Olavo de Carvalho

14 de julho de 2000

Membro do júri do Prêmio Casa Grande & Senzala 2000, para livros de interpretação da cultura brasileira publicados no ano passado, enviei este relatório à Comissão Organizadora em 14 de julho. Agora tive a satisfação de saber, da Fundação Joaquim Nabuco, promotora do concurso, que o Primeiro Prêmio foi atribuído, por maioria de votos, ao livro que escolhi, a História das Crianças no Brasil, obra coletiva organizada pela Profa. Mary del Priore, do Departamento de História da USP. A Comissão concedeu também Menção Honrosa a Errantes do Fim do Século, da Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva, que, como outros membros do júri, recomendei especialmente para isso. Ao divulgar aqui o texto desta Declaração de Voto, expresso a grande alegria que me infunde a vitória das minhas candidatas, às quais auguro uma longa vida de sucessos na profissão científica que tão honrosamente representam. — O. de C.

Dos seis livros que me foram apresentados, dois merecem destaque: a História das Crianças no Brasil de Mary del Priore (org.) (1) e Errantes do Fim do Século, de Maria Aparecida de Moraes Silva (2). Pela profusão dos dados, pela minúcia das análises, pelo rigor da documentação e, last not least, pela limpidez da linguagem, eu votaria neste último, se o quadro teórico que o fundamenta não fosse tão estreito, bem na tradição dogmática de certa ciência social paulista para a qual o esquema marxista do conflito de classes continua a ser o nec plus ultra da explicação sociológica, com todo o cortejo de conotações denuncistas e pejorativas que o acompanha de praxe, pronto a fazer de cada tese universitária uma arma mortífera nos combates políticos e jornalísticos. Que esse esquema venha agora enriquecido pelas conotações da moda acadêmica norte-americana que dão teor de luta de classes às disputas de raças e às discórdias entre sexos, não o torna menos rígido e repetitivo, apenas revela sua ambição imperialista de tudo engolir, mesmo à custa das combinações mais forçadas, e de tudo transfigurar em combustível para sua máquina de guerra ideológica. Esse fundo polêmico nada teria de mais – de vez que ciência e paixão não se excluem –, se não fosse hábito e norma da referida tradição excluir, a priori, toda e qualquer outra hipótese ou explicação possível, não se dando nem o trabalho de mencioná-las, quanto mais o de discuti-las, e formando com a única que sobra, pelo acúmulo das descrições convergentes que a legitimam, uma poderosa impressão de verossimilhança que até o seu meio acadêmico de origem, otário de seu próprio engodo, acaba por tomar como base científica de uma crença racional. O que há de errado aí não é a paixão: é que essa paixão estreite, em vez de ampliar, o horizonte de concepção do pesquisador. É que seja paixão regressiva e não aventureira. É que seja obstinação atávica em vez de arrebatamento criativo.

Errantes do Novo Século é a aplicação, correta e elegante, de um esquema explicativo aprendido, fixo e infindavelmente repetível. Mas é aplicação correta, limpa, digna, com vários momentos notáveis. É produto bom de uma escola ruim.

Se existe menção honrosa neste concurso, peço pois concedê-la à Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva.

Mas o Prêmio propriamente dito não posso deixar de atribuir, com alegria, a Mary del Priore e à equipe com que realizou esta magnífica História das Crianças no Brasil. Desde logo, pela originalidade e importância do tema, tão essencial para a compreensão dos mecanismos íntimos da História, e tão abandonado num país onde a atenção obsessiva aos problemas da educação escolar faz esquecer o estrato mais básico e decisivo da formação das mentalidades, que é a educação doméstica, a vida de família, onde se constela, às vezes em formas definitivas, a visão de mundo que vai orientar a existência adulta.

Se é verdade que “the Child is the Father of Man”, uma história que omita as crianças ou que só enfoque nelas a identidade pública e administrativa de futuros cidadãos, sem ir até às raízes emocionais e íntimas da sua mentalidade, é, se me permitem o paradoxo, uma História sem passado, uma História onde as vidas começam no meio, como estátuas que boiassem no ar sem pedestal.

Esta obra merece o Prêmio, também, pela abrangência do tratamento. Abrangência, primeiro, no tempo, que inclui desde os heróicos horrores da vida das crianças nos primeiros navios que aqui aportaram trazendo os colonizadores, até a triste condição dos pequenos trabalhadores e das crianças que vagam pelas ruas no Brasil de hoje, passando pelo cotidiano doméstico de meninos e meninas no Brasil-Colônia e no Brasil Império e pelos reflexos, na vida infantil, das guerras e das grandes transformações econômicas. Abrangência, em seguida, vertical, compreendendo todos os principais grupos e classes sociais. Abrangência, por fim, no sentido da variedade dos pontos de vista, que, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de um tema praticamente ilimitado, trata de cercá-lo por vários ângulos, formando, como diz a própria organizadora, “um cruzamento de olhares”.

Não havia mesmo outra forma de devassar um terreno ainda praticamente virgem, no qual a forma do conjunto ainda se escondia sob uma multidão de perguntas setoriais irrespondidas – agora já em parte respondidas.

Se este livro merece um Prêmio que leva o nome da obra capital de Gilberto Freyre, é ainda e sobretudo por ser o primeiro sério esforço coletivo de universitários brasileiros para atender a um apelo do próprio autor de Casa Grande & Senzala no sentido de que se escrevesse “uma história do menino brasileiro – da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios – desde os tempos coloniais até hoje” (3). A História das Crianças no Brasil é obra que se insere com posto de honra na tradição gilbertiana – a mais poderosa e vivente nas nossas ciências sociais –, não somente por trazer a resposta a esse desafio científico lançado já em 1921, mas porque, na sua própria tessitura interna, permanece fiel à lição essencial do mestre, que é a de jamais perder de vista, no estudo da sociedade e de suas transformações, o elo vital entre o público e o privado, o grande e o pequeno, as mutações estruturais de longo alcance e os episódios da vida dos personagens de carne e osso.

Destaca-se, na coletânea, o trabalho subscrito pela própria organizadora, onde a força arquitetônica do grande painel não exclui a observação de detalhes por vezes surpreendentes e inusitados, mais reveladores, às vezes, do que todas as estatísticas e todos os registros oficiais.

Não me espanta que tão belo trabalho nos venha de historiadora da USP. Já por várias vezes tenho assinalado na instituição paulista, ao lado da miséria pomposa de sua sociologia e de sua filosofia, a seriedade, a criatividade e a riqueza intelectual do seu Departamento de História. Confirmo-as novamente neste livro. Ele tem desde já seu lugar assegurado na coleção de obras sem as quais não é possível conhecer e compreender o Brasil. É realização tão importante para todos nós que, de certo modo, ter participado dela já constitui, para cada um de seus co-autores, um prêmio. É obra que já nasceu premiada.

Rendo-me, pois, ao fato consumado e, sem a mínima hesitação, voto na História das Crianças no Brasil, de Mary del Priore e sua equipe, para o Prêmio Casa Grande & Senzala deste ano.

Poá, SP, 14 de julho de 2000

Olavo de Carvalho

Notas

1. São Paulo, Editora Contexto, 1999.

2. São Paulo, Unesp, 1999.

3. Cit. em História das Crianças no Brasil, p. 11.

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