Marô de Freitas

GAZETA DO POVO – Curitiba, 21 de março de 1998

Tenho 60 anos e vivi os últimos 12 anos em Colmeia, numa fazenda, estado de Tocantins. Sou casada há 40 anos, meu marido é engenheiro agrônomo, 65 anos. Meu filho que trabalhou conosco até 1995 também é engenheiro agrônomo e tem 34 anos.

Éramos, talvez, a única família razoavelmente educada que morava naquele fim de mundo. A nossa casa era lá, era lá que passávamos as festas em família, lá estavam as nossas árvores, nossas flores, a casinha  da nossa neta. Há 20 anos, periodicamente, dou aulas de arte no exterior (desenho, composição, pintura em porcelana). Assim conciliei a vida do Terceiro Mundo (ou no avesso do Terceiro Mundo) com três ou quatro viagens por ano aos Estados Unidos e Europa. Tenho o prazer de dar aulas a grupos realmente interessados e enfrento o “stress” de ter que explicar a inflação, a destruição da Amazônia, a violência etc. a pessoas que faziam perguntas até por delicadeza. Pareciam preocupadas com uma “very nice person”  “pessoa muito simpática” sofrendo tanto.

Na realidade, não havia sofrimento. Vida dura, sim. Imagine que, em 1986, quando nos mudamos para lá, não havia luz elétrica – a cidade contava apenas com um gerador. Não havia manteiga, frutas e verduras. A não ser as que eram produzidas localmente.

Escrevi um livro sobre pintura de flores e tive que pintar os dez originais em placas de porcelana e transportá-las “molhadas” para serem queimadas em Goiânia, onde havia um forno.

Era uma aventura? Talvez um pouco tarde na vida. Mas o meu marido gostava muito daquilo, do trabalho. Via grandes possibilidades de melhorar aquela região e o rebanho…

Subitamente, no dia 6 de janeiro de 1994, fomos invadidos por um grupo de 48 “sem-terra”, liderados por um empregado nosso, encarregado de tomar conta de um retiro mais distanciado da sede.

Como se vê, a invasão deu-se “pelos fundos”. De bicicleta ou a pé, eles iam até o Retiro da Pompéia, acampavam nas casas ou curral (para que barracas de lona?) e, de lá, perpetravam as barbaridades que só quem as viveu pode avaliar. Impossível imaginar.

Tenho um levantamento das violências de cada mês. Nessa diabólica tática de agir pesadamente uma vez por mês e manter o clima de terror pelo resto dos 30 dias, pode-se detectar a mão de um movimento organizado.

Cito alguns exemplos: meu marido recebeu um tiro no rosto, quatro empregados foram baleados, duas pontes foram queimadas, serraria e casa do serrador totalmente queimada, duas casas de alvenaria destruídas à marretadas, curral queimado até o chão.

Fui apedrejada. Tudo isso em meio a ameaças, tiros nos veículos, matança de gado, derrubada de cercas, fogo na reserva florestal do Ibama.

E daí? Nada aconteceu para acabar com a violência. Mas tudo aconteceu contra os violentados. Mas tudo mesmo!

Algum dia alguém vai procurar saber o que realmente está acontecendo fora das cidades. Talvez a imprensa. É preciso revelar o que existe atrás da “generosidade” e do “heroísmo” do MST e sob a batina protetora da Igreja.

Eu própria só entendi as garras deste movimento quando li na Folha-SP de 9/3/97 uma página inteira com o esquema de organização do MST. Compreendi então todo o absurdo da situação que se abateu sobre nós. Entendi, de repente, os elos entre aquelas coisas misteriosas, o descaso (na melhor das hipóteses) e a perseguição daquela que deveria ser a nossa proteção – a Justiça!!!

… Paranóia? Tenho todas as provas, documentos em cartório, posso mostrar as cicatrizes dessa desgraça que se abateu sobre uma família que apenas queria ser feliz…

Perdi tudo, não tenho mais casa, vivo apertada num apartamentozinho em Goiânia, onde mal posso trabalhar. Meu filho – agrônomo, pós-graduado, fluente em inglês – é agora vendedor de carros. E está feliz. Simplesmente porque escapamos com vida.

Meu casamento de 40 anos acabou. Meu marido, desde que se formou em 1954 na Esalq (Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz, da USP, em Piracicaba) só tinha um sonho: sua fazenda. Não resistiu às agressões e às humilhações. O peso das injustiças desabou todo sobre ele e desenvolveu uma síndrome bipolar (psicose maníaco-depressiva)… Ele me considera “seu fracasso”: não soube reagir, não soube atirar, não soube conservar o que tinha.

Eu que não fui abençoada com nenhum distúrbio – talvez o único meio de alguém se sentir bem neste país – estou tentando me organizar para morar nos Estados Unidos, onde tenho minha reputação como professora de arte. Nossa única saída é sair deste Eldorado…

A razão desta carta? Tenho dois netos, filhos das duas filhas que moram em São Paulo (uma é engenheira, outra é médica). Na cidade grande tudo é violento, mas não é uma violência pessoal, dirigida, como essa que apontaram contra nós. Na cidade, a violência é gratuita, às vezes até sem ódio. A violência contra nós, planejada cuidadosamente para nos atingir e liquidar, resultou de um ressentimento, terrível e aleatório…

Gostaria que meus netos soubessem que a avó não se deixou abater…

Marô de Freitas

Caixa Postal 197, 74001-970, Goiânia, GO.

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