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Mau exemplo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de fevereiro de 2010

Que o sr. Marco Aurélio Garcia e Dona Dilma Roussef cochichassem entre si alguma opinião sobre a vida intelectual brasileira já seria, da parte deles, uma presunção descabida. Mas quando a emitem em público, e o fazem dando-se ares de quem dita regras de perfeição, entram em cheio no campo da obscenidade.

Pessoas que ocupam ou disputam cargos públicos deveriam refrear um pouco os seus impulsos exibicionistas antes de sair dando o mau exemplo de pontificar ex catedra sobre assuntos que estão acima da sua competência e até da sua compreensão.

Nem o ministro nem a candidata escreveram jamais um livro, deram um curso ou proferiram uma conferência que se notabilizasse pela amplitude da erudição, pela profundidade do pensamento ou pela criatividade das idéias. Nada produziram, sequer, que os ombreasse à estatura mediana da classe acadêmica. Não são pensadores, nem artistas, nem educadores, nem profissionais da ciência. Não são sequer jornalistas. Não têm com a vida intelectual senão a relação distante — e até inversa — de quem se beneficia das aparências dela para fins de propaganda partidária ou promoção pessoal. No mundo da alta cultura, não passam de parasitas e aproveitadores. O único direito que lhes cabe, em tais matérias, é o de calar-se humildemente e dar ouvidos a quem sabe mais. Que se atrevam a ir um passo além disso, e devem ser escorraçados de um recinto onde sua presença só serve para tudo aviltar e prostituir.

No fundo, o atrevimento da sua crítica aos “subintelectuais de direita” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1602201005.htm) revela menos uma empáfia consciente do que uma falha de percepção, uma total incapacidade de apreender, não o mero sentido das palavras que empregam, mas as dimensões e proporções da situação de discurso, a relação entre fala e realidade, a diferença abissal entre aquilo que dizem e aquilo que são. Eles falam como autoridades no assunto precisamente porque ignoram que o desconhecem. Tomam-se a si próprios como unidades de medida porque não percebem o imensurável da distância que dele os separa.

Nada têm nisso, porém, de excepcionais e singulares. Sua conduta mental está entre as mais típicas da burrice geral brasileira, tal como a literatura a exemplifica e qualquer educador com algum senso de observação pode confirmar. Essa conduta não se compõe só da alienação existencial, do abismo entre pensamento abstrato e experiência concreta, mas da fusão desse handicap com um talento todo especial para o mimetismo lingüístico. O brasileiro, com efeito, capta num relance os novos giros verbais que lhe chegam do ambiente e passa de imediato a utilizá-los com um agudo senso de eficácia persuasória, desacompanhado, porém, de qualquer compreensão da sua carga semântica efetiva. Só para dar um exemplo tirado da minha própria experiência pessoal, quando meus dois livros sobre a ciência da argumentação repuseram em circulação a velha expressãoargumentum ad hominem, a nova geração, que a desconhecia por completo, notou o potencial ofensivo do termo e passou a empregá-lo a torto e a direito para fins de ataque, com a desenvoltura mais autoconfiante, sem ter a menor idéia das distinções e precauções que esse emprego exige (por exemplo, um exemplum in contrarium, logicamente uma das refutações mais legítimas, é com freqüência apresentado sob a forma aparente de mera argumentação ad hominem). Centenas de expressões extraídas diretamente dos meus escritos circulam hoje por aí com sentido diminuído, coisificado, prova de que foram copiadas por mimetismo instantâneo e não absorvidas mediante compreensão séria do seu significado. A velocidade mesma com que se operam esses golpes de parasitagem verbal faz com que se tornem, por sua vez, infinitamente reprodutíveis e se alastrem em proporções epidêmicas, daí resultando que, no fim das contas, todo o debate público nacional se reduza a um obsessivo intercâmbio de camuflagens.

Juntem à deficiente ancoragem na realidade o mimetismo lingüístico superficial, e terão a fórmula exata do impostor inconsciente, do vigarista que só consegue ludibriar os outros porque primeiro se ludibriou a si próprio ao ponto de poder praticar a vigarice com um elevado sentimento de idoneidade e mérito.

Dona Dilma e o ministro Garcia exemplificam perfeitamente essa síndrome, cuja disseminação em escala nacional consolida a incultura presunçosa como uma espécie de título acadêmico, de especialidade científica ou prova de superioridade. Tal é hoje o típico “intelectual de esquerda” que se apresenta como modelo normativo e cobra da direita o dever de copiá-lo, sob pena de condená-la como “subintelectual”.

Não que subintelectuais inexistam na direita. Existem, e o primeiro a apontá-los ao descrédito sou em geral eu mesmo. Porém o mais burro deles é ainda superior a Dilma Roussef e Marco Aurélio Garcia, que só são “intelectuais” no sentido elástico e figurado que o termo possui em Antonio Gramsci.

A volta do doutor Segadas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 4 de janeiro de 2007

No Brasil, o sujeito possuir uma erudição superior é considerado uma aberração, uma falha de caráter, uma doença. Cada um tem de ler apenas o pouco que seus colegas leram, nem uma linha a mais. Se passar disso, ofende e humilha a corporação, sendo automaticamente condenado por delito de “pedantismo”.

Para redimir-se, deve provar genuflexa humildade ante seus detratores, retribuindo a difamação com favores servis como Otto Maria Carpeaux retribuiu aos comunistas. Pode também compensar a indecente pletora de conhecimentos com demonstrações de modéstia populista, escrevendo sobre samba, futebol, comida ou sexo, para mostrar que erudito também é gente. Mas isso nem sempre funciona. José Guilherme Merquior jamais foi perdoado, pois não fez uma coisa nem a outra. Gilberto Freyre tentou a segunda, mas já era tarde: nenhum populismo, estético ou lúdico, poderia jamais absolver o pecado mortal da adesão ao movimento de 1964.

Qualquer que seja o caso, o excesso de leituras pode ser perdoado em vida, mas sempre restará uma nódoa póstuma. Comentando o segundo volume dos Ensaios Reunidos de Carpeaux (Topbooks), muitos resenhistas se mostram irritados com a erudição do genial ensaísta e historiador literário, só a desculpando quando encontram, com mal disfarçado alívio, algum defeito que a seus olhos o reduza a dimensões mais humanas. De passagem, observo: neste país é proibido escrever sobre os grandes homens com respeito genuíno e admiração humilde. Um ar de superioridade, pelo menos de intimidade desrespeitosa, é absolutamente necessário à boa auto-imagem do crítico, bem como à sua reputação.

Curiosamente, a erudição em detalhes irrelevantes de ordem folclórica, histórica ou filológica, não ofende a ninguém. É até um mérito. O que o sujeito não pode é mostrar um conhecimento extensivo das obras maiores, um obsceno domínio dos problemas essenciais em várias áreas do pensamento ou das ciências. Em qualquer discussão pública, a familiaridade com o status quaestionis é não somente desnecessária como inconveniente. Um bom sujeito consente em ignorar tudo o que seus colegas de universidade e mídia ignoram, de modo a não pegá-los jamais de surpresa. Se você diz algo que eles não sabem, isto prova que você é um ignorante, um amador enxerido. Ou então é um louco que anda vendo coisas.

Porém o mais grave de tudo, o absolutamente intolerável, é ser erudito sem o correspondente diploma. A recíproca não é verdadeira. Diploma sem conhecimento é normal e decente. Você pode até escrever Getúlio com LH e continuar chefe de departamento universitário. O que não pode é estudar muito sem ser bacharel ou doutor. Isso expõe você ao desprezo das pessoas de bem, como o doutor Segadas do Triste Fim de Policarpo Quaresma, indignado ao ver as estantes do vizinho carregadas de livros: “Se não era formado, para que? Pedantismo!” O romance de Lima Barreto saiu em 1916. Por volta dos anos 50, o Brasil parecia ter mudado. Meio século depois, milhares de Segadas estão de volta a seus postos, mais empombados do que nunca. É o pogréfo, como diria o sr. presidente.

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