Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 16 dez. 2001

Dentre estudantes de 32 países, testados em sua compreensão de leitura, os brasileiros tiraram o último lugar. Não o penúltimo ou o antepenúltimo. O último. Com uma das maiores redes de ensino público do universo, com uma quantidade impressionante de professores “per capita”, com investimentos maciços do governo e o esforço conjugado de milhares de ONGs e empresas milionárias empenhadas “soi disant” em “elevar o nível” da nossa educação, o Brasil é, hoje mais que nunca, um país de analfabetos funcionais.

Nada do que saiu impresso nos últimos dias pode dar, como esse fato alarmante, uma idéia da verdadeira situação do Brasil no mundo.

Por que uma notícia tão significativa — a mais importante da semana, sob certos aspectos — suscita na mídia e nos meios ditos intelectuais uma quantidade tão escassa de comentários? Por que as poucas reações que se fazem discretamente ouvir se limitam às lamentações convencionais de sempre, quando não a desculpas de ocasião?

A resposta é simples. A estupidez da nossa classe estudantil não se explica por causas menores, de ordem administrativa ou econômica, nem por curiosas coincidências. Ela não é um fato isolado. Ela reflete o estrago geral da cultura brasileira que tenho documentado desde 1996 nos dois volumes publicados e nos três inéditos de “O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras” — uma amostragem suficientemente ampla para que ninguém possa negar a realidade dos fatos. Ela reflete os efeitos de uma devastadora “revolução cultural” que, iniciada nos anos 70 e empenhada em reduzir a rede de ensino e todas as instituições de cultura a instrumentos do mais maquiavélico oportunismo político de todos os tempos, estampa agora diante de nós o seu abjeto resultado. Não se pode manipular a inteligência humana sem engessá-la, imobilizá-la e atrofiá-la.

Vinte anos atrás eu trabalhava numa revista de educação, distribuída a professores da rede pública. Por intermédio dessa publicação e de outras análogas, os intelectuais ativistas faziam críticas ferozes ao que chamavam “educação tradicional” e infundiam nas professorinhas uma confiança ilimitada nos novos modelos que, a seu ver, dariam aos jovens brasileiros a educação ideal. Esses modelos traziam algo das idéias de Jean Piaget mas eram inspirados sobretudo nos ídolos pedagógicos do esquerdismo militante: Paulo Freire, Demerval Saviani, Emília Ferrero e, no fundo de tudo, Antonio Gramsci. Sinceramente: eu lia aquela porcaria toda e previa uma catástrofe. Hoje a catástrofe está aí, mas ela é tão profunda que já não pode tomar consciência de si mesma. Aquelas entusiasmadas professorinhas que imaginavam fazer uma revolução por meio de seus alunos, convertidos em “agentes de transformação social”, foram elas próprias transformadas no curso do processo: já estão burras demais para atinar com a conexão de causa e efeito. Por isto a revelação brutal dos resultados da mutação idiotizante não suscita nenhum debate sério, nenhuma tomada de consciência, nenhuma corajosa admissão do erro fundamental. As professorinhas não apenas esqueceram o que sabiam: esqueceram que esqueceram. Estão amortecidas e estupidificadas pelo seu próprio discurso.

Revoluções análogas ocorreram nos EUA, na França e em outros países, com resultados igualmente perversos, documentados, por exemplo, em “A Escola dos Bárbaros” de Isabelle Stahl, “Machiavel Pédagogue” de Pascal Bernardin, “Brave New Schools” de Berit Kjos e “The Long March. How the Cultural Revolution of the 1960’s Changed America” de Roger Kimball. Quem leia esses livros verá que os brasileiros não apenas são os piores estudantes do mundo, mas que o são em comparação com uma média geral monstruosamente inferior à dos anos 60. Há uma queda mundial do nível de inteligência, e o Brasil está na vanguarda do abismo.

Não há também nenhum motivo para supor que o baixo desempenho dos estudantes não se repita, igualzinho, em outros setores da sociedade. Estudantes não são uma entidade separada e distinta, mas uma fatia, uma amostra do bolo. Os índices de burrice seriam muito provavelmente os mesmos se a comparação fosse entre empregados da indústria. Uma pesquisa local do antropólogo Luiz Marins mostrou que nas fábricas brasileiras é inútil passar um aviso por escrito: ou o aviso é dado oralmente, ou o conteúdo simplesmente não entra na cabeça dos operários. É razoável conjeturar que os índices comparativos de incompreensão de leitura não seriam muito diferentes se a avaliação não fosse entre estudantes, mas entre políticos, jornalistas, professores universitários — ou profissionais da escrita. A prodigiosa degradação do gosto literário nacional fez com que os poucos escritores valiosos que restam se tornassem confidenciais, cedendo o lugar nas páginas do noticiário editorial a uma galeria de patetas mais ou menos alfabetizados que passam por escritores. O público “letrado” já perdeu até mesmo a distinção entre um escritor e um sujeito qualquer que escreve qualquer coisa. Um escritor é membro de uma confraria artesanal milenar. Ele conhece os instrumentos expressivos criados por uma tradição que vem de Homero a Naipaul, e no que ele escreve se percebe, nas entrelinhas, o diálogo com seus parceiros de ofício, por cima das fronteiras de épocas. Um sujeito qualquer que escreve, mesmo que o faça direitinho, não dispõe senão dos instrumentos usuais da mídia — ele não dialoga senão com os tagarelas do momento: quando morrerem, sua escrita morrerá com eles. Essa distinção, que deveria ser a base da educação literária nas escolas, já se tornou imperceptível à média dos leitores “cultos”. Daí o fenômeno espantoso dos nomes mais cogitados para a última vaga aberta na Academia Brasileira. Não havia entre eles um único escritor: apenas sujeitos que escreviam direitinho. E ninguém notava a diferença.

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