A metalinguagem do colonialismo

Deslumbrados com o conceito de “Império” que acabam de importar dos Estados Unidos, intelectuais brasileiros desconhecem – ou fingem desconhecer – que o filósofo Olavo de Carvalho já o criara no Brasil há cinco anos.

por José Maria e Silva
silvajm@uol.com.br

Opção (Goiânia), 1º de outubro de 2000

Como os índios e escravos do período colonial, que por força da sobrevivência batizavam seus deuses com nomes de santos, os intelectuais brasileiros rendem-se ao imperialismo com um despudor de espantar. Só são capazes de aceitar o Brasil quando descobrem um modo de pronunciá-lo em inglês, como faz o antropólogo Hermano Viana, arremedo de Mário de Andrade. Entre os incontáveis exemplos dessa conduta servil da elite pensante brasileira, o mais recente encontra-se no caderno Mais! do jornal Folha de S. Paulo, que, na edição de domingo passado, 24 de setembro, apresentou como grande descoberta do século o conceito de “Império”, proposto pelo italiano Antonio Negri e pelo norte-americano Michael Hardt, no livro Empire, que está sendo lançado nos Estados Unidos pela Universidade de Harvard. Só no próximo ano o livro será lançado no Brasil, pela Record, todavia, já está sendo festejado por intelectuais como André Singer, professor do departamento de ciência política da USP e autor do recém-lançado Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro. Segundo ele, o aspecto “mais original” da obra de Negri e Hardt “está em perceber o quanto o modelo político norte-americano, inventado no século 18, quando as 13 colônias se fizeram independentes, é adequado ao sistema imperial, hegemônico a partir de 1991”. O que significa que, para ele, o próprio conceito de “Império”, que se propõe a substituir o de “Imperialismo”, já é original.

André Singer parece não saber que essa suposta originalidade importada dos Estados Unidos já se encontrava aqui, autóctone, nas páginas candentes do livro O Jardim das Aflições, do filósofo Olavo de Carvalho, publicado em 1995 pela Editora Diadorim, com o subtítulo De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. Nesse estudo magistral, que se estende por 20 séculos de civilização e permeia os mais variados ramos do conhecimento (inclusive o estudo de religião comparada, verdadeiro deserto no pensamento brasileiro), Olavo de Carvalho critica o descaso com que a teoria política trata o “fenômeno Império” e sustenta que “a história política do Ocidente pode ser, sem erro, facilmente resumida como a história das lutas pelo direito de sucessão do Império Romano”. Sem advogar para o seu ensaio o estatuto de uma “teoria”, já que é um crítico do sentido imanentista da história, Olavo de Carvalho procura mostrar que o Império no Ocidente é uma realidade — e realidade “contínua“, com ligeiro interregno entre a queda de Roma e o reinado de Carlos Magno; “problemática“, porque não apresenta a unidade estável e o crescimento orgânico de Roma; “decisiva“, uma vez que se serve indistintamente de todas as demais doutrinas; e “atual“, especialmente depois que a União Soviética sucumbiu ante os Estados Unidos e uma nova Roma ressurge no mundo. Em suma, cinco anos antes dos dois autores estrangeiros, o filósofo brasileiro já mostrava que o Ocidente se move para realizar sua sina de Império.

Sequer a idéia de que os Estados Unidos encarnam o “Império” — considerada por Singer a contribuição “mais original” de Negri e Hardt — deveria ser uma novidade para o país de Olavo de Carvalho. Num estilo primoroso, em que as imagens faíscam como fogos e os sons jorram como cascata, tirando o fôlego do leitor de bom gosto, o filósofo paulista já observava que os Estados Unidos vão “unificando e homogeneizando a humanidade, impondo por toda parte suas leis, seus costumes, seus valores, sua língua, e, administrando sabiamente as diferenças nacionais, é elevado à condição de supremo magistrado do universo”. O Império, segundo Olavo de Carvalho, é “destituído de convicções teóricas”, apoiando, indiferentemente, a revolução ou a reação, a escravatura ou a abolição, o moralismo puritano ou a rebelião sexual, o domínio colonial ou as reivindicações de independência nacional” — o que lhe importa é assegurar a “marcha ascendente da Revolução Americana” sobre o mundo. Depois de várias tentativas frustradas de restauração do Império Romano por parte de potências européias, César ressuscitou do outro lado do Atlântico. Os Estados Unidos — afirma Olavo de Carvalho — são uma “República imperial, capitalista, maçônica e protestante”.

O Conto da Carochinha — Irônico é que exatamente Olavo de Carvalho — tido como sequaz da extrema-direita pela gente da USP — seja muito mais crítico em relação aos Estados Unidos do que Antonio Negri e Michael Hardt, dois discípulos de Marx que pretendem fazer de Empire o Manifesto Comunista do século XXI. Informa o uspiano André Singer, sem fazer nenhuma ressalva, que o Império norte-americano, para os dois autores, é um poder benigno sobre o mundo. Entre outras coisas porque Negri e Hardt, segundo Singer, defendem a tese de que os Estados Unidos “nunca cultivaram um projeto imperialista”, salvo na colonização das Filipinas, e quando interferiram em outras partes do planeta, sua intenção era apenas resguardar a ordem mundial, em nome de valores como “o equilíbrio, a liberdade, a democracia”. Olavo de Carvalho sustenta o contrário desse conto da carochinha: “A vocação imperial norte-americana não nasceu junto com os Estados Unidos: nasceu antes”. E mostra essa “impressionante escalada” imperialista enumerando desde a ajuda “discreta mas decisiva” que os Estados Unidos deram à Revolução Francesa, em 1793, até a construção do Canal do Panamá, em 1906, passando pela compra da Louisana (1803), a tentativa fracassada de invasão do Canadá (1812), a Doutrina Monroe (1823), a anexação do Texas (1845), a intervenção branca na Califórnia e a guerra com o México (1846), a instalação de ponta-de-lança no Japão (1854), a compra do Alasca (1867), a anexação das Filipinas, a intervenção em Cuba e a guerra com a Espanha (1898).

Mas o que leva dois comunistas a tecerem loas aos Estados Unidos e de um modo aparentemente tão entusiasta que o fazem a quatro mãos? Essa questão já está antecipadamente respondida por Olavo de Carvalho no mesmo livro. Estimulado pelo poeta Bruno Tolentino, que lhe escreveu o prefácio da obra, O Jardim das Aflições nasceu de uma necessidade imperativa — encontrar a razão de uma conferência do filósofo Motta Pessanha parecer-se com uma palestra do neurolingüista Lair Ribeiro. Mas o que poderia ser apenas uma provocação sem maior importância revela-se um empreendimento intelectual de inaudita coragem, que devassa as entranhas do Ocidente desde a Antigüidade Clássica à pós-modernidade contemporânea, num vasto painel de erudição vestida de clareza e argúcia despida de malícia, embaladas, ambas, pela sinfonia de um estilo épico, capaz de abalar chavões da história, sofrear devaneios da filosofia e, sobretudo, fixar a verdade em sua única morada possível — na consciência que introjeta o mundo para melhor exprimi-lo. Se a esquerda brasileira perdoasse o polemista corrosivo do Imbecil Coletivo e buscasse o filósofo sincero do Jardim das Aflições, sem dúvida encontraria em Olavo de Carvalho sua melhor arma contra a globalização que tanto a assusta.

Convencido de que o filósofo José Américo Motta Pessanha — em sua conferência sobre ética no Masp e na direção da série Os Pensadores da Editora Abril — “não havia procurado mostrar o passado, mas moldar o futuro”, apresentando a filosofia como uma contínua “tradição materialista”, de Epicuro a Marx, intercalada por recaídas transcendentes, Olavo de Carvalho se propôs a demonstrar o contrário: “A tradição materialista, se existe, não se constitui de outra coisa senão do amálgama fortuito de negações antepostas, por diferentes indivíduos e por um número indefinido de motivos, a toda e qualquer afirmação do espírito. Ela está, para a densidade contínua da linhagem espiritualista, como os buracos estão para o queijo suíço”. Escrevendo numa dialética em espiral, em que as antíteses ascendem em turbilhão, Olavo de Carvalho amplia seus argumentos até o ponto em que parecem desafiar qualquer síntese, como quando intenta conciliar o alegado materialismo de Karl Marx com o caldeirão espiritualista da Nova Era, e o leitor já sem fôlego, atirado ao buraco negro de crenças em agonia, teme que o filósofo não lhe aponte uma outra cosmovisão capaz de substituir aquela que o catecismo materialista lhe ensinou desde o berço. Mas Olavo de Carvalho não o decepciona e, pouco a pouco, recompõe a história do pensamento ocidental — e o faz virando pelo avesso o mundo das idéias para que ele pare de revirar a realidade do mundo.

Conspiração do Silêncio — É tarefa impossível sintetizar O Jardim das Aflições em míseras páginas de jornal, sem ofuscar a cintilância de seu estilo, a profundidade de suas análises e, sobretudo, a originalidade de suas idéias. Filósofo e escritor, Olavo de Carvalho é melhor compreendido quando desfrutado — sua obra, como a melhor arte, é um amálgama de conteúdo e forma. Mesmo quando se discorda dele, — e é possível discordar de muita coisa do que escreve, — não se pode negar que sua obra viverá por si, porque vivifica quem a lê. Ao contrário de quase tudo o que se produz no pensamento brasileiro, ela não é transplante de idéias nem dissimulação doutrinária: Olavo de Carvalho ousa refletir com a própria cabeça e busca a adesão do leitor com argumentos. Daí o silêncio circundante em relação a tudo o que escreve — combater os possíveis senões pontuais de seu pensamento exigiria a admissão de que ele corrói pela base quase tudo o que se ensina nas escolas brasileiras. É o que faz, por exemplo, no livro O Jardim das Aflições. Afirmando que seu propósito “não é mudar o rumo da História, mas atestar que nem todos estavam dormindo enquanto a História mudava de rumo”, o filósofo começa demostrando o absurdo de se apresentar uma história da ética que elege Epicuro em lugar de Platão e Aristóteles, reduz a filosofia medieval a uma Inquisição que vicejou 200 anos depois dela e faz de uma Idade Moderna falsificada a baliza de toda a humanidade, além de transformar a religião numa variável da equação histórica quando ela é a constante que perpassa todas as épocas e os mais diversos regimes.

Olavo de Carvalho desmonta o Epicuro de José Américo Motta Pessanha, mostrando a inconsistência do epicurismo, mas sustenta que a espécie de ilusionismo filosófico proposta pelo filósofo do jardim sempre ressurge em momentos de crise, como uma fuga ante a realidade adversa. E pinta Motta Pessanha, cassado das cátedras sob a ditadura militar e exilado na Editora Abril onde formulou Os Pensadores, como um retrato dessa fuga, consubstanciada no auditório do Masp em maio de 90, quando uma platéia desiludida com a recente derrota de Lula e ainda oprimida pelo sucesso de Collor rendeu-se à “moral evasionista” do epicurismo, que assustava o próprio Marx, apreciador de Epicuro pela sua “crítica da religião oficial grega e sua mistura –dialética– de teoria e prática”. Mas como conciliar duas acusações diferentes contra o mesmo Motta Pessanha: a evasão epícurea do mundo com a transformação marxista da realidade? — perguntaria o leitor a Olavo de Carvalho. Mas não perguntará, porque é o próprio Olavo de Carvalho quem faz essa indagação a si mesmo, dialeticamente, para melhor respondê-la no Livro III do Jardim das Aflições, intitulado “Marx” (os dois primeiros são, respectivamente, “Pessanha” e “Epicuro, e os dois últimos, “Os Braços e a Cruz” e “Cæsar Redivivus”). Depois de provar que a filosofia de Epicuro é o ancestral da programação neurolingüística de Lair Ribeiro e do “materialismo espiritual” de Marx, Olavo de Carvalho explica a “invulnerabilidade do marxista convicto à argumentação racional”.

Esse argumento é um capítulo à parte, em que Olavo de Carvalho demonstra a tragédia axiológica e o rombo epistemológico que a 11ª tese de Marx contra Feuerbach provoca no homem moderno. Ao criticar a filosofia por limitar-se a interpretar o mundo, convidando os filósofos a transformá-lo, Marx, como demonstra Olavo de Carvalho, incorre numa das censuras morais que dirigiu ao capitalismo — sendo “teoria da ação e não do objeto”, a práxis marxista nega a existência ontológica de gentes e coisas para vislumbrá-las apenas como matéria-prima da revolução. Se no capitalismo o homem ainda é uma “mercadoria”, capaz de resistência ao menos por seu valor de troca, no marxismo o homem se reduz ao barro antes do sopro — isto é, a um nada ontológico nas mãos do demiurgo revolucionário. Esse materialismo, observa o filósofo, só foi possível depois que Nicolau de Cusa divinizou o espaço e Giambattista Vico divinizou o tempo, possibilitando ao homem abdicar de Deus para adorar, respectivamente, a geometria e a história. E ante a empáfia do intelectual moderno, capaz de sustentar a morte de Deus em meio a um oceano de crenças, Olavo de Carvalho esgrime uma argúcia afiada na ironia e compara esses desamparados filhos de Nietzsche com os iorubas e os bantos da África, vendo em sua rendição ao materialismo o mesmo culto tribal à natureza (deuses do espaço) e em sua louvação à história o mesmo culto aos antepassados (deuses do tempo).

Os Sacerdotes do Império — A originalidade de Olavo de Carvalho, como filósofo deste fim de século, não está apenas em refletir sobre o Ocidente a partir do conceito de “Império”, mas também em resgatar a importância de Deus como sujeito da história, demonstrando que a libertação da consciência pessoal, iniciada pela filosofia grega, só foi consumada no cristianismo, herdeiro da cultura judaica, talvez a primeira a escrever a história humana como a história da salvação da alma. Espécie de filosofia grega com apelo de massas, o cristianismo libertou a humanidade do mais despótico dos jugos — aquele do Rei que se acredita Deus e faz do Estado uma religião. Dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, o cristianismo conferiu ao homem um destino pessoal transcendente, relativizando o poder temporal do Estado, daí o martírio maciço dos primeiros cristãos, por incomodarem os poderes estabelecidos. Olavo de Carvalho demonstra que todas as religiões anteriores ao cristianismo encarnavam uma cosmovisão religiosa numa estrutura social determinada, não admitindo “qualquer possibilidade de uma verdade exterior à crença coletiva”. Contrariando o materialismo dos livros de história, ele sustenta que foi o cristianismo, encerrando a era do Estado sacerdotal, que possibilitou o verdadeiro nascimento do homem, como um ser autônomo e solitário.

Por isso, a Idade Média e a Escolástica saem do livro redimidas. Olavo de Carvalho demonstra que o homem moderno é quem intenta reconduzir o Estado para o trono de Deus, proposta que Comte deixou explícita em seu Catecismo Positivista. “Se Comte era o Messias da Religião da Humanidade, Hegel foi pelo menos seu São João Batista”, ressalta o filósofo, lembrando que a Revolução Francesa, sob o Terror de Robespierre, tentou fazer do civismo uma forma de beatitude. Os Estados Unidos, por encarnar desde o seu nascimento os ideais iluministas, é o lugar em que se realiza a profecia de Hegel — ele é o supremo Estado leigo que absorve indiferentemente elementos capitalistas e socialistas, impondo “à humanidade a imersão no historicismo absoluto”. Como Negri e Hardt, Olavo de Carvalho também reconhece que o Império pode ser “parcialmente um bem”, uma vez que, além de não suprimir as nações, limitando-se a ordená-las, também garante ao mundo um tribunal universal, capaz de reparar as injustiças de potências intermediárias contra nações pequenas. Mas, se do ponto de vista político, jurídico e até econômico o Império pode ser vantajoso, Olavo de Carvalho finaliza O Jardim das Aflições demonstrando que, “do ponto de vista de suas conseqüências psicológicas, culturais e espirituais”, a ascensão do Império mundial “é uma ameaça tenebrosa”. Ele é a ressurreição de César, a materialização da Religião Civil, a redução do homem a um objeto do Estado — sem Deus algum a quem recorrer.

Ironicamente, os intelectuais de esquerda — como Negri, Hardt e Singer — são os que mais contribuem para essa nova escravidão que se avizinha. Reduzindo todas as religiões a meras ideologias, relativizando todos os valores em nome da liberdade e pregando uma ética leiga que se assenta na opinião pública, eles contribuem para fazer do Estado norte-americano o único tribunal da humanidade. Como vem sustentando Olavo de Carvalho em sua cruzada, a única maneira de evitar essa tragédia é devolver ao homem o direito a uma consciência individual. Ela não é burguesa, como querem os comunistas; é simplesmente divina — aquilo que a matéria tem de humano.

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