legalmente a ajuda financeira do Estado. Se não o fez, não foi tanto para escapar à responsabilidade civil e penal, mas por um cálculo estratégico muito preciso: mais importante até do que instituir a violência e o terror como meios válidos de acesso à propriedade da terra era subjugar e usar o próprio Estado como instrumento legitimador do processo. Desde o momento em que o governo federal aceitou financiar com dinheiro dos impostos os crimes praticados por uma entidade legalmente inexistente, inimputável portanto, a antiga estrutura jurídica do Estado cessou de existir. Discreta e impercebida, mas nem por isso menos possante, a nova hierarquia legal que então passou a vigorar baseia-se na imposição tácita da ideologia revolucionária como fonte de todos os direitos e obrigações, revogadas as disposições em contrário. Essa inversão radical do critério de legitimidade é muito mais decisiva do que a subseqüente tomada do poder, que não faz senão dar expressão visível ao fato consumado.

Não há portanto nada de estranho em que um órgão tão representativo do pensamento das elites nacionais como a Escola Superior de Guerra se disponha a ouvir com humildade e respeito as lições do sr. João Pedro Stedile. O chefe do MST é algo mais do que mera autoridade: como primeiro cidadão oficialmente liberado pelo Estado para passar por acima das leis e remoldá-las à sua imagem e semelhança, ele é a célula-mãe, o símbolo gerador, o modelo vivo da nova ordem. A ESG tem mesmo é de bater-lhe continência e, se possível, beijar-lhe os pés, se conseguir erguer-se para alcançá-los.

Em contraste com esse auto-aviltamento masoquista, o brigadeiro Ivan Frota, ao tomar posse na presidência do Clube da Aeronáutica, advertia dias atrás contra “grupos paramilitares extremados, travestidos de ‘movimentos sociais’, desencadeando uma orquestrada programação de vandalismo indiscriminado, ante a inação e até o velado apoio de autoridades governamentais do mais alto escalão”. É sinal auspicioso de que nem todos, nas Forças Armadas, estão contentinhos de viver no “mundo às avessas”.

Mas, no mundo civil, proliferam os sinais de adaptação feliz à ordem invertida. O juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Federal, por exemplo, induzido pelo governo a soltar os 32 baderneiros do MLST, baixou sentença alegando que a culpa pela depredação da Câmara não foi deles, e sim da própria Câmara, que, advertida da chegada dos militantes, não se preveniu contra o ataque.

Pela lógica do magistrado, se eu publicar aqui um aviso de que vou lhe fazer uma visita e ele não contratar de imediato um segurança para proteger sua cabeça oca, estarei no direito de rachá-la a pauladas com plenas garantias de que semelhante truculência não me será imputada judicialmente. A sorte de S. Excia. é que não há nada na sua caixa craniana que valha o esforço de quebrá-la.

Extinção anunciada

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de agosto de 2004

Poucos meses depois de lançada a campanha de entrega das armas, sem que nenhum efeito objetivo tenha vindo legitimar suas pretensões de abrandar a sanha dos criminosos, o governo já se apressa não só em alardear seus bons resultados, mas em estender a área de sua aplicação, levando-a da cidade para o campo.

Como até agora não se viu nenhum ladrão, narcotraficante ou homicida comparecer às filas repletas de velhinhas devotas e honrados trabalhadores, o único resultado a que a autoridade pode estar-se referindo com isso é o sucesso que obteve em desarmar possíveis vítimas, não seus virtuais assaltantes, agressores e assassinos.

Os prometidos efeitos apaziguantes a ser extraídos dessa vitória do governo sobre o povo são ainda demasiado imaginários para poderem justificar, por si, a extensão da campanha à zona rural. Resta o argumento da prioridade: quando o caso é extremo, há quem ache lícito arriscar um remédio mal testado, não testado de maneira alguma ou mesmo reprovado nos testes como o desarmamento civil já o foi em outras nações que o aplicaram.

Mas, no caso, o apelo a esse argumento é inviável. Num país onde, pelos cálculos da ONU, morrem a tiros 40 mil pessoas por ano, a contribuição da zona rural à taxa anual de mortes cruentas não passa de umas quarenta pessoas, segundo o governo federal, ou, na matemática hiperbólica da Pastoral da Terra, 82. Em toda essa extensão de terras, habitada por trinta por cento da população brasileira, a quantidade de crimes de morte não corresponde a trinta por cento, a vinte por cento, a dez por cento, a um por cento do total nacional. Corresponde — usando na conta os números inflados da Pastoral — à quadringentésima nonagésima parte desse total. Para cada homicídio na região rural, há 490 nas cidades.

Em números absolutos, 82 mortes são muitas mortes, mas, na comparação com outras áreas do país mais assassino do mundo, o campo é uma zona de relativa paz e tranqüilidade.

Qual a urgência, então, de experimentar nela um remédio que ainda nem passou pelo teste?

A urgência existe, sim, mas é bem outra. Não tem nada a ver com a taxa atual de crimes. Tem a ver com a correlação de forças num possível confronto entre os sem-terra e os fazendeiros. Como observou o sr. João Pedro Stedile com ameaçadora exatidão, há dez mil sem-terra para cada fazendeiro. Um fazendeiro, com cinqüenta auxiliares equipados de armas automáticas, pode repelir uma invasão de mil, cinco mil ou até dez mil militantes do MST armados de facões, foices e uma ou outra carabina de caça. Suprimidas as armas de fogo, a vantagem se inverte: no combate com armas brancas, prevalece a quantidade de braços. Nenhuma fazenda pode sustentar o contingente apto a enfrentar, com faca, porrete ou machado, um assalto maciço de milhares de sem-terras. Implantado o desarmamento civil no campo, a disputa estará decidida. O governo alega o intuito de “eliminar a tensão”, mas, obviamente, não se trata de acalmar ânimos: trata-se de abolir a tensão desativando um dos seus pólos: a propriedade particular da terra, no Brasil, está com os dias contados. Se os proprietários em pessoa morrerão ou não com ela, depende. Depende de tentarem um corpo-a-corpo de um contra dez mil, ou, ao contrário, correrem para buscar abrigo sob as asas do Incra, o qual não lhes garante nenhuma proteção contra invasões, mas promete a devolução das terras invadidas se e quando, após os devidos trâmites burocráticos, elas se demonstrarem produtivas. Em suma: só não morrerão como os do Zimbábue e da África do Sul se consentirem em ceder suas terras ao primeiro invasor que as exija e depois confiar-se docilmente à benevolência das autoridades — aquelas mesmas autoridades que os desarmaram para obrigá-los a esse vexame. É assim que começa, na estratégia marxista, a extinção de uma classe.

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E por falar em extinção: camisas-pardas do PT, armados de barras de ferro, invadiram o Diretório Metropolitano do PMDB em Porto Alegre, quebrando tudo e ferindo gravemente dois militantes. No dia seguinte, voltaram à carga, agredindo mais três. Leia em http://www.pmdb-rs.org.br/.

O sono de um justo

Olavo de Carvalho

Zero Hora, Porto Alegre, 20 de maio de 2000

Uma vez o sr. João Pedro Stedile disse que ninguém compreendia o MST, entidade “sui generis” avessa a todas as classificações. Apressei-me a contestá-lo, proclamando que não via ali nada que não fosse rigorosamente igual à estrutura dos sovietes – um movimento revolucionário empenhado em tomar pela força grandes parcelas do território e instalar nelas uma administração paralela que acabaria por se substituir aos órgãos do Estado.

Hoje percebo que levei em conta só a parte de cima, a cúpula e a organização do movimento, sem prestar atenção na sua base: a origem social e a mentalidade de seus militantes. Pintei o MST com as feições do sr. Stedile, sem reparar que o barco podia carregar passageiros bem diferentes da carranca que lhe servia de proa.

Uma pesquisa recente dos órgãos de segurança demonstrou que a maioria dos militantes do MST não só acredita em propriedade privada da terra como também a deseja ardentemente para si. A horda de deserdados não sonha em atear fogo no mundo, num paroxismo de vingança suicida, mas em conquistar a plácida estabilidade de uma pequena-burguesia rural.

Minhas observações sobre a ideologia e a estratégia do movimento continuam válidas, mas com significação alterada no quadro maior que, infelizmente, percebi com atraso. Tal como avaliei no início (cinco anos antes de que a imprensa em geral desse o primeiro sinal de percebê-lo), o MST não luta por terras, e sim por uma revolução comunista. A diferença é que o faz usando militantes que não têm a menor idéia do abismo que existe entre suas aspirações pessoais e a estratégia adotada nominalmente para atendê-las. Sim, o MST é “sui generis”: é um exército comunista composto de adeptos do capitalismo. A prova de que o objetivo da estratégia traçada pelos seus líderes não é a posse de terras está no fato de que, quanto mais terras lhes dão, mais eles se revoltam, mais se ampliam suas ambições e mais descaradamente político-ideológico se torna o seu discurso. Ademais, quem quer terra trata de cuidar dela quando a adquire, e o MST vai deixando no seu rastro acres e mais acres na devastação e no abandono (isto quando não destrói a obra já pronta nas fazendas que usurpa), enquanto parte para a ocupação de prédios urbanos que, por definição, não poderiam servir de moradia para lavradores instalados a milhares de quilômetros de distância.

Se essa estratégia aumenta formidavelmente o poder e a capacidade intimidatória da liderança emeessetista, o fato é que ela leva o movimento para longe de seus objetivos declarados de início. Ela adia a realização dos sonhos de milhares de agricultores pobres para o dia em que o sr. Stedile, elevado à condição de governante da futura República Socialista Soviética do Brasil, tendo liquidado todos os inimigos de classe e derrubado todos os obstáculos internos e externos à construção do novo regime (uma operação que na URSS durou oitenta anos e nunca terminou), tenha enfim, numa tarde estival, na varanda de sua “dátcha”, os lazeres de um ditador bem sucedido e possa voltar seus olhos para o passado, tentando puxar do limbo do esquecimento a resposta a uma pergunta evanescente: o que era que queriam mesmo aqueles velhos companheiros que o ajudaram, com tantos sofrimentos, a alcançar tão alta glória? Mesmo que ele encontre a resposta, o que será um feito notável em tão avançada idade, não será mais preciso lhes dar terras neste mundo, pois já as terão com abundância no outro. E o sr. Stedile, com as pálpebras pesadas do esforço de memória, tombará lentamente no sono dos justos, com a consciência tranqüila de só não ter feito aquilo que o tempo tornou desnecessário.

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