por Andrei Pleshu

Ministro das Relações Exteriores da Romênia
Diretor do New Europe College de Bucareste

15 de junho de 1998

Tradução de Pedro Sette Câmara e Olavo de Carvalho

 

Andrei Pleshu

Andrei Pleshu é, no ambiente rígido e artificial da diplomacia mundial, algo como a presença solar de uma criança num asilo de velhos. A inteligência prodigiosa, a cultura, vivacidade, a sinceridade, o inesgotável senso de humor, o tom direto e franco com que diz o que ninguém diz, já fizeram desse representante de um país pequeno e marginal o centro natural de muitos encontros internacionais de ministros de Estado. Famoso e respeitado como intelectual desde antes de assumir o Ministério das Relações Exteriores, Pleshu é autor de livros onde a profundidade da meditação filosófica transparece através de um estilo acentuadamente poético de escrever. Nas conversações pessoais, esse homem volumoso com barba e voz de profeta passa com a maior naturalidade de uma discussão sobre a metafísica de Lucian Blaga às piadas brasileiras de papagaio, o único item que posso me gabar de ter acrescentado à sua erudição. A conferência “Algumas Neuroses do Leste” foi pronunciada em 15 de junho de 1998 no Stifteverband für die deutsche Wissenschaft em Wiesbaden e publicada no Romanian Journal of International Affairs, vol. IV, Special Issue 1, 1998. — O. de C.

Um dos passatempos prediletos dos intelectuais é a neurose. Por neurose entendo a capacidade de descobrir em qualquer situação um componente irritante, uma pitada de veneno. Todo intelectual verdadeiro tem a vocação para a insatisfação, o talento de sentir-se mal. Não faz sentido, agora, ficar perguntando se sempre foi assim. O que é certo é que é assim na era moderna. Nos antigos países comunistas, a neurose intelectual tem uma sintomatologia específica, da qual posso falar com alguma competência, não na condição de analista distanciado, mas de paciente crônico. O curioso é que a grande virada de 1989 intensificou as neuroses, em vez de curá-las. Antes, as frentes eram bem definidas: de um lado, o poder totalitário; de outro, o intelectual resistente. De um lado, os campos de concentração socialistas enquanto variante mundana do Inferno; de outro, o “mundo livre” enquanto variante mundana do Paraíso. Não havia nuances, e onde não há nuances a neurose está sob controle. Porém, desde 1989 vimo-nos sufocados sob uma multidão de nuances. As liberdades adquiridas anestesiam o sentimento de fatalidade, estimulando, ao contrário, a euforia do possível. O possível significa a oportunidade de escolher. E quando um intelectual tem de escolher alguma coisa, aí a neurose está por perto.

Primeiro, descobrimos que, se o universo totalitário tinha sido nosso grande infortúnio, nosso drama histórico, tínhamos pelo menos conseguido nos adaptar: ele era para nós uma face do destino e um fato da vida. Do nosso destino, da nossa vida diária. Em outras palavras, identificávamo-nos com aquilo que vivíamos, como você se identifica com a sua dor de dentes, com a sua insônia, com o seu instinto de sobrevivência. Isto é o que explica a existência de saudosistas, isto é, daqueles que falam da experiência da ditadura no mesmo tom em que nossos avós falam da guerra, da prisão ou da miséria: as más recordações misturavam-se suavemente com uma espécie de consciência heróica e com a satisfação de tê-las superado. Mais ainda, elas eram a substância e o pano-de-fundo da nossa juventude. Movíamo-nos à vontade num ambiente adstringente, que tonificava nosso sentimento vital. Então a resistência, mais ou menos eficiente, mais ou menos ilusória, era em si mesma uma volúpia. Em suma, você podia viver e enganar a si mesmo com a idéia de que tinha uma vida difícil mas interessante. No entanto, agora, depois da “grande mudança”, você é obrigado a descobrir o lado sombrio da liberdade (geralmente chamado “problemas de transição”). É o tédio que vem de não ser mais incomodado pela censura, de ter perdido o “inimigo” tradicional; o tédio que vem da banalidade das viagens, da multiplicação de tentações, de mistura com a falta de recursos — que vem, enfim, de todas aqueles inconvenientes que normalmente acompanham os sonhos que viram realidade. A normalização é soporífera. Decepcionante. O que Timothy Garton Ash chamava de “os benefícios da adversidade”, a utilidade da perseguição, cai no esquecimento. Em lugar dela, agora você tem de descobrir as inconveniências da escolha e da responsabilidade. Os intelectuais confrontam-se com um novo dilema que produz novas neuroses. Quê devem fazer? Aproveitar a liberdade para finalmente fazer o que cada um quer ou adiar a realização das vocações para poder apoiar o esforço geral de reconstrução? Obviamente, qualquer das decisões é logo sentida como lamentável. O intelectual que fica à margem desse processo é tomado de culpa moral, e aquele que decide participar descobre a promiscuidade da política e a precariedade do seu talento pragmático. Ambos passam a ter insônia. O demônio cívico entra em conflito com o demônio espiritual. Qualquer tentativa de reconciliá-los seria suspeita de ingenuidade ou vaidade. Em outras palavras: ao invocar a necessidade de uma moralização da política ou o dever dos intelectuais para com a sociedade, a gente acaba caindo, no primeiro caso, numa inadequação utópica; e, no segundo, numa ambição hipócrita sedenta dos álibis mais nobres para um apetite carreirista dos mais banais.

No que diz respeito ao novo mundo que se abre diante do ex-campo de concentração socialista, não há dúvidas de que está cheio de virtudes e possibilidades tentadoras, mas sua constituição é fundamentalmente diferente do que tínhamos em mente. É um mundo melhor, mas é diferente do que imaginávamos. E não é ou não parece ser “melhor” em todos os aspectos. De qualquer modo, a relação entre o nosso mundo, ainda tonto com cinco décadas de totalitarismo, e o mundo confortavelmente instalado da Europa Ocidental, um mundo para o qual a democracia, o papel da lei e a prosperidade estão presentes diariamente, ainda não se consolidou da melhor maneira. Para cada um desses dois mundos, o “outro” é um apinhado de banalidades, uma mistura de falsas representações — incluindo vários Wunschvorstellungen (1) —, preconceitos e ignorância. A situação nos recorda o começo de um texto de Unamuno que diz que, quando Pedro e Juán conversam, na realidade há pelo menos seis pessoas conversando: o Pedro real e o Juán real, a imagem que Pedro faz de si mesmo e a imagem que Juán faz de si mesmo, e a imagem que Pedro faz de Juán e a imagem que Juán faz de Pedro. É isto o que acontece quando a Europa Oriental e a Europa Ocidental se encaram. Somos propensos a achar que o Ocidente é a solução absoluta de todas as nossas frustrações, o róseo inventário do que precisamos: liberdade, segurança, justiça e bem-estar social. Eventualmente admitimos que a perfeição não existe, que mesmo no Ocidente há alguns problemas, mas, em geral, qualquer tentativa de diminuir ou questionar o sucesso capitalista nos irrita, por nos fazer lembrar a retórica agressiva e deformante da ideologia partidária que distorceu nosso raciocínio durante décadas inteiras. Neste contexto, é inevitável que o menor desapontamento nos atire para os extremos. Quando a Terra dos Sonhos perde um pouco sua cor, quando rugas aparecem no rosto do anjo, o sonhador fica furioso. O Ocidente torna-se uma coisa satânica — o primo rico e impiedoso, o desumano a uto-satisfeito, o culpado por excelência. Aquele que nos entregou aos comunistas em 1945, e que agora nos examina tão detalhadamente com sua lente de aumento, que nos submete a testes desonrosos e nos trata com condescendência.

Por sua vez, o Ocidente começou tendo pena de nós (no tempo em que éramos fornecedores de sofrimento e dissidências), depois passou, no fim de 1989, por um breve episódio de entusiasmo fraterno (éramos heróis, estávamos rompendo as correntes, fazendo revoluções de sangue ou de veludo) e terminou por mostrar um ar polidamente constrangido com a nossa melancolia, a nossa impotência e o nosso atraso. O Oriente é o primo pobre e fracassado, além de cheio de pretensões. Ele não chega a ser um alter ego que falhou, mas é antes um aborto inútil. Aquele que precisa de ajuda sempre acaba ganhando ares antipáticos. O cidadão dos países “desenvolvidos” descobre, com alguma apreensão, que para “normalizar” a situação na Europa Oriental ele tem de abdicar de uma parte da sua própria normalidade. Por que ele deveria fazer isto?

Indubitavelmente, tanto a utopia quanto o ressentimento, tanto a pena quanto a raiva são reações inadequadas, que provavelmente só contribuirão para falsear a verdade dos dois mundos e impedir sua reunificação harmoniosa. O que a História, depois de 1989, trouxe de novo a esta relação? Para tornar as coisas mais simples, eu diria que passamos da inexistência de passaportes para a inexistência de vistos. Antes, o “mundo livre” estava pronto para receber você, mas o seu mundo, o “campo de concentração socialista” não deixava você sair, ou, se deixava, o fazia de maneira difícil, sob condições aviltantes. Agora, o seu mundo deixa você sair quando quiser. Ganhamos um dos direitos humanos fundamentais: o direito de ir e vir. Mas temos problemas com o mundo livre que, de repente, hesita em nos receber. O imigrante da Europa Oriental é uma calamidade. Não quero que pensem que estou reclamando de alguma coisa ou que não entendo os argumentos das embaixadas e consulados ocidentais. Quero somente mostrar que, às vezes, a “grande mudança” pela qual passamos consiste, ao menos na superfície, na troca de um bloqueio antigo por um novo. Um pouco melhor – porque é somente nosso atestado de identidade que está sendo censurado e não a identidade mesma. Nossa liberdade não está sendo suprimida: está sendo “dosada”.

Existe, no entanto, uma variante positiva a estimular as relações entre Oriente e Ocidente: não a reticência consular, mas a corrida para a integração européia, o restabelecimento dos padrões comuns. Tendo sido deixados, graças à suspensão comunista, fora das tendências gerais, agora nos é oferecida a chance de recuperar o horizonte de entrada na grande família da qual fomos excluídos arbitrariamente, tanto no plano político quanto no econômico, mas da qual nunca fomos excluídos geograficamente, historicamente e culturalmente. O problema da nossa integração européia coloca duas grandes questões: “Em quanto tempo?” e “Segundo qual critério?”. O ritmo depende, em grande parte, de nós. Mas e o critério? A primeira questão está diretamente ligada à nossa capacidade vital. Nós provaremos, ou não, que podemos ser atuantes, que ainda temos energia para nos recompor. O único inconveniente é a constante ameaça de um ciclo vicioso: não podemos nos integrar a menos que sejamos ajudados e não podemos ser ajudados a menos que pareçamos integrados. O problema não deixa de ser, de certa forma, de natureza técnica. Mas a segunda questão — a do critério — é pura metafísica. Porque o critério de integração depende da imagem que temos do espaço no qual desejamos nos integrar. A questão que se coloca, portanto, é nem mais nem menos que: “Que é a Europa?”. Espero não atiçar sua curiosidade ao ponto de fazer vocês esperarem por uma resposta. Não sou capaz de dizer o que vem a ser a Europa e, na verdade, não quero tentar descobrir isso agora. Mas posso dizer qual é a cara dela para aqueles que querem entrar. Mais precisamente, o quê em sua face nos parece um “modelo”, um “objetivo”, e uma exigência definitiva.

Vista de fora, a Europa é, antes de tudo, um lugar onde se fala amplamente o inglês: o acesso a este lugar impõe ao candidato um screening, é desejável que o processo de integração tenha um follow-up e que este processo seja all-inclusive. O candidato é assistido por certas catch-up facilities, e por um programa de tipo know-how. Apesar disso, nesta gigantesca anglofonia, flutua também um prestigioso termo francês: acquis communautaire. Ele se refere àquilo que os países desenvolvidos têm em comum, o resultado de séculos de evolução econômica, social e política: a riqueza da comunidade, a quintessência do progresso humano, a fundação da civilização pós-moderna – algo que vai das leis e instituições até o tamanho ideal dos ovos e tomates. Este é o horizonte que deve ser visado por todos os países candidatos. Conseqüentemente, o candidato é confrontado com um grande número de exigências, incluindo algumas q ue têm uma importância privilegiada: ecologia, direitos humanos, respeito pelas minorias, suspensão da discriminação étnica e sexual. Uma vez desenhada, esta mirífica paisagem termina por criar os sonhos, as frustrações e perplexidades do contemplador “não-integrado”. Primeiro, ele tem um problema de velocidade: como “apreender” tantos esplendores num tempo tão curto, com um painel de instrumentos tão pequeno e com uma estrutura psíquica convalescente. O fato é que você é confrontado com dúzias de prioridades a cada segundo. Tudo é prioridade. Em outras palavras, você tem somente prioridades. Nestas circustâncias, você só consegue ficar paralisado e gaguejar. Você tem de resolver ao mesmo tempo os buracos nas ruas, o vácuo legislativo, a poluição da água, a inflação, a pobreza, os direitos dos ho mossexuais, a proibição da propaganda de cigarros, a renovação das prisões, o que fazer com o lixo público, com o confessionalismo estreito, com a discriminação das mulheres, com a crise médica, a precariedade dos serviços, a reforma da polícia, a limpeza dos trens, a socialização dos prisioneiros, a educação dos ciganos, o renomeação das ruas, o financiamento para o teatro, a proteção aos animais, a preparação de novos passaportes, a modernização dos banheiros, a privatização, a reestruturação, o reaquecimento da economia, a reforma moral, a renovação de pessoal, a redefinição do sistema de educação, a troca de embaixadores, a consolidação da sociedade civil, o estímulo às ONGs, a renovação de hospitais, os menores abandonados, os pacientes de AIDS, as novas redes de máfia e muitas outras coisas. Tudo é obrigatório, tudo é urgente. Nesta pressa que não tolera hierarquias, cronogramas pacientes ou atrasos, surge inevitavelmente um problema de mentalidade. Confundido pelas cercas que tem de pular, o homem comum desenvolve uma espécie de indigestão ideológica. Ele não entende mais o que se espera dele, e se sente ameaçado, incompreendido, brutalizado. A Europa adquire, em sua mente, as aterrorizantes dimensões de um Obersturmbandführer, e a integração européia se lhe apresenta como uma corrida exaustiva. Dizem-lhe que a discriminação é má e ele se sente discriminado. Dizem-lhe que a tolerância é boa e ele se sente julgado com intolerância. Ele começa a associar, neuroticamente, princípios e valores heterogêneos. A exigência geral aponta para o nivelamento dos critérios. Tudo é igualmente importante. Ser europeu equivale a adotar uma plumagem multicolorida na qual as idéias, o dinheiro, os hábitos íntimos, as convicções religiosas e a qualidade da cerveja estão no mesmo plano. Surgem inocentes e cômicos malentendidos.

Quando o Parlamento romeno começou a discutir a abolição das leis que criminalizavam o homossexualismo, muitos camponeses, padres e comerciantes pensaram que o que estava sendo proposto era a legalização, isto é, a obrigatoriedade do homossexualismo… De qualquer modo, é difícil explicar ao desnorteado cidadão da transição que a entrada na Europa está diretamente ligada às suas preferências sexuais, ou à sua posição em relação às opções eróticas dos outros. E mesmo o cidadão mais educado não está livre de certas confusões. Ele achava que estava livre de tabus, mas descobre que tem de assumir novos tabus. Vejamos um exemplo: antes de 1989, era proibido ao intelectual romeno ler Mircea Eliade, porque a censura comunista proibia qualquer leitura de natureza religiosa. Agora, há uma tendência a que Mircea Eliade caia de novo sob suspeita, ficando difícil de citar ou mesmo até de ler, porque desta vez são trazidas à tona as orientações de extrema-direita que ele teve em sua juventude. Por outro lado, países que condenam severamente a inércia comunista de alguns governos do leste europeu toleram, ou quase mesmo aprovam, a reabilitação ou pelo menos a “desculpabilização” de alguns compromissos tipicamente comunistas de alguns de seus cidadãos. Confrontados com as dificuldades do ajustamento, sendo que citamos somente aquelas mais à mão, o homem do leste europeu está sempre sob a ameaça de uma depressão crônica. O que é, afinal, a Europa? Como Hippias em um dos diálogos da juventude de Platão, ele procura, incerto, por uma definição que decorra daquilo que a Europa mesma oferece a ele. “O que é o belo?”, pergunta-se o herói platônico. O belo é uma bela garota, responde primeiramente Hippias, misturando o atributo individual com o conceito. É assim que o aspirante à Europa pode se enganar: ele pode tomar um exemplo como uma definição, dizendo, por exemplo, “A Europa é um país europeu, como a França, ou a Alemanha, ou a Itália”. Provocado por Sócrates, Hippias continua suas explorações: o belo é o esplendor da matéria, do ouro. Um passo além, o belo é a harmonização, a funcionalidade, o cumprimento de um destino, o bem ou aquilo que provoca prazer desinteressado . Provocado pela União Européia, nosso homem do leste pode, ele também, arriscar uma série crescente de definições: a Europa é o dinheiro único, o mercado comum, a estabilidade de um modo de viver, o equilíbrio de direitos e deveres, a comunhão nos mesmos valores. Ao fim do diálogo de tipo platônico, os interlocutores concordam que é muito difícil definir o belo. As coisas terminam de maneira incerta. Todos nos encontramos hoje numa incerteza parecida: é muito difícil definir a Europa. E, para alguns, o problema é ainda pior, porque eles têm de, na ausência de uma definição, encontrar um jeito de integrar-se.

Apesar de todas estas complicações, podemos esperar — e temos razões para fazê-lo — que, num dado momento, num futuro não tão próximo, mas não tão distante, seremos reintegrados aos poucos grandes “clubes” dos quais queremos fazer parte. Mas, psicologicamente falando, confrontamo-nos, mesmo diante deste horizonte de esperança, com certas dificuldades. Os países da Europa oriental têm uma má relação com o tempo. Temos problemas com o passado, particularmente com o passado recente, que são cinqüenta anos de ditadura comunista. Temos problemas com o presente: na tentativa de trocar um sistema por outro, defrontamo-nos com todas as inconveniências dos períodos de transição, como a instabilidade, o baixo padrão de vida, a confusão de valores, a mudança radical de mentalidades por sobre um fundo desencorajador de inércia administrativa e social. Sim, e o que é menos comum, temos uma má experiência do futuro. Durante anos, a retórica do estado totalitário tentou compensar a ausência de soluções imediatas com sua supera bundância de um futuro “dourado”, garantido ideologicamente mas, de fato, indefinido. Diziam-nos que o hoje era difícil, mas que o amanhã seria maravilhoso, que a glória da atual geração consistia em seu desejo de sacrificar-se pelas gerações futuras. Esforço, paciência e esperança incondicional eram exigidas de nós. Agora, toda vez que mencionamos a União Européia e a Aliança Euro-Atlântica, nossos desejos são mais uma vez jogados para o futuro. Se tentarmos, conseguiremos – dizem-nos – atingir nossos objetivos dentro dos limites de um calendário incerto, que vai do ano 2000 a 2015 ou 2020. Esforço, paciência e esperança incondicional são, mais uma vez, exigências para garantir a felicidade de nossos netos. Obviamente, desta vez falam conosco de boa-fé, e as promessas feitas são mais realistas. Mas é inevitável que todo discurso a respeito de um futuro melhor nos traga “lembranças” muito desagradáveis…

As neuroses que descrevi até aqui são complementadas, no meu caso, com mais uma ainda. Num país que tem de encarar novas provocações, num momento de explorações e de crise de identidade, vejo-me numa situação que jamais imaginara para mim mesmo: a de Ministro das Relações Exteriores. Eu asseguro a vocês que é mais do que estimulante tentar fazer uma boa política no estrangeiro tendo um fundo de política doméstica tão precário. Você está como um comerciante que tem de fazer lucro tentando vender mercadorias virtuais.

Mas além dessa experiência há outra que talvez pareça ainda mais interessante: é o que um intelectual recém-chegado do lado de fora ao centro da vida diplomática mundial aprende a respeito dela. Amador (ainda), mas verde (ainda). Verde exatamente porque, sendo um amador, não teve ainda tempo para ser contaminado pela rotina da profissão. As palavras-chave que eu traria para caracterizar, do meu ponto-de-vista, a diplomacia contemporânea são aceleração, codificação e banalização.

Aceleração. O dia de trabalho de um diplomata é organizado, especialmente quando ele está em missão, segundo um horário impressionante. Num único dia de visita oficial, um ministro estrangeiro se encontra com um presidente (ou um monarca), um primeiro-ministro, dois ou três membros do governo (incluindo o Ministro de Relações Exteriores do país visitado), representantes da imprensa e da comunidade dos seus conterrâneos que vivem no país visitado, um grupo parlamentar, empresários, personalidades da vida pública etc.. A isto, some-se um café-da-manhã a trabalho, um almoço protocolar, um jantar e, às vezes, uma conferência… Tal programa não é feito dentro dos limites da escala humana. Os ritmos do homem normal, sua performance mental, suas capacidades físicas, não podem se adaptar por um longo tempo e em condições ótimas a um esforço desse tipo. A única solução é o estereótipo: você se mantém repetindo tenazmente a mesma mensagem, o mesmo sorriso, os mesmos gestos. Você é a vítima de um delírio mecânico. Você cruza – cada vez com mais velocidade e recursos cada vez mais débeis – um corredor previsível e anônimo. Cada conferência internacional traz outras, cada encontro começando com um rito circular, no qual os assuntos, os termos e as decisões já vêm prontos. Numa palavra, tudo isto junto poderia ser chamado de “diplomacia fast-food“. Talleyrand não teria sobrevivido a uma mecânica assim senão escolhendo entre a veleidade e a melancolia.

Codificação. As codificações – como já sugeri – são o salutar corolário da aceleração. A economia de tempo e de energia é possível somente graças à troca da comunicação real por códigos e formalismos. O consenso, na verdade, precede o debate. A declaração final é o primeiro documento que você recebe no início da reunião. Você sabe o que vai dizer e é tudo preparado por experts que, além disso, têm a delicadeza de tomar notas do que você diz, ainda que sejam eles mesmos os autores do texto. (Apesar disso, eu próprio reclamo a paternidade do texto presente.) Você sabe – com raras exceções – como tudo vai terminar. Se algo ainda continua imprevisível de algum modo, são os comentários dos jornalistas no dia seguinte. Falando de codificação, não resisto a invocar a quantidade de organizações internacionais e organismos expressados num labirinto de iniciais sibílicas. De Gaulle era fascinado pelo mistério das iniciais da ONU (Qu’est-ce-que ce machin-lá?). Hoje, ele teria de falar em OSCE, BSEC, CEI, CEFTA, EAPC, MERCOSUR, PREPCOM, SFOR, TRACECA, UNPREDEP etc. A cada ano, o número de organizações e comissões internacionais aumenta. Todos os tipos de reuniões tomam a agenda dos círculos diplomáticos, o que não acarreta necessariamente um aumento de diálogo. Você freqüentemente vê as mesmas pessoas, sem jamais ter a chance de verdadeiramente conhecê-las. Os momentos de “contato” real são reduzidos aos mínimos interst ícios oferecidos pelo protocolo: o coquetel, o almoço oficial (se não for “de trabalho”), a “foto de família”. Mas ainda nestes momentos tudo é reduzido a uma impressão inefável, à concisa cordialidade de uma resposta, às solidariedades de um círculo restrito. De resto, o código é esmagador. Você é “importante” e uma nulidade ao mesmo tempo. Mais do que você mesmo, você é tudo o que for permitido pelo seu crachá, pelo cartãozinho que marca seu lugar na mesa de negociações. Mesmo a língua que você fala torna-se um simples sinal, uma sugestão de um código preferencial, com conseqüências políticas. Isto é particularmente válido para um país como a Romênia, que não pode optar, sem um cálculo preciso, a respeito da maneira de se expressar. Se você falar romeno, ninguém irá compreendê-lo e ninguém irá traduzi-lo. Se você falar inglês, os franceses dirão que estão surpresos de verem o representante de um país francófono cometer essa indelicadeza. Se você falar francês, os anglófonos irão considerá-lo fora de moda. E se você falar alemão, ninguém acreditará que você vem da Romênia. O dilema é aparentemente pequeno, mas, dentro do contexto, pode desempenhar um papel inesperado.

Banalização. Não era comum, antigamente, que os encontros internacionais fossem tão comuns na vida diplomática. Uma conferência internacional tinha tudo para se tornar “histórica”, exatamente porque só ocorria a grandes intervalos, na véspera de acontecimentos importantes. Hoje, os encontros ministeriais tornaram-se uma atividade quase diária. O diplomata não é mais um símbolo plenipotenciário, uma posição de solenidade. Ele é um alto oficial, absorvido por uma escravidão linear. A decisão pertence antes às instituições que ele representa (presidentes, primeiros-ministros, parlamentos, partidos), e sua implementação à equipe de técnicos que o acompanha. O coeficiente de rotina e o componente convencional da vida diplomática é que são preponderantes. E aquele que, por imprudência, temperamento ou “diletantismo”, sai do típico, aquele que contradiz a norma, ainda que seja por um pedaço de frase, imediatamente cria uma comoção pública cujos resultados são imprevisíveis. O interlocutor subitamente abre os olhos, nota você, e, se você tiver sorte, ele reconhece, em particular, que você trouxe um tom um pouco mais arejado para o debate. Se você tiver azar, será arquivado sob as r ubricas “exotismo”, ou “esquisitice do leste”. O risco é grande. A banalização da vida diplomática também tem raízes no fato de que os encontros internacionais são geralmente confiscados por problemas secundários. Toca-se somente em problemas de natureza mais ou menos técnica ou então as pessoas se limitam a produzir um cronograma. Assuntos essenciais ficam intocados. Nenhum dos encontros da União Européia a que estive presente discutiu a “identidade” européia, nem o que significa o “alargamento” do espaço de uma civilização, nem as possíveis modalidades de integração das diferenças. Existe uma conversa sobre cotas, porcentagens, correlações econômicas e monetárias, que é sem dúvida muito útil, mas são raras as referências à essência dos acontecimentos, à sua substância e, eu ousaria dizer, à visão a partir da qual as ações serão decididas. Retrucar-me-iam que a diplomacia não é, de forma alguma, um colóquio filosófico. É verdade. Mas também não é uma simples burocracia. Corremos o risco de pensar de maneira esquemática, de perder a imaginação, a idéia, o entusiasmo. Corremos o risco de criar uma segurança embotada, uma prosperidade grudenta e uma unidade amorfa.

Quê fazer? Se eu não fosse ministro no momento em que falo com vocês (eu não era quando fui convidado para fazer esta conferência), poderia arriscar um rascunho de resposta. Mas, como ministro, eu estou no lugar do paciente, e não do terapeuta. Sou parte da paisagem que acabei de descrever. E não é possível que eu não identifique nesta paisagem, por enquanto, a brecha salvadora. Prefiro propor a vocês uma paisagem paralela, aquele em que vivi antes de chegar à minha perspectiva atual. Nos antigos países comunistas, freqüentemente vivíamos de soluções paralelas: uma cultura paralela à oficial, um conjunto de normas subterrâneas paralelas, uma economia paralela. Tendo esta experiência em mente, eu agora penso na possibilidade de uma diplomacia paralela. Não temos de inventá-la. Ela existe. Estive nela em 1992 no Wissenschaftskolleg em Berlin, e mais tarde em alguns institutos de estudos avançados, em Wassenaar, em Budapeste ou em Viena. Tentei formar um instituto assim em Bucareste e aprecio imaginar que fui bem sucedido. Nestes institutos, que não adotam “documentos finais”, que não criam comissões de controle ou forças de intervenção, que não criam nem desfazem fronteiras no mundo, uma elite relaxada mas responsável, racional, sem qualquer abuso sistemático ou ideologia formalizada, trava um intenso diálogo a respeito do mundo e dos destinos do homem. Vindos de todos os lugares e de todas as áreas, os membros destes institutos possuem, além das capacidades de seu espírito e de sua especialização, duas virtudes que estão em falta entre os diplomatas: eles têm liberdade interior e tempo. Quando se encontram, um verdadeiro encontro acontece; quando falam uns com os outros, realmente se comunicam; quando brigam, nenhuma embaixada fecha. Nestes institutos, o debate ainda é uma instituição eficiente, e a pesquisa é coloquial, corajosa, e orientada não para conjunturas, mas para fundamentos. Eles têm o estilo de uma diplomacia de boa qualidade, sem os seus servilismos. Jean-Paul Sartre disse uma vez que uma boa revista se faz dançando. Eu diria que o que eu vivi no Wissenschaftskolleg zu Berlin era a euforia sóbria da dança. A diplomacia pode tomar esta euforia sóbria como um modelo. E a integração européia e planetária poderá se tornar uma boa oportunidade para que o mundo reaprenda a dançar.

Comments

comments