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O que estou fazendo aqui

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2016

A característica fundamental das ideologias é o seu caráter normativo, a ênfase no dever ser. Todos os demais elementos do seu discurso, por mais denso ou mais ralo que pareça o seu conteúdo descritivo, analítico ou explicativo, concorrem a esse fim e são por ele determinados, ao ponto de que as normas e valores adotados decidem retroativamente o perfil da realidade descrita, e não ao inverso.

Isso não quer dizer que às ideologias falte racionalidade: ao contrário, elas são edifícios racionais, às vezes primores de argumentação lógica, mas construídos em cima de premissas valorativas e opções seletivas que jamais podem ser colocadas em questão.

Daí que, como diz A. James Gregor, o grande estudioso do fenômeno revolucionário moderno, o discurso ideológico seja enganosamente descritivo, quando parece estar falando da realidade, nada mais faz do que buscar superfícies de contraste e pontos de apoio para o mundo melhor, cuja realização é seu objetivo e sua razão de ser.

Se o cidadão optou pelo socialismo, ele descreverá o capitalismo como antecessor e adversário, suprimindo tudo aquilo que, na sociedade capitalista, não possa ser descrito nesses termos.

Se escolheu a visão iluminista da democracia como filha e culminação da razão científica, descreverá o fascismo como truculência irracional pura, suprimindo da História as décadas de argumentação fascista, tão racional quanto qualquer outro discurso ideológico que prepararam o advento de Mussolini ao poder.

Tendo isso em vista, a coisa mais óbvia do mundo é que nenhum dos meus escritos e nada do que eu tenha ensinado em aula tem caráter ideológico, e que descrever-me como “ideólogo da direita”, ou ideólogo do que quer que seja,  só vale como pejorativo difamatório, tentativa de me reduzir à estatura mental do anão que assim me rotula.

Podem procurar nos meus livros, artigos e aulas. Não encontrarão qualquer especulação sobre a boa sociedade, muito menos um modelo dela.

Posso, no máximo, ter subscrito aqui ou ali, de passagem e sem lhe prestar grande atenção, este ou aquele preceito normativo menor em economia, em educação, em política eleitoral ou em qualquer outro domínio especializado, sem nenhuma tentativa de articulá-los e muito menos de sistematizá-los numa concepção geral, numa ideologia.

Isso deveria ser claro para qualquer pessoa que saiba ler, e de fato o seria se a fusão de analfabetismo funcional, malícia e medo caipira do desconhecido  não formasse aquele composto indissolúvel e inalteravelmente fedorento que constitui a forma mentis dos nossos “formadores de opinião” hoje em dia (refiro-me, é claro, aos mais populares e vistosos e à sua vasta plateia de repetidores no universo bloguístico, não às exceções tão honrosas quanto obscuras, das quais encontro alguns exemplos neste mesmo Diário do Comércio).

É óbvio que essas pessoas são incapazes de raciocinar na clave do discurso descritivo. Não dizem uma palavra que não seja para ?tomar posição?, ou melhor, para ostentar uma auto-imagem lisonjeira perante os leitores, devendo, para isso, contrastá-la com algum antimodelo odioso que, se não for encontrado, tem de ser inventado com deboches, caricaturações pueris e retalhos de aparências.

A coisa mais importante na vida, para essas criaturas, é personificar ante os holofotes alguns valores tidos como bons e desejáveis, como por exemplo “a democracia”, “os direitos humanos”, “a ordem constitucional”, “a defesa das minorias”, etc. e tal, colocando nos antípodas dessas coisas excelentíssimas qualquer palavra que lhes desagrade.

Alguns desses  indivíduos  tiveram as suas personalidades tão completamente engolidas por esses símbolos convencionais do bem, que chegam a tomar qualquer reclamação, insulto ou crítica que se dirija às suas distintas pessoas como um atentado contra a democracia, um virtual golpe de Estado.

O desejo  de personificar coisas bonitas como a democracia e a ordem constitucional é aí tão intenso que, no confronto entre esquerda e direita, os dois lados se acusam mutualmente de “golpistas” e “fascistas”. Melhor prova de que se trata de meros discursos ideológicos não se poderia exigir.

Da minha parte, meus escritos políticos dividem-se entre a busca de conceitos descritivos cientificamente fundados e a aplicação desses conceitos ao diagnóstico de situações concretas, complementado às vezes por prognósticos que, ao longo de mais de vinte anos, jamais deixaram de se cumprir.

Dessas duas partes, a primeira está documentada nas minhas apostilas de aulas (especialmente dos cursos que dei na PUC do Paraná), a segunda nos meus artigos de jornal.

Os leitores destes últimos não têm acesso direto à fundamentação teórica, mas encontram neles indicações suficientes de que ela existe, de que não se trata de opiniões soltas no ar, mas, como observou Martin Pagnan, de ciência política no sentido estrito em que a compreendia o seu mestre e amigo, Eric Voegelin.

Não há, entre os mais incensados “formadores de opinião” deste país – jornalísticos ou universitários –, um só que tenha a capacidade requerida, já não digo para discutir esse material, mas para apreendê-lo como conjunto.

Descrevo aí as coisas como as vejo por meio de instrumentos científicos de observação, pouco me importando se vou “dar a impressão” de ser democrata ou fascista, socialista, neocon, sionista, católico tradicionalista, gnóstico ou muçulmano.

Tanto que já fui chamado de todas essas coisas, o que por si já demonstra que os rotuladores não estão interessados em diagnósticos da realidade, mas apenas em inventar, naquilo que lêem, o perfil oculto do amigo ou do inimigo, para saber se, na luta ideológica, devem louvá-lo ou achincalhá-lo.

A variedade mesma das ideologias que me atribuem é a prova cabal de que não subscrevo nenhuma delas, mas falo numa clave cuja compreensão escapa ao estreito horizonte de consciência dos ideólogos que hoje ocupam o espaço inteiro da mídia e das cátedras universitárias.

Suas reações histéricas e odientas, suas poses fingidas de superioridade olímpica, sua invencionice entre maliciosa e pueril, seus afagos teatrais de condescendência paternalista entremeados de insinuações pérfidas, são os sintomas vivos de uma inépcia coletiva monstruosa, como jamais se viu antes em qualquer época ou nação.

O que neste país se chama de “debate político” é de uma miséria intelectual indescritível, que por si só já fornece a explicação suficiente do fracasso nacional em todos os domínios: economia, segurança pública, justiça, educação, saúde, relações internacionais etc.

Digo isso porque a intelectualidade falante demarca a envergadura e a altitude máximas da consciência de um povo. Sua incapacidade e sua baixeza, que venho documentando desde os tempos do Imbecil Coletivo (1996), mas que depois dessa época vieram saltando do alarmante ao calamitoso e daí ao catastrófico e ao infernal, refletem-se na degradação mental e moral da população inteira.

De todos os bens humanos, a inteligência – e inteligência não quer dizer senão consciência – se distingue dos demais por um traço distintivo peculiar: quanto mais a perdemos, menos damos pela sua falta. Aí as mais óbvias conexões de causa e efeito se tornam um mistério inacessível, um segredo esotérico impensável. A conduta desencontrada e absurda torna-se, então, a norma geral.

Durante quarenta anos, os brasileiros deixaram, sem reclamar, que seu país se transformasse no maior consumidor de drogas da América Latina; deixaram que suas escolas se tornassem centrais de propaganda comunista e bordéis para crianças; deixaram, sem reclamar, que sua cultura superior fosse substituída pelo império de farsantes semi-analfabetos; deixaram, sem reclamar, que sua religião tradicional se prostituísse no leito do comunismo, e correram para buscar abrigo fictício em pseudo-igrejas improvisadas onde se vendiam falsos milagres por alto preço; deixaram, sem reclamar, que seus irmãos fossem assassinados em quantidades cada vez maiores, até que toda a nação tivesse medo de sair às ruas e começasse a aprisionar-se a si própria atrás de grades impotentes para protegê-la; deixaram, sem reclamar, que o governo tomasse as suas armas, e até se apressaram em entregá-las, largando suas famílias desprotegidas, para mostrar o quanto eram bonzinhos e obedientes. Depois de tudo isso, descobriram que os políticos estavam desviando verbas do Estado, e aí explodiram num grito de revolta: “Não! No nosso rico e santo dinheirinho ninguém mexe!”

A rebelião popular contra os comunolarápios não nasce de nenhuma indignação moral legítima, mas emana da mesma mentalidade dinheirista que inspira os corruptos mais cínicos.

Não só o dinheiro é aí o valor mais alto, talvez o único, mas tudo parece inspirar-se na regra: “Eu também quero, senão eu conto para todo mundo”. É óbvio que, se essa mentalidade não prevalecesse no nosso meio social, jamais a corrupção teria subido aos níveis estratosféricos que alcançou com o Mensalão, o Petrolão etc.

O ódio ao mal não é sinal de bondade e honradez: faz parte da dialética do mal odiar-se a si mesmo, mover guerra a si mesmo e proliferar por cissiparidade.

O mais significativo de tudo é que fenômeno de teratologia moral tão patente, tão visível e tão escandaloso não mereça sequer um comentariozinho num jornal, quando deveria ser matéria de mil estudos sociológicos.

Querem maior prova de que os luminares da mídia e das universidades não têm o menor interesse em conhecer a realidade, mas somente em promover suas malditas agendas ideológicas?

Foi por isso que, mais de vinte anos atrás, cheguei à conclusão de que toda solução política para os males do país estava, desde a raiz, inviabilizada pelo caráter fútil e perverso das discussões públicas.

Só havia um meio – difícil e trabalhoso, mas realista – de mudar para melhor o curso das coisas neste país, e esse curso não passava pela ação político-eleitoral. Era preciso seguir, “sem parar, sem precipitar e sem retroceder”, como ensinava o Paulo Mercadante, as seguintes etapas:

  1. Revigorar a cultura superior, treinando jovens para que pudessem  produzir obras à altura daquilo que o Brasil tinha até os anos 50-60 do século passado.
  2. Higienizar, assim, o mercado editorial e a mídia cultural, criando aos poucos um novo ambiente consumidor de alta cultura e saneando, dessa maneira, os debates públicos.
  3. Sanear a grande mídia, mediante pressão, boicote e ocupação de espaços.
  4. Sanear o ambiente religioso — católico e protestante.
  5. Sanear, gradativamente, as instituições de ensino.
  6. Por fim, elevar o nível do debate político, fazendo-o tocar nas realidades do país em vez de perder-se em chavões imateriais e tiradas de retórica vazia. Esta etapa não seria atingida em menos de vinte ou trinta anos, mas não existe ?caminho das pedras?, não há solução política, não há fórmula ideológica salvadora. Ou se percorrem todas essas etapas, com paciência, determinação e firmeza, ou tudo não passará de uma sucessão patética de ejaculações precoces.

Esse é o projeto a que dediquei minha vida, e do qual os artigos que publico na mídia não são senão uma amostra parcial e fragmentária. Imaginar que fiz tudo o que fiz só para criar um “movimento de direita” é, na mais generosa das hipóteses, uma estupidez intolerável.

Quanto ao ítem número um, não se impressionem com os apressadinhos que, tendo absorvido superficialmente alguns ensinamentos meus, já quiseram sair por aí, brilhando e pontificando, numa ânsia frenética de aparecer como substitutos melhorados do Olavo de Carvalho.

Esses são apenas a espuma, bolhas de sabão que o tempo se encarregará de desfazer. Tenho ainda uma boa quantidade de alunos sérios que continuam se preparando, em silêncio, para fazer o bom trabalho no tempo devido.

O gostosão intelectual: curso intensivo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de abril de 2011

Alguns leitores ficaram decepcionados com o meu artigo do dia 24 de março (http://www.olavodecarvalho.org/semana/110324dc.html): acharam muito difíceis e trabalhosas as quatro receitas que lhes dei para tornar-se gostosões intelectuais. Sentem-se como se eu tivesse frustrado o sonho de suas vidas. Escrevem-me cartas indignadas, exigem saber se existe uma técnica, uma via mais simples e rápida, que possam percorrer em alguns segundos, de preferência sem levantar da poltrona, livres de cumprir aquelas exigências oprimentes que os quatro clubes de gostosões impõem a seus noviços para admiti-los, mediante duras provas, no círculo dos eleitos.

Pois bem, alegrem-se, irmãos. A coisa existe. Não só existe como é de domínio público, sem ônus ou taxas de qualquer natureza. Milhões de brasileiros têm desfrutado de seus benefícios, especialmente desde a década de 60, quando o hábito de pensar no assunto antes de falar veio sendo substituído, com vantagem, pela expressão imediata de preferências e repugnâncias, tão natural, tão espontânea quanto uma inocente flatulência.

Prestem atenção. Não requer prática nem habilidade. Em dois minutos vocês aprenderão a técnica e poderão usá-la — se é que já não a vêm usando sem sabê-lo — com resultados infalíveis.

A fórmula é a seguinte: invente duas crenças opostas totalmente imaginárias e igualmente bocós, atribua-as a dois indivíduos quaisquer (que provavelmente jamais ouviram falar delas) e declare-se superior a ambas. Não é preciso explicá-las, nem discuti-las, nem provar que seus indigitados porta-vozes têm mesmo algo a ver com elas. Apenas dê um nome a cada uma e afirme, peremptoriamente, que são duas bobagens antagônicas, que você não cai num engodo nem no outro, que está acima de correntes de opinião, ideologias, estereótipos, o escambau.

A proclamação simples e direta de superioridade, desacompanhada dessa moldura de antagonismos, pode soar presunçosa e dar efeito negativo. Espremida entre duas alternativas abomináveis (pouco importa que perfeitamente inexistentes), adquire uma nobreza, uma elevação, um ar de insight dialético que é uma coisa de louco, maninho. Experimente e observe a reação da platéia, todos se olhando uns aos outros e confessando: “Como foi que não pensamos nisso antes? Que coisa mais genial! Nós, aqui, atormentados num dilema insolúvel, e então vem esse iluminado e nos liberta das falsas alternativas!”

Pode crer, a coisa funciona mesmo. Posso testemunhar isso com total isenção precisamente porque, em vez de praticar a técnica, fui citado muitas vezes num dos pares de antagonismos e assim dei, malgré moi, substanciais contribuições à glória das superações baratas.

Só para dar alguns exemplos entre milhares:

Anos atrás, Caetano Veloso me opunha ao filósofo marxista Slavoj Zizek e nos superava num instante fazendo de nós os representantes padronizados de duas formas extremas de anti-individualismo: anti-individualismo de esquerda, anti-individualismo de direita. Pouco lhe importava que, pelo menos da minha parte, eu jamais tivesse dito uma única palavra contra ou a favor do individualismo, muito menos em simetria oposta com qualquer idéia do prof. Zizek, que só vim a conhecer anos depois e onde nada enxerguei que tivesse com as minhas próprias o mínimo de afinidade sem o qual toda oposição é impossível.

Decorridos alguns anos, fui, ao contrário e com idêntica surpresa, nomeado individualista devoto pelo prof. Alexandre Duguin, que se definia como anti-individualista professo, o que produziu, no Twitter, no Orkut, no Facebook e em outras assembléias de sábios uma profusão de superações dialéticas tão brilhantes e arrasadoras quanto a do pensador baiano.

Uns dias atrás, um tal de Hermes Fernandes, pastor protestante, emudecido de raiva ante críticas que eu lhe fizera por conta do tratamento abjeto que dera a seu colega Júlio Severo, resolveu me pegar por outro lado e, não sabendo o que dizer, apelou ao recurso de praxe: opôs simetricamente Karl Marx a Olavo de Carvalho como defensores da lealdade absoluta, o primeiro ao Estado, o segundo ao Capital, e, proclamando lealdade exclusiva a Nosso Senhor Jesus Cristo, demonstrou-se instantaneamente superior a ambos, ad majorem Dei gloriam.

Fiquei aqui meditando, cabisbaixo, sobre que raio de coisa poderia ser “lealdade ao Capital”. Você pode ser leal a um partido, a uma igreja, a uma família, a uma pessoa, a uma idéia, mas como “ser leal a uma quantidade abstrata que só existe para ser posta em risco? “Ser leal ao Capital” é uma expressão tão sensata quanto “votar num sorvete” ou “ler um pastel”. Já a lealdade ao Estado é possível, mas está fora do universo de Karl Marx, que só via no Estado (erroneamente) o instrumento da sua própria destruição.

Direi que eu e Karl Marx entramos no triunfo dialético do pastor como Pilatos no Credo? Nem isso, porque Pilatos ao menos estava no local dos acontecimentos, e nós nunca estivemos onde o pastor nos colocou. Pouco importa: a modalidade de superação dialética que se tornou endêmica no Brasil adquire sua força, precisamente, do fato de nunca ter nada a ver com o assunto.

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