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Fariseu hipócrita

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial) , 14 de dezembro

O uso pejorativo da palavra “raça” para designar um grupo não racial é o inverso de um insulto racista, pois deprecia os elos raciais que o racismo, por definição, exalta. A expressão é pejorativa precisamente porque reduz a afinidade política, espiritual ou cultural entre os membros de uma comunidade a um mero parentesco biológico, como se se tratasse de um grupo de galinhas ou macacos. A intenção sarcástica se anularia automaticamente a si mesma se o falante, pensando como racista, considerasse a identidade racial um elo superior e não inferior àqueles que de fato unem o grupo. A expressão só é pejorativa porque não é racista. Qualquer pessoa que saiba ler tem de entender isso num relance, sem precisar nem pensar.

Já expliquei isso dias atrás, mas agora notei que os detratores do sr. Jorge Bornhausen, além de lhe atribuir uma intenção racista incompatível com o sentido mesmo das suas palavras, ainda a explicam reiteradamente pela origem racial e geográfica do senador catarinense, fomentando o preconceito contra os imigrantes germânicos e contra um Estado da federação e cometendo assim eles próprios, da maneira mais inequívoca, o crime de racismo. Raramente a receita de Lênin, “xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz” foi posta em prática de maneira tão exemplarmente literal.

Se o senador não os processar por isso, deixando fora da cadeia esses deliqüentes, terá se rebaixado à condição de cúmplice passivo de seus próprios difamadores, além de cometer a injustiça de punir só o primeiro deles e deixar à solta a multidão de seus cúmplices, que nem têm como aquele a escusa da emoção momentânea, já que escrevem em parceria, após longas deliberações coletivas.

Penso aqui num deles em especial, o sr. Dalmo Dallari. Escrevendo no Jornal do Brasil do dia 9, esse jurista de palanque afirma que o sr. Bornhausen, ao designar seus inimigos petistas como “raça”, agiu “bem ao estilo dos nazistas quando se referiam aos judeus”. Mentira suja. Os nazistas jamais atacaram o povo judeu por ser uma raça, mas por não ser da raça deles. Nenhum nazista, aliás nenhum racista de qualquer filiação, jamais depreciou a identidade de raça enquanto tal. Fazê-lo seria deixar ipso facto de ser racista. E chega a ser comovente que esse coroinha intelectual do untuoso demagogo Dom Paulo Evaristo Arns, tendo feito carreira na ostentação de catolicismo, rotule de nazista o mesmo giro semântico utilizado por Jesus para qualificar seus discípulos relapsos de “raça de víboras”.

Mas não pensem que a hipocrisia desse fariseu desprezível se contente com isso. No meu próximo artigo comentarei mais dois ou três feitos dele que igualam ou superam os do próprio marquês de Sader.

O anti-horizonte

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 1o de março de 2001

A geração que hoje domina o cenário mental brasileiro não recebeu, na juventude, senão uma única influência formadora: a das ideologias de esquerda. Digo “ideologias”, no plural, porque nela confluíam o marxismo-leninismo tradicional, o social-nacionalismo e a New Left (mitologia cubana inclusa). Mas no fundo diferiam muito pouco: cada uma oferecia pretextos diferentes para convalidar a busca obsessiva da mesma finalidade, elevada ao estatuto de sentido último da existência: a destruição do capitalismo.

Duas subcorrentes que poderiam ter aberto vias alternativas – o pensamento católico e a New Age – foram facilmente neutralizadas, castradas, absorvidas na corrente geral, perdendo toda substância própria e reduzindo-se a excipientes da fórmula socialista: o catolicismo forneceu o arremedo de Evangelho que inspira as comunidades de base, a New Age perverteu-se em protesto cocainófilo, pansexual, gay e feminista contra a “moral burguesa” (entre nós identificada, por um prodigioso rodopio semântico, com o pensamento católico conservador). Documentos históricos dessas absorções redutivas são, respectivamente, os escritos da dupla Betto & Boff e os do hoje quase esquecido Luís Carlos Maciel.

A cabeça da minha geração foi moldada na supressão e na mutilação. Autores, livros, idéias, fatos eram selecionados segundo um recorte prévio destinado a confirmar o discurso pronto. Isso não quer dizer que fosse proibido ler livros “de direita”. Podíamos lê-los, sim – mas só aqueles que confirmassem a imagem estereotipada que fazíamos da direita e contra os quais a esquerda tivesse um contraveneno retórico na ponta da língua. Os autores para os quais não se tinha resposta dividiam-se em duas classes: aqueles cujo nome, jamais mencionado, ia sendo esquecido até desaparecer por completo, e aqueles que eram guardados fora do alcance dos nossos olhos pela precaução asséptica de um rótulo infamante, quase sempre o inverso simétrico do que eram na verdade.

Não era só pregação ideológica. Era todo um sistema de reações e percepções que se automatizavam como reflexos e acabavam por engolir totalmente a nossa personalidade. E a ênfase do sistema estava menos em nos passar determinadas crenças do que em infundir-nos a repulsa prévia e temerosa a idéias, coisas e pessoas que desconhecíamos por completo e que assim perdíamos todo desejo de conhecer.

Dos 25 anos de idade até hoje, não fiz senão abrir minha alma a todas as influências, a todos os interesses, a todas as riquezas culturais e espirituais que a coerção mental esquerdista, até então, me havia tornado inacessíveis. Quanto mais vivo e aprendo, mais me espanto de como era acanhado, mesquinho, somítico, regressivo o anti-horizonte no qual os mestres da minha geração quiseram me prender. Anti-horizonte no qual estão presos, ainda, quase todos os meus coetâneos, mesmo aqueles que imaginam ter “passado para o outro lado”, como se uma tão profunda mutilação espiritual pudesse ser curada por uma simples troca de carteirinha e como se aliás a própria definição estereotípica dos dois lados não fosse ainda a mesma de sempre, apenas com os valores nominalmente invertidos (digo nominalmente porque a efetiva renúncia ao socialismo é tão dolorosa quanto a recuperação de um drogado, e a pressa indecente com que uns quantos anunciam sua mutação prova que ela não ocorreu senão in verbis).

Mas, quanto mais me espanto com isso, mais me horrorizo com a mutilação ainda mais funda, com o estreitamento duplamente compressivo que, num repasse infernal, essa geração está impondo aos jovens de hoje. Os cinqüentões criados num quarto escuro não se contentam com transmitir a seus filhos sua ojeriza à luz, ao sol, ao espaço aberto. Não. Furam-lhes os olhos e os tapam no fundo de uma caverna, para privá-los da possibilidade mesma de conceber que exista luz, sol, espaço aberto no mundo real.

O futuro da boçalidade

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de dezembro de 2000

Um topos, ou “lugar-comum”, é um trecho da memória coletiva onde estão guardados certos argumentos estereotipados, de credibilidade garantida por mera associação de idéias, independentemente do exame do assunto. Muitos lugares-comuns formam-se espontaneamente, pela experiência social acumulada. Outros são criados propositadamente pela repetição de slogans, que se tornam lugares-comuns quando, esquecida a sua origem artificial, se impregnam na mentalidade geral como verdades auto-evidentes.

Os lugares-comuns não são um simples amontoado, mas organizam-se num sistema, que pode ser analisado e descrito mais ou menos como se faz com um complexo em psicanálise, e cujo conhecimento permite prever com razoável margem de acerto as reações do público a determinadas idéias ou palavras. Contando com essas respostas padronizadas, o argumentador pode fazer aceitar ou rejeitar certas opiniões sem o mínimo exame, de modo que, à simples menção das palavras pertinentes, a catalogação mental se faz automaticamente e o julgamento vem pronto como fast food. A impressão de certeza inabalável é então inversamente proporcional ao conhecimento do assunto, e o sentimento de estar opinando com plena liberdade é diretamente proporcional à quota de obediente automatismo com que um idiota repete o que lhe ditaram.

É claro que para isso é preciso começar o adestramento bem cedo. Daí a insistência de Antônio Gramsci na importância da escola primária. Também é preciso que algumas crenças sejam inoculadas sem palavras, através de imagens ou gestos, de modo que não possam ser examinadas pela inteligência reflexiva sem um penoso esforço de concentração que poucas pessoas se dispõem a fazer. Assim é possível consolidar reações tão padronizadas e repetitivas que, em certas circunstâncias, um simples muxoxo ou sorriso irônico funciona como se fosse a mais probante das demonstrações matemáticas.

Se as pessoas soubessem a que ponto se humilham e se rebaixam no instante mesmo em que orgulhosamente crêem exercer sua liberdade, elas não atenderiam com tanta presteza ao convite de dizer o que pensam, ou o que pensam pensar. É por amor a esse tipo de liberdade barata que os jovens, sobretudo, se dispõem a servir aos revolucionários que os lisonjeiam.

Para desgraçar de vez este país, a esquerda triunfante não precisa nem instaurar aqui um regime cubano. Basta-lhe fazer o que já fez: reduzir milhões de jovens brasileiros a uma apatetada boçalidade, a um analfabetismo funcional no qual as palavras que lêem repercutem em seus cérebros como estimulações pavlovianas, despertando reações emocionais à sua simples audição, de modo direto e sem passar pela referência à realidade externa.

Há quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos, pela repercussão imediata dos sons na memória afetiva, sem a menor capacidade ou interesse de saber se correspondem a alguma coisa no mundo.

Um deles ouve, por exemplo, a palavra “virtude”. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa: virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio. E o bicho já sai gritando: É a direita! Mata! Esfola! “Al paredón!”

De maneira oposta e complementar, se ouve a palavra “social”, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!

Não estou exagerando em nada. É exatamente assim, por blocos e engramas consolidados, que uma juventude estupidificada lê e pensa. Essa gente nem precisa do socialismo: já vive nele, já se deixou reduzir à escravidão mental mais abjeta, já reage com horror e asco ante a mais leve tentativa de reconduzi-la à razão, repelindo-a como a uma ameaça de estupro. Tal é a obra educacional daqueles que, trinta anos atrás, posavam como a encarnação das luzes ante o obscurantismo cujo monopólio atribuíam ao governo militar.

Milhares de seitas pseudomísticas, armadas de técnicas de programação neurolingüistica e lavagem cerebral, não obtiveram esse resultado. Ele foi obra de educadores pagos pelo Ministério da Educação, imbuídos da convicção sublime de serem libertadores e civilizadores. O mal que isso fez ao país já é irreparável. Supondo-se que todos esses adestradores de papagaios fossem demitidos hoje mesmo, e se inaugurasse um programa nacional de resgate das inteligências, trinta ou quarenta anos se passariam antes que uma média razoável de compreensão verbal pudesse ser restaurada. Duas gerações ficariam pelo caminho, intelectualmente inutilizadas para todo o sempre.

É em parte por estar conscientes disso que esses mesmos educadores são os primeiros a advogar a liberação das drogas. Eles sabem que o lindo Estado assistencial com que sonham necessitará largar na ociosidade uma boa parcela da população, danificada, incapacitada, sonsa. Para que não interfira na máquina produtiva, será preciso tirá-la do espaço social, removê-la para os mundos lúdicos e fictícios onde o preço do ingresso é um grama de pó. Na sociedade futura, a recompensa daqueles que consentiram em ser idiotizados para fazer número na militância já está garantida: cafungadas e picos de graça, sob os auspícios do governo, e liberdade para transar nas vias públicas, sob a proteção da polícia, ante um público tão indiferente quanto à visão banal de uma orgia de cães em torno de um poste.

Mas não é precisamente isso o que desejam? Não é essa a essência do ideal socialista que anima seus corações?

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