Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético

10 de dezembro de 1999

 

Nota Prévia

No Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1999, prometi aos leitores fazer um comentário extensivo dos escritos de Antônio Gramsci, publicando-o à medida que fossem saindo os volumes da edição nova e completa anunciada pela Record.

Como, porém, o organizador da coleção é o mesmo da velha (publicada pela Civilização Brasileira a partir de 1967) e no tocante aos livros que já saíram nesta última não é provável que se façam grandes alterações nos textos, não há necessidade de esperar que saia o primeiro volume para iniciar a redação dos comentários, que posso muito bem ir fazendo com base na edição antiga, pronto a corrigir algum detalhe se mais tarde se revelar que o texto da Record traz novidades.

O método a seguir será o comentário linear, tão meticuloso quanto possível, recapitulado, de tempos em tempos, sob a forma de sínteses parciais, até o amargo fim.

Como ninguém duvida de que, do ponto de vista das bases gnoseológicas do seu sistema, o escrito mais decisivo de Antonio Gramsci é Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, e como este foi aliás o primeiro deles a ser publicado no Brasil (sob o título Concepção Dialética da História, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio, Civilização Brasileira, 1967, várias reedições)1, é por aí mesmo que vou começar.

Como estes comentários irão sendo divulgados pela internet à medida que se componham, e como é provável que os leitores lhes interponham de tempos em tempos perguntas e objeções, vou-me permitir interromper quando necessário o curso da exposição central para fornecer as respostas cabíveis – o que dará a este escrito o estilo movimentado de uma exposição em classe.

Já que muitos leitores vinham me pedindo algo como um curso de filosofia online, eis aqui a oportunidade de atender à sua demanda, e de fazê-lo de uma forma que será praticamente idêntica à de meus cursos “ao vivo”, nos quais, exatamente como aqui, prefiro, à exposição tratadística e sistemática, para a qual não tenho o menor talento, a abordagem dialética e crítica ao fio dos comentários a algum texto amado ou execrado. (Amado ou execrado, sim, porque, quando não resulta de um preconceito e sim das conclusões de um longo exame, a firme adesão ou repulsa moral, longe de obscurecer a visão objetiva das coisas, é a condição mesma da confiabilidade do conhecimento, se por conhecimento se entende não a simples visão, mas a visão com forma, medida e senso das proporções.)

Ademais, a discussão de Gramsci nos dará, de passagem, a ocasião de tocar em todos ou quase todos os pontos essenciais da problemática filosófica, de modo que estas lições perfarão, no fim das contas, um curso de introdução à filosofia com todas – ou quase todas – as exigências de praxe.

Olavo de Carvalho

10/12/99

 

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Parte I. ~ Comentários a
Il Materialismo Storico e la Filosofia
di Benedetto Croce

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Lição 1. – Introdução. – De como a filosofia parece fácil aos olhos de quem não sabe (ou finge não saber) o que ela é.

 

  • 1. Minha atitude pessoal perante o objeto destas lições

 

“Gramsci inspira respeito até mesmo aos seus mais encarniçados adversários”, afirmam Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder na nota introdutória à sua edição de Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce (A Concepção Dialética da História, Rio, Civilização Brasileira, 6ª ed., 1986), a primeira obra de Gramsci publicada no Brasil.

Há de fato um certo tipo de liberal progressista que tem, pelos intelectuais comunistas bem falantes, até mais que respeito: tem uma atração mórbida bastante masoquista. Dostoiévski retratou definitivamente o tipo em Os Demônios no personagem de Verkhovenski Sênior, o devoto da liberdade, da fraternidade e da igualdade, fazendo dele, simbolicamente, o pai carnal do cruel revolucionário que, para fomentar a revolta popular, não hesita em atear fogo a um bairro pobre da cidade. Mas Verkhovenski, no final do romance, percebendo na desgraça do povo a conseqüência lógica da aplicação de seus lindos ideais abstratos, tem ao menos a dignidade de ficar louco, e na sua loucura, como um novo Lear, admitir por fim a verdade longamente escamoteada.

Como à maioria dos idealistas falta completamente a lucidez que in extremis assume a responsabilidade pelas conseqüências imprevistas de suas palavras, não é de estranhar que mesmo entre seus adversários Gramsci “inspire respeito”.

Quanto a mim, digo o seguinte: se há algo que Gramsci não me inspira de maneira alguma, é respeito. Pode me inspirar espanto, repugnância, piedade, até mesmo hilaridade, embora seja pecado rir da desgraça alheia. Respeito, não. A falsidade da doutrina gramsciana não nasce de simples erros ou preconceitos parciais sobre um fundo de autêntico espírito filosófico e amor à verdade. Ela decorre de um desvio fatal do espírito, de uma opção tenaz pelo engano, que vicia todo o conjunto do seu pensamento. Enquanto a maioria dos filósofos vislumbra alguma verdade essencial e depois tira dela algumas conseqüências inaceitáveis, Gramsci se compromete desde o início com um erro essencial que contamina e deforma com uma perspectiva falsa até mesmo as inúmeras verdades de detalhe que ele apreende sobre mil e um assuntos. Em psicopatologia, esse fenômeno chama-se delírio de interpretação: por mais informações verdadeiras que entrem no quadro, a falsidade da perspectiva as deforma de tal modo que, no fim, nada se salva. Se Gramsci fosse louco – e às vezes, cum grano salis, digo que é -, sua doença se deixaria facilmente identificar como delírio de interpretação, mais ou menos como no caso de Rousseau, mentiroso patológico que tinha o dom de se persuadir das próprias mentiras até torná-las verossímeis aos olhos do leitor. Mas Gramsci não era um doente da alma, como o pauvre Jean-Jacques. Era simplesmente um homem hostil à verdade onde quer que ela aparecesse e sob qualquer forma que se apresentasse. Era um espírito comprometido de maneira essencial e visceral com a paixão – talvez a mais violenta e arrebatadora de quantas existem – de trocar o verdadeiro pelo verossímil, de preferir ao autêntico o simulacro, até o ponto de fazer da simulação e da pantomima o princípio mesmo da História e do mundo. Por isto as explicações psicopatológicas falham, irremediavelmente, no seu caso. É preciso subir às alturas da teologia para dar conta de fenômeno tão espantoso. Jesus dizia: “Vós sois deuses”, enquanto a serpente, no Paraíso, prometia: “Sereis comodeuses.” A doutrina de Antonio Gramsci advoga a universal e irrecorrível substituição da verdade por algo como a verdade. Essa conduta assinala precisamente aquilo que, na teologia cristã como na islâmica, é o pecado contra o Espírito Santo, o obstinado e consciente desprezo da verdade – o único pecado que a Graça não pode perdoar, nem neste mundo nem no outro. Tamanho delito não se pode imputar nem mesmo a Karl Marx ou a Lênin, talvez nem sequer a Josef Stálin. No Juízo Final, Jesus terá um olhar de misericórdia mesmo para os tiranos e genocidas. Mas àqueles que conscientemente desprezaram a verdade, Ele dirá apenas: “Não vos conheço.”

“Respeito” vem de re-spicere, que sugere a idéia de olhar o mesmo objeto duas vezes e reconhecê-lo. Aquele a quem nem o próprio Deus reconhece não pode, por definição, ser objeto de respeito, exceto se por “respeito” se entende o impulso servil que leva as almas débeis, como a de Verkhovenski, a se prosternar ante os que mentem com força. É algo como a “síndrome de Estocolmo” ou a atração ex post facto da estuprada pelo estuprador.

Nada atesta com mais evidência a fragilidade da maior parte dos ideólogos democráticos do que o fato de que tantos deles, mesmo abominando a doutrina de Gramsci, cedam à tentação de “respeitar” o seu autor.

Que, ao longo dos comentários que vou tecer sobre a doutrina de Gramsci, Deus me preserve desse pecado.

 

  • 2. Filósofos e filósofos

 

Começo pelo começo. O começo, o primeiro parágrafo de Gramsci que apareceu em português, é tão significativo que a edição hagiográfica do suplemento Mais! da Folha de São Paulo dedicado a Antonio Gramsci (21 de novembro de 1999) o escolheu, muito bem, como amostra característica do pensamento do fundador do Partido Comunista Italiano.

Esse parágrafo contém, a um tempo, a concepção gramsciana da filosofia, a noção essencial de “senso comum” e a declaração de objetivos de todo o esforço intelectual de Antonio Gramsci.

Analisando-o entramos portanto, desde logo, no centro do problema ou, melhor dizendo, na toca do dragão:

“É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”.

Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?” 2

Nesse trecho célebre, Gramsci dá uma exibição de incultura filosófica, incompreensão do assunto e solipsismo adolescente ansioso de fazer das suas próprias limitações pessoais a medida máxima do universo filosófico.

Ele aí busca persuadir-nos de que a prática da filosofia é coisa fácil porque, entre a filosofia espontânea do homem comum e a filosofia dos filósofos não há diferença essencial e qualitativa, mas apenas acidental e quantitativa: a filosofia dos filósofos é o mesmo sistema de crenças dos homens comuns, apenas dotado de mais coerência, mais homogeneidade, mais lógica.

Gramsci não concebe aí senão dois tipos de “filósofos”: o profissional especializado e o “homem comum” – aquele que filosofa ex officio e aquele que filosofa sem saber que o faz.

Para perceber o quanto essa distinção é periférica e postiça, basta notar que o príncipe mesmo dos filósofos, Sócrates, não se enquadra em nenhuma dessas categorias, como também aí não cabem Tales e Heráclito, Epicteto e Agostinho e uma infinidade de outros. Não são profissionais especializados nem filosofantes inconscientes.

A quem quer que examine uma amostragem significativa dos filósofos de todas as épocas, uma coisa que salta aos olhos é a absoluta impossibilidade de localizá-los numa categoria social determinada. A filosofia parece ser compatível com todas as posições de classe, com todas as condições profissionais e econômicas. Sócrates era um empreiteiro aposentado, Platão um aristocrata, Aristóteles um filho de funcionário público, Epicteto um escravo. Descartes era militar, Bacon juiz de direito, Espinosa técnico em fabricação de lentes, Leibniz diplomata, Vico mestre-escola, Marx jornalista e, last not least, Gramsci operário e depois agitador profissional. Filósofos profissionais universitários só predominam em curtos períodos, como na escolástica, no idealismo alemão e, em geral, na Europa moderna depois da reforma do ensino por Victor Cousin.

Os filósofos ex professo não são, em suma, uma categoria identificável sociologicamente.

A idéia de que os filósofos sejam uma categoria profissional à parte é apenas uma crença popular moderna e bem artificial. Gramsci acredita, porém, que, contestando-a, eliminará toda distinção essencial entre filosofia e crença popular.

Ora, essa distinção existia e era bem conhecida muito antes que a mencionada crença aparecesse e se tornasse “senso comum” no século XIX, após a reforma de Victor Cousin que fez da filosofia a profissão universitária que hoje conhecemos. Há um perfeito non sequitur, que Gramsci nem de longe percebe, entre a contestação da crença e a negação da distinção essencial. Ele crê ingenuamente poder deduzir uma coisa da outra (porque imagina que, discutindo com o senso comum do seu tempo, está discutindo com toda a tradição filosófica3).

Mas, se os filósofos não se distinguem dos não-filósofos sociologicamente, que é que os distingue então? É manifestamente uma diferença de atitude subjetiva: é, precisamente, o fato de que filosofam de maneira consciente e voluntária, pouco importando que o façam no quadro de uma atividade profissional ou nos lazeres de uma vida de “cidadãos comuns”.

Se no entender de Gramsci todos os homens filosofam inconscientemente, e alguns conscientemente, o fato de que ele designe os primeiros como “filósofos”, entre eloqüentes aspas, significa que ele próprio reconhece que só são filósofos secundum quid, isto é, sob certo aspecto, e não filósofos em toda a extensão do termo. Eles só filosofam de maneira passiva, imitativa e mecânica, “participando de uma concepção do mundo ‘imposta’ pelo ambiente exterior“. Ora, a filosofia é precisamente a atividade que reage criticamente a essa concepção e, por um esforço voluntário de giro da atenção, problematiza justamente aquilo que a concepção ‘imposta’ toma implicitamente, ou mesmo inconscientemente, por líquido e certo.

Chamar “filosofia” a essas duas atitudes é, propositadamente, confundir filosofia e cosmovisão. Cosmovisão é precisamente o sistema – por mais anárquico e incoerente – de crenças, hábitos e reações embutido, como frisa o próprio Gramsci, na linguagem, no “senso comum”4 e na “religião popular”. Uma cosmovisão, ainda que implícita e inconsciente, todo mundo tem. A filosofia começa quando o homem reflete criticamente sobre sua própria cosmovisão, coisa que seria impossível fazer de maneira inconsciente.

Que a passagem de crença passiva à de reflexão crítica seja coisa fácil, eis o que é desmentido, desde logo, pela escassez de filósofos na massa dos homens comuns, e, enfim, pela própria índole da atitude filosófica, que uma vez adotada isola um homem de seus semelhantes ao ponto de fazer dele um tipo estranho e muitas vezes socialmente inassimilável.

A atitude filosófica e a do “senso comum” diferem sob vários aspectos, mesmo quando têm diante do foco da consciência os mesmíssimos assuntos.

A tradição filosófica sempre enxergou a essência da filosofia precisamente na sua distinção da simples cosmovisão, distinção que corresponde, mutatis mutandis, à do individual e do coletivo5, à da contemplação e da ação6, à da atitude “natural” e da “reflexiva”7, etc. São tantas as diferenças que, ao longo dos tempos, os filósofos se exercitaram em destacar ora uma, ora outra, sem que entre essas várias abordagens exista contradição, senão complementaridade. O próprio Karl Marx, ao afirmar que “os filósofos, até agora, se limitaram a interpretar o mundo, mas o que interessa é transformá-lo”, estabeleceu uma linha demarcatória que coincide com a da tradição, apenas fazendo um apelo a que seus leitores ultrapassassem o círculo da filosofia para entrar no território mais vasto da ação histórica. Gramsci, ao contrário, enfatiza a continuidade e identidade de filosofia e cosmovisão, dissolvendo nesta a especificidade da atitude filosófica. Ele chega mesmo a afirmar, mais adiante, que, “entre os filósofos profissionais ou ‘técnicos’ e os outros homens não existe diferença ‘qualitativa’, mas apenas ‘quantitativa’“. E, embora admita que “neste caso, ‘quantidade’ tem um significado bastante particular, que não pode ser confundido com soma aritmética, porque indica maior ou menor ‘homogeneidade’, ‘coerência’, ‘logicidade’, etc., isto é, quantidade de elementos qualitativos8, de pouco vale esta ressalva, na medida em que os elementos qualitativos citados se reduzem às qualidades puramente formais – e até matematizáveis – do raciocínio filosófico: homogeneidade, coerência, logicidade, etc.

A filosofia reduz-se, enfim, à mera formalização lógica da cosmovisão recebida. E também de nada adianta a ressalva de que o filósofo não exerce essa atividade formalizadora somente sobre a sua própria cosmovisão e sim sobre “toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular9. Pois, na medida mesma em que estas estratificações estão consolidadas, elas constituem parte integrante da cosmovisão pessoal e são formalizadas, portanto, junto com ela. Que a “filosofia” assim compreendida nada tenha de difícil, que possa ser praticada por qualquer um e mesmo por um computador, é coisa que se pode facilmente admitir.

Mas essa concepção, se em si mesma é simplória e pueril, reduzindo o filósofo a um técnico em formalizar as opiniões recebidas, por outro lado não tem a mínima correspondência com os fatos conhecidos da história da filosofia, ao longo da qual nenhum, absolutamente nenhum filósofo – exceto o próprio Gramsci, que só é filósofo num sentido metafórico e elástico do termo – jamais se limitou a uma brincadeira mecânica e estúpida de formalizar a vox populi. Bem ao contrário, a maioria deles se notabilizou por rejeitar criticamente a massa de opiniões recebidas e por especular em novas direções, não raro chegando a conclusões que, por inauditas e heterodoxas, mal chegavam a ser compreendidas pelos seus contemporâneos, e que, se acaso vieram a tornar-se depois voz corrente e integrar-se no “senso comum”, só o fizeram num prazo bem longo e após enfrentar as mais prodigiosas resistências. O exemplo talvez mais característico é Aristóteles, cujo pensamento, notoriamente incompreendido até pelos seus discípulos mais próximos, sobreviveu apenas em forma fragmentária, até ser completamente obscurecido, só vindo a ressurgir, para então sim tornar-se voz corrente (e isto somente na classe letrada), uma vez decorridos treze ou catorze séculos da morte de seu criador. Longe de “formalizar o senso comum do seu tempo”, Aristóteles é expelido do discurso dominante da sua época e antecipa o senso comum de uma época futura, da qual não podia ter a menor idéia no instante em que criava a sua filosofia.

Não por coincidência, no sistema aristotélico a formalização e coerenciação das crenças correntes10, longe de constituir a essência da atividade filosófica, é apenas a condição prévia da verdadeira investigação: uma vez bem arranjado o conjunto das opiniões vigentes, o exame crítico delas deverá operar o salto qualitativo que, da discussão de doutrinas, passará à intuição da essência do objeto mesmo. Este momento fundamental da passagem das palavras às coisas é totalmente ignorado por Gramsci, e é precisamente ela que assinala, em Aristóteles, a diferença entre a filosofia, investigação rigorosa, e o mero confronto de opiniões.11

Outro exemplo de como a atividade do filósofo transcende infinitamente a coerenciação do senso comum nos é dado por Leibniz, que em plena época de mecanicismo hegemônico cria as bases de uma física indeterminista que passou totalmente despercebida aos seus contemporâneos e se tornou “senso comum” entre os cientistas dois séculos depois. Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. Nada, absolutamente nada, nem um único fato ou exemplo na história da filosofia confirma a definição gramsciana de filosofia, a qual no entanto ele não apresenta como proposta pessoal e inédita mas como expressão da realidade histórica da ocupação dos filósofos – o que evidencia, de um lado, uma prodigiosa incultura filosófica e, de outro, como seqüela dessa deficiência, uma afoiteza provinciana ou adolescente de fazer de si próprio, projetivamente, o paradigma de toda interpretação global da história da filosofia.

Com isto, já percebemos, desde a entrada, o tipo de terreno de pensamento em que nos movemos: estamos em pleno terreno da projeção ampliada e paranóica de uma idiossincrasia pessoal sobre o conjunto de uma história antes imaginada que conhecida.

Qualquer leitor que, somente por essa constatação, já não perceba estar lidando com o pensamento canhestro e informe de um parvenu estranho a toda reflexão filosófica, dá sinal de estar, ele próprio, bem mal equipado para a filosofia. Que um pensamento desse nível chegue a ser levado a sério e mesmo glorificado por uma boa fatia do mundo universitário, eis um fenômeno que assinala um alarmante obscurecimento coletivo da inteligência humana, um fenômeno que, se vier a se generalizar para além da quota de estupidez média admissível entre as massas de estudantes e bacharéis, não será excessivo qualificar de apocalíptico.

 

  • 3. A disputa filosófica entre o homem-massa e o homem-massa

 

Mas Gramsci vai um pouco mais longe no seu empenho de fazer da sua própria estatura de anão a medida máxima de aferição das intenções filosóficas alheias. Ele proclama que:

Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise.”12

Nada mais óbvio: se todos os homens são filósofos e os filósofos ex professo só se distinguem deles pelo grau maior de coerência e logicidade com que crêem exatamente nas mesmas coisas que eles, então entre o filósofo com aspas e o filósofo sem aspas não há outra diferença senão aquela que existe entre o conformista incoerente e o conformista coerente, entre o homem-massa espontâneo e confuso e o homem-massa assumido e formalizado.

Novamente, a idéia em si é estúpida e sem o mínimo respaldo histórico que se poderia exigir de uma generalização tão ambiciosa.

Se o homem não tem opção senão escolher entre um conformismo desagregado e ocasional e um conformismo consciente e sistemático, toda nova filosofia que apareça não pode ser senão a sistematização de um conformismo já dado, latente, em sua pureza, no seio dos conformismos confusos que perfazem o “senso comum” do seu ambiente.

Cada novo sistema filosófico, assim, em vez de se opor ao conformismo estabelecido, não faz senão aderir a um conformismo prévio, que ele apenas apresenta em forma mais depurada e límpida.

Isto resulta em afirmar que Sócrates não declarou nada que fosse formalmente contrário às crenças coletivas daqueles que o condenaram à morte, mas apenas deu coerência e homogeneidade àquilo em que todos já acreditavam. Seria positivamente uma lástima que um tão fiel sacerdote da crença estabelecida fosse condenado à morte por mero engano, só porque os juizes não tiveram a esperteza de notar que concordavam com tudo quanto ele dizia. Mais lamentável ainda foi que, tão hábeis em reconhecer o sentido unânime de suas próprias crenças consensuais quando se expressavam na algaravia coletiva sob forma multívoca, “ocasional e desagregada”, não soubessem reconhecê-las quando, pela boca de Sócrates, se apresentaram em linguagem mais lógica, mais coerente e mais homogênea. Nem Gramsci, nem o consenso mundial dos gramscistas reunidos poderá jamais nos explicar como um tal abismo de incompreensão pode se abrir entre um homem-massa que crê numa coisa e outro homem-massa que, além de acreditar piamente na mesmíssima coisa, ainda a explica ao primeiro em linguagem clara, didática e coerente.

Porém o mais lindo nessa história toda é que o senso comum, ao mesmo tempo que oferece resistência às inovações introduzidas pelo filósofo individual, desempenha também a função de sujeito ativo e criador que antecede as descobertas do filósofo. Mas se o senso comum é ao mesmo tempo o baluarte do conformismo e a mola-mestra da renovação filosófica, acumulando os dois papéis principais na trama do processo histórico, para que raios seria necessário um filósofo para depurá-lo se esta depuração será sempre subseqüente às mudanças fundamentais? Se o senso comum era um resíduopassivo precisamente por ser inconsciente, e se por isto necessitava do filósofo para trazê-lo à luz da consciência, como pode agora tornar-se por si próprio o fator ativo, quando só na consciência do filósofo ele adquire a forma e o sentido unitários necessários à passagem da passividade à atividade? A indistinção canhestra de inconsciente-passivo e consciente-ativo é aí manifesta, e ela basta para dar a este ponto da doutrina gramsciana aquela característico estofo de confusão impenetrável que só aos olhos do principiante ingênuo pode passar por sinal de pensamento profundo.

Que toda a doutrina gramsciana é uma bobagem grosseira, indigna de atenção filosófica séria, eis algo que, se já não se tornou evidente a algum leitor mediante este breve exame de um parágrafo fundamental de Antonio Gramsci, arrisca não se tornar claro nunca mais, porque nenhum acúmulo de provas poderá jamais dar inteligência filosófica a uma mente inepta.

Em todo caso, vale a pena prosseguir acumulando provas até o limite do intolerável, porque o culto gramsciano não nasce de uma privação de inteligência, e sim de uma perversidade da vontade – e, ao contrário da inteligência rombuda, à qual a própria força probante dos argumentos mais perturba que esclarece, impelindo-a cada vez mais para longe da verdade e para dentro da sua própria confusão, a vontade doentia, esta sim, quando coexiste com uma inteligência sã, não tem forças para negá-la indefinidamente e mais dia menos dia acaba cedendo ao peso das evidências, ainda que a contragosto.

 

NOTAS

  1. Todas as citações de Gramsci nesta parte, exceto indicação expressa em contrário, são extraídas desta obra e edição.
  2. A Concepção Dialética da História, pp. 11-12. A continuação imediata deste parágrafo, também reproduzida na Folha, será dada e comentada mais adiante.
  3. Ele é levado a esse erro grosseiro justamente por um preceito da sua própria doutrina, segundo o qual o “senso comum” contém um depósito de todas as filosofias de eras passadas. Ora, a experiência moderna mostra que o “senso comum” – no sentido específico que Gramsci dá a este termo – é bem mais vulnerável à ação consciente de propagandistas e manipuladores do que à influência residual das tradições. A própria eficácia publicitária do gramscismo é uma prova disso. Além do mais, os elementos da tradição, mesmo quando não sejam totalmente esquecidos (o que necessariamente acontece quando se rompe a cadeia de transmissão) podem sobreviver no senso comum sob forma desfigurada e caricatural.
  4. Discutirei este conceito mais adiante.
  5. Por exemplo, Vladimir Soloviev: “A filosofia, em sua qualidade de conhecimento reflexivo, é sempre obra da razão pessoal. Ao contrário, nas outras esferas da atividade humana geral, a razão individual, a pessoa isolada desempenham um papel antes passivo: é a espécieque age; uma atividade impessoal aí se manifesta, similar à do formigueiro ou da colméia. É indubitável, com efeito, que os elementos essenciais da vida do homem (línguamitologia, formas primitivas da sociedade) são, na sua formação, totalmente independentes da vontade consciente das pessoas isoladas. No ponto em que está a ciência atual, está fora de dúvida que a língua ou o Estado não foram inventados por pessoas isoladas, tanto quando a organização da colméia, por exemplo, não foi inventada por abelhas isoladas. Quanto à religião, no sentido próprio (não a mitologia), ela também não pode ser inventada: nela também a pessoa isolada desempenha, como tal, um papel antes passivo, em primeiro lugar na medida em que uma revelação exterior, independente do homem, é reconhecida como fonte objetiva da religião, e em seguida na medida em que o fundamento subjetivo da religião é a crença das massas populares, determinada pela tradição comum e não pelas investigações da razão pessoal.” (Crise de la Philosophie Occidentale [1874], trad. Maxime Herman, Paris, Aubier, 1947.)
  6. Aristóteles.
  7. Husserl.
  8. P. 34.
  9. P. 12.
  10. E mesmo assim não de toda a vox populi, e sim somente das opiniões dos sábios, isto é, daqueles que dedicaram ao assunto uma atenção consciente e que por isto já não expressam simplesmente a voz corrente e sim uma depuração dela.
  11. Veremos adiante que em Gramsci o objeto, a realidade investigada, desaparece completamente do horizonte de visão, transformando a filosofia num mero conflito de opiniões que se reduzem, por fim, a interesses de classes – não lhe interessando nem sequer demonstrar que esta redução, considerada enquanto conteúdo da sua doutrina, é por sua vez verdadeira e corresponde aos fatos; ao contrário, ele a toma por pressuposto e, em última análise, como decisão da vontade.
  12. P. 12. Na sentença final a ed. citada traz “esse inventário”, que o texto da Folhamudou, inexplicavalmente, para “essa análise”.

Parte 2

 

 

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