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Mea culpa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de fevereiro de 2010

Recebi outro dia mais um rosário de queixas contra a minha pessoa e os meus escritos, onde o remetente acreditara encontrar provas inequívocas da minha maldade, prepotência e demoníaca soberba, além de uma infinidade de erros lógicos, factuais, morais e gramaticais que, se comprovados, bastariam para fazer de mim um forte candidato a ministro da Cultura do governo Dilma Roussef.

Como em geral acontece nesse gênero de mensagens, porém, os erros que o sujeito me imputava eram apenas aparências de erro nascidas de uma leitura mal feita, se não de uma percepção estruturalmente deformada, o efeito mais geral e permanente daquilo que no Brasil se chama, por motivos insondáveis, “educação”. Só para dar um exemplo, o cidadão se dera o trabalho de revirar o Google para saber quantas vezes eu repetira tal ou qual termo técnico, expressão latina ou alusão literária e daí concluir, por um salto lógico imensurável, que eu não tinha o direito de acusar os esquerdistas de escreverem todos da mesma maneira, com cacoetes de linguagem que os identificam à distância. Em suma, ele confundia aquele conjunto de cacoetes personalizados, que assinala a presença de um estilo, com a perfeita falta de estilo que se observa na repetição coletiva de cacoetes uniformes. Felizmente, o signatário estava tão brabo comigo que prometia não ler nenhuma resposta que eu lhe enviasse, o que me eximia de tentar destrinchar uma por uma – como se isto fosse possível! — as suas prodigiosas confusões mentais. Gratíssimo por essa gentileza, contentei-me em enviar-lhe o breve conselho de que parasse de se masturbar diante da minha imagem, e dei o caso por encerrado.

No entanto, depois, refletindo mais longamente, descobri por baixo dos erros aparentes denunciados pela criatura alguns vícios reais da minha escrita, que dão margem a equívocos sem fim quando caem ante os olhos de leitores ineptos ou maliciosos, sem contar os ineptos e maliciosos.

O mais letal desses vícios é cortejar os leitores em geral, e os mais burros em especial, mediante uma falsa impressão de simplicidade e clareza, buscada com as mais lindas intenções didáticas mas que, no fim das contas, induz o primeiro recém-chegado a crer que tudo compreendeu à primeira vista – senão a imaginar que apreendeu o conjunto inteiro do meu pensamento pela leitura de algumas amostras casuais –, e a reagir de pronto mediante alguma opinião fácil, já imunizada no berço contra aquela exigente confrontação de hipóteses que é a única via para se chegar à verdade, tanto na interpretação dos fatos quanto das palavras.

A clareza, dizia Ortega y Gasset, é a cortesia do filósofo. Iludido por essa promessa barata de fazer de mim um tipinho simpático aos olhos do mundo, acabei por esquecer que “cortesia” vem da mesma raiz de “cortejar” e “cortesão”, e que o conselho do grande prosador espanhol ameaçava jogar-me, das alturas espirituais em que eu acreditava mover-me, ao fundo do mais abjeto e imperdoável puxa-saquismo literário: a prática de um estilo tão sedutoramente claro e límpido que faz o leitor imbecil sentir-se inteligente ao ponto de querer puxar discussão comigo antes de ter tido sequer o vago e fugaz impulso de discutir consigo mesmo. Esse efeito é inevitável desde o momento em que se adote aquele estilo, pois a coisa mais impossível para o imbecil é discutir consigo mesmo, em voz baixa, sem o apoio de um interlocutor de carne e osso: defrontado com alguma afirmação que lhe soe estranha ou desconfortável, esse tipo de leitor não resistirá à comichão de impor à força as funções de interlocutor real, e não simplesmente mental, ao infeliz autor daquilo que acaba de ler. É assim que acabo me transformando, para toda uma categoria de leitores – mais numerosa no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo –, naquilo que em psicoterapia se chama ego auxiliar, uma boa alma encarregada de completar no mundo físico, para maior clareza, os pensamentos que o paciente, por si, não tem energia bastante para pensar por inteiro nem coragem bastante para admitir que os pensou. Contando comigo para o desempenho desse trabalhoso ofício no seu teatrinho mental, o cidadão me envia então os mais toscos e informes pensamentos semipensados, forçando-me a acabar de pensá-los e a compreendê-lo, portanto, melhor do que ele próprio se compreendeu.

Ao contrário, porém, do que acontece nas psicoterapias propriamente ditas, onde o sujeito sabe que foi lá para que o ajudem a pensar em voz alta, os remetentes dessas deformidades não têm a menor idéia de que estão me pedindo socorro terapêutico. Em vez disso, enviam-me aqueles rabiscos de pensamentos possíveis como se não fossem apenas materiais brutos para uma possível elaboração interior e sim idéias já maduras e firmes, claras e bem definidas, prontas a ser discutidas, provadas ou refutadas. Pior ainda, quanto mais intenso o seu desconforto interior, quanto mais agitada a sua confusão de imagens e sensações, quanto mais aguda a sua impossibilidade de pensar, tanto mais o desgraçado interpreta esses sentimentos como se fossem expressões formais de uma discordância intelectual, e tanto mais ousado e desafiador é o tom em que me escreve. O sentimento que essas mensagens me infundem é de uma comicidade triste, pirandelliana, onde o deslocamento radical entre as palavras ditas e a situação psicológica de onde emergem, ou, dito de outro modo, entre consciência e realidade, raia a loucura pura e simples sem chegar a ser loucura em sentido clínico, detendo-se naquele perigoso meio-termo que é a loucura socialmente legitimada como normalidade.

A culpa, reconheço, é minha. Se eu escrevesse de maneira complicada e obscura, se eu pelo menos me abstivesse de usar certos truques pedagógicos para despertar a intuição no leitor, nem o mais presunçoso dos imbecis julgaria me compreender: todos se recolheriam àquele silêncio humilde que, a longo prazo, pode ser propício a um esforço de meditação. Mas também não posso me acusar além da medida justa. Se infundo nos imbecis uma confusão de sentimentos, provocando situações que acabam por ser incômodas para mim mesmo, o fato é que não fui eu quem povoou dessas criaturas esta parte do mundo, nem lhes ordenei que crescessem e se multiplicassem. Isto é mérito exclusivo do establishment educacional, ou dele em cumplicidade com a mídia, os políticos e os “formadores de opinião” em geral.

Lula, você é o cara

Olavo de Carvalho (pela transcrição)

Diário do Comércio, 3 de setembro de 2009

Não sei quem é Caio Lucas nem por quais vias este seu escrito admirável veio parar na minha caixa postal. O que não posso é deixar de repassar aos leitores do Diário do Comércio a sua mensagem, na qual os devotos do nosso presidente encontrarão as respostas objetivas aos seus arrebatamentos retóricos de sicofantas compulsivos. Não há neste artigo, o qual aqui transcrevo com duas ou três correçõezinhas de português que em nada afetam o seu conteúdo, uma só linha que não traga uma verdade incontestável. Parabéns, Caio Lucas, seja lá você quem for. – O. de C.

Lula, você é o cara.

Você é o cara que esteve por dois mandatos à frente desta nação e não teve coragem nem competência para implantar reforma alguma neste país, pois as reformas tributárias e trabalhistas nunca saíram do papel, e a educação, a saúde e a segurança estão piores do que nunca.

Você é o cara que mais teve amigos e aliados envolvidos, da cuéca ao pescoço, em corrupção e roubalheira, gastando com cartões corporativos e dentro de todos os tipos de esquemas.

Você é o cara que conseguiu inchar o Estado brasileiro com tantos e tantos funcionários e ainda assim fazê-lo funcionar pior do que antes.

Você é o cara que mais viajou como presidente deste país, tão futilmente e às nossas custas.

Você é o cara que aceitou todas as ações e humilhações contra o Brasil e os brasileiros diante da Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e outros.

Você é o cara que, por tudo isso e mais um monte de coisas, transformou este país em um lugar libertino e sem futuro para quem não está no grande esquema.

Você é o cara que transformou o Brasil em abrigo de marginais internacionais, negando-se, por exemplo, a extraditar um criminoso para um país democrático que o julgou e condenou democraticamente.

Você é o cara que transformou corruptos e bandidos do passado em aliados de primeira linha.

Você é o cara que está transformando o Brasil num país de parasitas e vagabundos, com o Bolsa-Família, com as indenizações imorais da “bolsa terrorismo”, com o repasse sem limite de recursos ao MST, o maior latifúndio improdutivo do mundo e abrigo de bandidos e vagabundos que manipulam alguns verdadeiros colonos.

É, Lula! Você é o cara…

É o cara-de-pau mais descarado que o Brasil já conheceu.

Educação ao contrário

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de janeiro de 2009

Clicando no Google a palavra “Educação” seguida da expressão “direito de todos”, encontrei 671 mil referências. Só de artigos acadêmicos a respeito, 5.120. “Educação inclusiva” dá 262 mil respostas. Experimente clicar agora “Educar-se é dever de cada um”: nenhum resultado. “Educar-se é dever de todos”: nenhum resultado. “Educar-se é dever do cidadão”: nenhum resultado.

Isso basta para explicar por que os estudantes brasileiros tiram sempre os últimos lugares nos testes internacionais. A idéia de que educar-se seja um dever jamais parece ter ocorrido às mentes iluminadas que orientam (ou desorientam) a formação (ou deformação) das mentes das nossas crianças.

Eis também a razão pela qual, quando meus filhos me perguntavam por que tinham de ir para a escola, eu só conseguia lhes responder que se não fizessem isso eu iria para a cadeia; que, portanto, deveriam submeter-se àquele ritual absurdo por amor ao seu velho pai. Jamais consegui encontrar outra justificativa. Também lhes recomendei que só se esforçassem o bastante para tirar as notas mínimas, sem perder mais tempo com aquela bobagem. Se quisessem adquirir cultura, que estudassem em casa, sob a minha orientação. Tenho oito filhos. Nenhum deles é inculto. Mas o mais erudito de todos, não por coincidência, é aquele que freqüentou escola por menos tempo.

A idéia de que a educação é um direito é uma das mais esquisitas que já passaram pela mente humana. É só a repetição obsessiva que lhe dá alguma credibilidade. Que é um direito, afinal? É uma obrigação que alguém tem para com você. Amputado da obrigação que impõe a um terceiro, o direito não tem substância nenhuma. É como dizer que as crianças têm direito à alimentação sem que ninguém tenha a obrigação de alimentá-las. A palavra “direito” é apenas um modo eufemístico de designar a obrigação dos outros.

Os outros, no caso, são as pessoas e instituições nominalmente incumbidas de “dar” educação aos brasileiros: professores, pedagogos, ministros, intelectuais e uma multidão de burocratas. Quando essas criaturas dizem que você tem direito à educação, estão apenas enunciando uma obrigação que incumbe a elas próprias. Por que, então, fazem disso uma campanha publicitária? Por que publicam anúncios que logicamente só devem ser lidos por elas mesmas? Será que até para se convencer das suas próprias obrigações elas têm de gastar dinheiro do governo? Ou são tão preguiçosas que precisam incitar a população para que as pressione a cumprir seu dever? Cada tostão gasto em campanhas desse tipo é um absurdo e um crime.

Mais ainda, a experiência universal dos educadores genuínos prova que o sujeito ativo do processo educacional é o estudante, não o professor, o diretor da escola ou toda a burocracia estatal reunida. Ninguém pode “dar” educação a ninguém. Educação é uma conquista pessoal, e só se obtém quando o impulso para ela é sincero, vem do fundo da alma e não de uma obrigação imposta de fora. Ninguém se educa contra a sua própria vontade, no mínimo porque estudar requer concentração, e pressão de fora é o contrário da concentração. O máximo que um estudante pode receber de fora são os meios e a oportunidade de educar-se. Mas isso não servirá para nada se ele não estiver motivado a buscar conhecimento. Gritar no ouvido dele que a educação é um direito seu só o impele a cobrar tudo dos outros – do Estado, da sociedade – e nada de si mesmo.

Se há uma coisa óbvia na cultura brasileira, é o desprezo pelo conhecimento e a concomitante veneração pelos títulos e diplomas que dão acesso aos bons empregos. Isso é uma constante que vem do tempo do Império e já foi abundantemente documentada na nossa literatura. Nessas condições, campanhas publicitárias que enfatizem a educação como um direito a ser cobrado e não como uma obrigação a ser cumprida pelo próprio destinatário da campanha têm um efeito corruptor quase tão grave quanto o do tráfico de drogas. Elas incitam as pessoas a esperar que o governo lhes dê a ferramenta mágica para subir na vida sem que isto implique, da parte delas, nenhum amor aos estudos, e sim apenas o desejo do diploma.

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