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Descrédito geral

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de outubro de 2015

          

Uma pesquisa da CNT, Confederação Nacional dos Transportes, traz alguns dados fundamentais para a compreensão do estado de coisas no Brasil de hoje.
O relatório completo está aqui, mas a tabela que reproduzo neste artigo (página 45 do relatório) fala por si.
A pesquisa buscou averiguar, com uma amostragem significativa colhida em várias regiões do país, quais as instituições em que o povo brasileiro mais e menos confia: igrejas, partidos políticos, governo, mídia etc. É uma pergunta temível, que anuncia choro e ranger de dentes.
Entre mortos e feridos, a principal vítima foram as Forças Armadas. Semanas atrás, afirmei que, tendo sido por décadas a instituição exibida em todas as pesquisas como a mais confiável do país, elas logo perderiam esse estatuto e rastejariam na lama do descrédito junto com a mídia e os políticos.O motivo que me levou a esse prognóstico sombrio foi a longa série de hesitações, embromações e desconversas pomposas com que os militares responderam ao clamor de seus admiradores devotos por uma “intervenção militar” supostamente salvadora. A sucessão de vexames entremeados de ostentações de patriotismo histriônico, que teve um ponto alto no ridículo desfile de Sete de
Setembro em recinto fechado, chegou ao auge no show de puxassaquismo e concordância ideológica oferecido pelos comandantes das três armas ao representante do Foro de São Paulo, Aldo Rebelo.
Pois bem, a  previsão já estava se cumprindo quando foi anunciada. A pesquisa, de julho, mas só publicada agora, revela que o nível de confiança popular nas Forças Armadas baixou dos antigos 50 e tantos por cento para 15,5 por cento. Merecidamente.
Para meditação dos oficiais militares que ainda prezam um pouco a reputação das suas corporações, relembro aqui o clássico haikai de Antonio Machado:
Cuan dificil es
Cuando todo baja
No bajar también.
Com toda a certeza, os oficiais empenhados em alinhar as suas instituições com a política do Foro de São Paulo acreditaram que podiam continuar fazendo isso sem despertar suspeitas, protegidos sob a redoma da tradicional confiabilidade militar, consolidada ao longo de décadas de pesquisas.
Mas nenhum capital acumulado resiste por muito tempo a um empenho sério e obstinado de cultivar o prejuízo.
Se os bravos guerreiros não acordarem, daqui a pouco teremos Pixulekos fardados flutuando nas praças, e os oficiais vistos de uniforme nas ruas ou nos restaurantes receberão o mesmo tratamento dado ao sr. Adams e similares.
Com exceção das igrejas em geral, que 53,5% dos entrevistados consideraram maximamente confiáveis, praticamente todas as demais instituições nacionais tiveram desempenhos tão baixos que não há exagero nenhum em dizer que perderam por completo a confiança do povo: Justiça, 10,1%; polícia, 5%; imprensa, 4,8%; governo, 1,1%; Congresso Nacional, 0,8%; partidos políticos, 0,1%.
Se um governo que permanece no poder desfrutando da confiança de apenas 1,1% já é a prova contundente de que não existe mais nenhuma “democracia” a ser preservada, mais patético ainda é que o Congresso, da qual tantos comentaristas de mídia esperam a cura miraculosa do descalabro nacional, esteja abaixo dele na escala, com seus 0,8% de confiabilidade. Não é isso que as pessoas chamam de pedir socorro para o bandido?
Como entender esse quadro, exceto como o retrato de uma quebra total da confiança, de uma ruptura insanável entre o povo e a elite governante, de uma falência total do sistema, de um estado de coisas, em suma, revolucionário?
Não é de estranhar que a minoria dominante se esforce acima de tudo para simular normalidade, louvando como valores sacrossantos as “nossas instituições”, fazendo apelos ao fetiche da “estabilidade”, repetindo infindavelmente o mantra de que o leão é manso e de que, se ele não for, não se preocupem, porque “estamos preparados”.
Nem é de espantar que o partido menos confiável de todos, objeto do ódio ostensivo de mais de 90% da população, entre em delírio paranóico e, invertendo radicalmente o senso das proporções, atribua tudo a uma “conspiração golpista das elites”, como se não fosse ele próprio a elite mais golpista que já existiu neste país.
Já os 4,8% de confiabilidade atribuídos à mídia mostram que o povo está consciente de viver num cenário fictício criado por aqueles cuja obrigação seria informá-lo da realidade.
Desde a longa e ominosa ocultação da existência do Foro de São Paulo até o atual empenho de camuflar a tomada do poder continental por organizações comunistas (que poderia ter sido evitada sem o manto de invisibilidade protetora lançado sobre o Foro de São Paulo), é evidente que a classe jornalística no Brasil se tornou uma seita empenhada em defender os seus queridos mitos de juventude – e os grupos que os personificam – contra toda interferência dos malditos fatos.
Nossos grandes jornais e canais de TV, com efeito, não medem esforços na sua missão anestésica, modificando até o vocabulário da língua portuguesa para que nunca, em hipótese alguma, as coisas pareçam o que são.
Vou citar só um caso entre milhares.
Uma recente pesquisa do Datafolha, confirmando brutalmente a da CNT, evidenciou a diferença radical de opiniões entre os membros do Congresso e a população brasileira. Por exemplo, “55% dos brasileiros disseram ser de direita, enquanto apenas 17% dos parlamentares concordaram que seguem a mesma linha… Dos deputados e senadores ouvidos, 53% disseram que a lei deveria reconhecer uma família com pessoas do mesmo sexo… Já para a população brasileira, 60% afirmam que, por lei, uma família deve ser formada apenas entre homem e mulher”.
Os políticos, evidentemente, querem o contrário do que o eleitorado quer. Não o representam em nenhum sentido substancial do termo.
Mas como foi que a Folha e a revista Época noticiaram esse resultado? Vejam o título: “Políticos brasileiros são mais liberais do que o eleitorado, diz pesquisa”.
Liberais? Liberal, no vocabulário político brasileiro, quer dizer anti-socialista e partidário da economia de mercado – alguém da direita, em suma. Como chamar de liberal um grupo em que 83% dos membros dizem que não são de direita de maneira alguma? O certo, obviamente, seria dizer que os políticos são mais esquerdistas – não mais liberais – do que os seus eleitores.
Mas isso seria confessar que um povo acentuadamente conservador vive, contra a sua vontade expressa, sob a hegemonia ditatorial de um grupo minoritário esquerdista, exatamente como planejado pela estratégia de Antonio Gramsci adotada pelos partidos de esquerda desde há mais de trinta anos.
E isso a Folha não poderia confessar de maneira alguma, tendo sido ela própria um dos instrumentos principais para a implantação dessa hegemonia.
Qual o remédio encontrado? Apelar à língua inglesa falada nos EUA, onde a palavra “liberal”, sem que em geral o povo brasileiro tenha disso a menor idéia, significa precisamente “esquerdista” em oposição a “conservative”. Eis como a Folha, transmitindo a informação, anestesia o leitor para que não a compreenda.
Usar as palavras corretas, descrevendo adequadamente a situação que a pesquisa evidencia, seria reconhecer que há muito tempo o sistema representativo, a mais beatificada das nossas “instituições”, já se tornou uma fraude completa, um jogo de cartas marcadas criado para dar representatividade legal a um grupo manipulador desprovido de qualquer representatividade substantiva.
É evidente que, sem essa máquina de ludibriar o povo, fenômenos como o Mensalão, o Petrolão, ou qualquer dos outros inumeráveis crimes cometidos pelo governo com a cumplicidade da classe política praticamente inteira, jamais teriam sido possíveis.
Mas reconhecer isso seria admitir a unidade solidária do esquema gramsciano com o roubo organizado – e isto daria por terra com a gentil operação de gerenciamento de danos, com a qual, não podendo negar totalmente os fatos delituosos, a mídia se esforça para apresentá-los como meros delitos comuns, sem qualquer conexão com a estratégia comunista de dominação total.
Se isso não é cumplicidade com o crime, as palavras “crime” e “cumplicidade” também devem ter mudado de significado.

Chavões e realidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de outubro de 2015

          

Chavões, frases-feitas, clichês, estereótipos ou como se queira chamá-los  existem para que o sujeito que não pensou num assunto possa obter a concordância imediata de outro que também não pensou.
Onde quer que você ouça ou leia um desses maravilhosos substitutivos do pensamento, pode ter a certeza de que está assistindo a um encontro de dois corações que se apóiam e se reforçam mutuamente sem nenhuma interferência do objeto sobre o qual fingem estar conversando.
Por exemplo, quando um cidadão afirma: “Esquerda e direita são conceitos superados”, o que ele quer dizer é: “Eu sou superior a essas coisas.” O ouvinte, mais que depressa, responde: “Eu também.” E saem os dois muito contentes da sua superioridade, enquanto as duas forças inexistentes continuam a disputar o governo, xingar-se uma à outra, boicotar-se mutuamente e até trocar tiros, como se existissem.
A verdade é que nenhum fato ou coisa deste mundo, por pequeno e modesto que seja, se deixa apreender na linguagem dos chavões. Estes não têm nada a ver com a descrição de realidades, mas apenas, na mais bem sucedida das hipóteses, com a expressão da harmonia ou desarmonia entre as almas do falante e do ouvinte.
Isso é assim pela simples razão de que nenhuma realidade vem junto com a linguagem pronta que a expressa, mas em cada caso a sua descoberta requer a invenção da linguagem apropriada para expressá-la.
É por isso que os autores de grandes descobertas na filosofia são também inventores de linguagens originais. Conforme o talento literário de cada um, elas podem ser límpidas e claras como as de Platão ou Leibniz, ou então abstrusas e indecifráveis como as de Kant ou Heidegger, mas sempre originais, únicas e adequadas aos seus fins.
O chavão é, por excelência, a linguagem do auto-engano que busca transmutar-se em engano alheio, se possível em engano geral. É a linguagem de quem fecha os olhos ao objeto e os arregala para ver a reação do ouvinte. O pobre do objeto, do assunto, da questão, fica fora da conversa como um mendigo que espia pela janela do Ritz.
Se voltamos ao exemplo acima e, em vez de participar da deliciosa harmonia entre o falante e o ouvinte, voltamos os nossos olhos ao objeto da conversa, em cem por cento dos casos notamos que ele é bem diferente do que o imaginam aqueles que nem mesmo tentaram imaginá-lo, mas se limitaram a usá-lo como pretexto de um intercâmbio social.
Desde logo, se há pessoas que se dizem de esquerda ou de direita e que agem politicamente sob essas bandeiras, é evidente que esquerda e direita existem como agrupamentos políticos reais que sob esses nomes se reconhecem e por eles distinguem os “de dentro” e os “de fora”.
Se suprimimos os nomes teremos de designá-los por outros da nossa própria invenção, nos quais os dois grupos não se reconhecerão e que só servirão para complicar o vocabulário.
Como autodenominações de grupos políticos e símbolos da sua identidade, os termos “esquerda” e “direita” não estão superados de maneira alguma. Expressam uma realidade sociológica inegável.
Faz um pouco mais de sentido dizer que seus respectivos discursos ideológicos foram ultrapassados pelo desenvolvimento crescentemente complexo do estado de coisas, que nenhum deles expressa corretamente.
Teremos, com isso “superado os conceitos” de esquerda e direita? De maneira alguma, pois essa acusação é a mesma que a esquerda e a direita se fazem mutuamente, e, se não percebemos nem mesmo isso, é que ignoramos o estado de coisas ainda mais profundamente do que as duas juntas, e nós é que estamos superados. O sapientíssimo se revela um bobo na hora mesma em que tenta posar de superior.
Deveria ser óbvio para todo mundo, mas para muitos é quase um segredo esotérico inacessível, que a qualidade boa ou má, a veracidade ou falsidade das idéias de um grupo não tem nada a ver com a sua existência ou inexistência como grupo. Argumentar que duendes não existem não prova que inexistam grupos que acreditam em duendes.
Ainda mais bobo é aquele que afirma desprezar toda “retórica ideológica” e, em vez disso, examinar somente os interesses materiais malignos por trás da aparente disputa de ideologias, acreditando com isso estar firmemente assentado no terreno dos fatos e a salvo de idéias ilusórias.
Mas, em primeiro lugar, apontar interesses materiais por trás de um discurso ideológico é precisamente o que as ideologias inimigas fazem umas com as outras. E o fazem quase sempre com razão, porque toda ideologia, como já a definia Karl Marx, é um “vestido de idéias” (Ideenkleid) costurado para encobrir um interesse material, um projeto de poder, uma ambição mundana.
Por outro lado, é certo que, se esses interesses se apresentassem nus e crus, sem a embalagem ideológica, seriam imediatamente desmoralizados e não enganariam a ninguém. A ideologia, portanto, é parte integrante do projeto maligno, que não pode ser compreendido sem referência a ela.
Por fim, também é certo que, se um discurso ideológico, uma vez formulado, serve de símbolo verbal da identidade de um grupo, o qual sem essa identidade estaria privado da possibilidade de agir em conjunto, o conteúdo desse discurso não será nunca totalmente alheio à conduta real do grupo, que em certa medida será obrigado a ajustar suas ambições de poder às promessas e valores do discurso.
A tensão entre a identidade do grupo e os interesses materiais em jogo é um elemento permanente da vida político-ideológica, e fazer abstração da ideologia para enfocar somente os interesses materiais isolados é condenar-se a não compreendê-los de maneira alguma.
Um exemplo característico é o chavão mais em moda hoje em dia, segundo o qual o sr. Lula não é comunista nem esquerdista, apenas um político sem filiação ideológica que enriqueceu ilicitamente.
Esse chavão soa agradável em diferentes áreas do espectro ideológico. Para o esquerdista, ele é a fórmula mágica para isentar de toda culpa pelos crimes do PT a corrente política que o criou, que o incensou, que lhe deu a hegemonia e que, se ele for para o buraco, pretende continuar no poder sob outros nomes quaisquer.
Para o direitista, fornece um poderoso argumento retórico: “Estão vendo como na esquerda ninguém presta, como são todos uns ladrões e salafrários?” E, para o homem “superior a ideologias”, é mais uma prova da sua superioridade sublime. Todos os pretextos servem, portanto, para o interessado se fazer de bonito mediante a supressão de pelo menos duas perguntas:
1) Se o Lula é apenas um ladrãozinho sem compromisso com o comunismo, por que distribuiu tanto dinheiro a ditaduras e partidos comunistas, quando podia guardá-lo para si mesmo?
2) Por que as FARC o homenagearam por ter salvado in extremis o comunismo continental, em vez de acusá-lo de usar o comunismo em benefício próprio?
Que o sr. Lula seja apenas um ladrãozinho egoísta sem vínculo ou compromisso com o comunismo internacional é uma das idéias mais estúpidas e indefensáveis que já passaram por um cérebro humano.
De um lado, há o fato incontestável de que ele é aceito e celebrado por todos os governos e partidos comunistas do mundo não só como um parceiro e irmão leal, mas até como uma espécie de herói, de salvador providencial.
Se ele alcançou essa posição sem nada fazer pelo comunismo e agindo sempre somente no interesse próprio, então ele enganou a todos os líderes e governos comunistas do universo, incluindo os serviços secretos de Cuba e da China, tidos como extraordinariamente eficientes e maliciosos, só não logrando tapear o tirocínio superior dos comentaristas brasileiros de mídia.
De outro lado, resta o fato igualmente incontestável de que nenhum espertalhão logrou jamais utilizar-se do comunismo em benefício próprio sem beneficiar ainda mais algum governo ou partido comunista — pelo menos não logrou fazê-lo sem pagar com a vida.
Willi Münzenberg, que era um milhão de vezes mais esperto que Lula, foi simplesmente acusado de tentar fazer isso, e já o assassinaram antes que alguém pudesse verificar se fez ou não.
Não é humanamente concebível que um movimento que condenou à morte cem milhões de pessoas pudesse poupar generosamente a vida de um vigarista que o ludibriasse de forma tão humilhante ante os olhos da humanidade inteira.
Muito menos concebível é que depois disso continuasse a aplaudi-lo e paparicá-lo como o fazem os governos de Cuba, da China, da Venezuela etc. Essa hipótese é tão absurda, tão monstruosamente inverossímil, que acreditar nela mesmo por um minuto e em segredo já seria prova de uma imbecilidade descomunal.
A desenvoltura ingênua com que tantos no Brasil a alardeiam sem a menor inibição é a prova definitiva de que algo no cérebro nacional não vai bem.
Erros monumentais como esse não aparecem sozinhos. Provêm de uma ignorância estrutural, profunda e dificilmente reversível, quanto à natureza e função das ideologias em geral.
Os palpiteiros que superlotam a mídia e as cátedras imaginam que ideologia seja algo como uma crença religiosa, que exija a adesão profunda e sincera das almas. Nessa perspectiva, um comunista, por exemplo, poderia ser um “verdadeiro crente” ou um mero oportunista sem crença nenhuma.
Essa diferença pode ter existido em outras épocas, quando a URSS baixava as Tábuas da Lei e condenava como heréticos os trotskistas, os revisionistas etc. De fato, não pode existir “verdadeiro crente” sem um texto canônico obrigatório para todos.
Mas já faz três décadas, pelo menos, que nada disso existe no movimento comunista. A concepção eclesiástica do Partido como guardião da doutrina infalível foi substituída pela flexibilidade de um pluralismo ilimitado onde todos os discursos ideológicos são bons, desde que seus adeptos consintam em agir segundo uma estratégica unificada.
Concomitantemente, a antiga hierarquia vertical foi trocada por uma organização mais flexível sob a forma de “redes”, onde as palavras-de-ordem não despencam das alturas olímpicas de um Comitê Central mas se espalham quase anonimamente, como se fossem meras exigências do senso comum em vez de ordens do Camarada Fulano ou Beltrano.
A substituição da unidade ideológica pela unidade puramente estratégica, concebida nos anos 80 do século passado e testada com sucesso espetacular na guerrilha de Chiapas, México, em 1994 — chamada por isso “guerrilha pós-moderna” –, permitiu que o movimento comunista não somente sobrevivesse incólume à queda da URSS, mas multiplicasse sua força e capacidade de ação.
A esquerda mundial está hoje muito mais unificada e organizada do que 60 ou 70 anos atrás. Ganhou em força de atuação conjunta o que perdeu no debate ideológico. Quem não percebe isso não merece ser ouvido em matéria de política.
Para tornar as coisas ainda mais incompreensíveis aos sábios iluminados, resta o fato de que “esquerda” e “direita” só são entidades simetricamente opostas nos dicionários.
Na vida real, “esquerda”, hoje, não é um “rótulo ideológico” e sim um movimento unificado e organizadíssimo sem nenhuma ideologia definida, ao passo que “direita” é na melhor das hipóteses o nome de um amálgama confuso de discursos ideológicos inconexos, ao qual não corresponde nenhuma organização ou movimento unificado nem mesmo em escala nacional, quanto mais mundial.
Não são espécies do mesmo gênero. Aquele que assim as concebe para fazer-se de superior a ambas, como um domador que cavalga simetricamente dois cavalos com um pé em cada um, é na verdade um acrobata impossível com um pé num cavalo de carne e osso e o outro no conceito abstrato de um cavalo hipotético.

O reino do subjetivismo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de outubro de 2015

          

Embora escrito por um matemático e lógico de formação – ou talvez justamente por isso –, O Homem  Soviético, de Alexander Zinoviev, é um dos melhores livros de sociologia já publicados no mundo. Sem lê-lo ninguém jamais compreenderá o funcionamento da sociedade soviética ou das muitas que direta ou indiretamente se inspiraram nela.
Entre outras mil coisas valiosas, o autor aí ensina que em toda carreira profissional, majestosa ou humilde, há dois conjuntos de conhecimentos, diferentes e incomunicáveis entre si, que o cidadão tem de dominar para alcançar algum sucesso.
O primeiro refere-se, naturalmente, ao objeto ou propósito da tarefa a desempenhar. Se o sujeito trabalha numa fábrica de sabonetes, tem de saber algo sobre sabonetes. Se é enfermeiro, algo sobre corpos humanos, doenças e remédios. Se é legislador, juiz ou advogado, algo sobre leis. Se é escritor ou jornalista, algo dos assuntos sobre os quais escreve e do idioma que emprega. E assim por diante.
O segundo conjunto de conhecimentos, que não pode ser deduzido do primeiro e tem de ser adquirido independentemente, ensina como o cidadão tem de tratar os colegas, os chefes e o público para sobreviver e, se possível, subir na hierarquia profissional.
São códigos de conduta explícitos ou implícitos, modos de falar, hábitos compartilhados, táticas de lisonja e arte da intriga, alianças grupais, projeção da imagem pessoal, etc. etc. Inclui mesmo, por incrível que pareça, a técnica de preservar um pouco da própria dignidade no meio dessas manobras.
Zinoviev não dá um nome distinto a cada um dos conjuntos, mas, para simplificar, direi que se trata, respectivamente, de requisitos objetivos e subjetivos para o desempenho profissional.
Essa dupla série de exigências é universal e incontornável, mas o peso respectivo das duas ordens de fatores varia de sociedade para sociedade e, é claro, em diferentes áreas da mesma sociedade.
Onde tudo funciona bem e com rentabilidade máxima, o fator subjetivo está subordinado ao objetivo e suas exigências não pesam muito sobre o desempenho de patrões e empregados. As pessoas sobem ou descem na hierarquia conforme sirvam bem ou mal às finalidades do empreendimento. O sucesso segue e reflete a competência, que por sua vez pode ser mensurada objetivamente.
Numa economia de mercado, descontadas as eventuais distorções, como por exemplo os efeitos da propaganda enganosa que pode simular competência e funcionalidade onde não existe nenhuma, as coisas tendem naturalmente a tomar o rumo da competição objetiva.
O produto melhor e mais barato é bem aceito pelo público, e é melhor e mais barato porque na empresa produtora a objetividade no desempenho prevaleceu sobre os jogos políticos internos.
Numa economia altamente estatizada, onde a sorte das empresas depende menos da aceitação popular que dos favores do governo, a ordem se inverte.
Se os produtos e serviços são ruins, os consumidores não têm mesmo os meios de reclamar, mas um sorriso ou uma cara feia do chefe – numa escala que vai do subgerente de departamento aos altos postos do governo federal – podem decidir o sucesso ou fracasso de uma carreira.
A medida de capacidade e eficiência torna-se cada vez mais subjetiva, e as competições políticas, as intrigas de grupos, os jogos de imagens se tornam a principal ocupação de todos.
Não é preciso dizer que, nessas circunstâncias, a situação real da economia e da sociedade torna-se cada vez mais evanescente, e só o que permanece visível aos olhos de todos é a hierarquia dos prestígios, o brilho ou obscuridade das imagens, as simpatias e antipatias, a subida ou descida de indivíduos e grupos na escala da fama.
A sociedade torna-se um teatro, e cada um dos agentes sociais e políticos um ator, um farsante.
Esse fenômeno pode chegar a extremos de insanidade que o cidadão comum mal consegue imaginar. Hoje sabe-se, por exemplo – Zinoviev não o menciona, mas é uma confirmação brutal do seu diagnóstico –, que toda a economia estatal soviética, que professava ser o suprassumo do controle racional em oposição ao alegado “caos” da economia de mercado, se baseava em estatísticas inteiramente imaginárias, concebidas para projetar uma boa imagem do governo e não para dar aos governantes uma visão adequada do que estava acontecendo.
A sociedade era guiada por cegos que não se incomodavam de não ver nada, só ligavam para o como eram vistos. Não é preciso, na verdade, levar em conta nenhum outro fator para compreender a rapidez com que o sistema desabou. O todo-poderoso regime soviético não era um ídolo de pés de barro. Era uma estátua inteira de barro, pintada de bronze.
No Brasil, com certeza, ainda não chegamos a esse ponto, no que diz respeito à economia. Malgrado algumas falsificações ocasionais, ainda podemos saber mais ou menos o que se passa na realidade: quanto produzimos, quanto vale o dólar, quanto devemos, quanto nos roubaram, etc. etc.
Mas saiam um pouco do âmbito da economia, e verão que em tudo o mais reina, absoluto e irrefreável, o poder do subjetivismo galopante. A realidade não tem a menor chance, só o que conta é a impressão, a boniteza da imagem, a moderação pseudo-elegante das palavras, o culto das aparências tranquilizantes e das receitas anestésicas.
Sabemos, por exemplo, que 50% dos formandos das nossas universidades são analfabetos funcionais, mas, quando um sujeito se apresenta como professor disto e daquilo na faculdade não sei das quantas, ainda o rodeamos de salamaleques e rapapés, sem notar que, em cinqüenta por cento dos casos, o que ele está nos mostrando é um certificado de analfabetismo funcional.
As universidades tornaram-se fábricas de imbecis, mas continuam a ser respeitadas como usinas do saber, sem que ninguém pense em questionar a sua função na sociedade ou submetê-las a um cálculo de custo-benefício.
Sabemos que um governo reprovado pela quase totalidade da população continua no poder com a ajuda de uma oligarquia financeira voraz e de uma classe política na qual os representantes se voltam frontalmente contra os representados, mas continuamos falando em “estabilidade das instituições democráticas”, como se estas não tivessem se convertido precisamente no seu oposto.
Sabemos que, no país onde vigora talvez o mais rígido sistema de desarmamento civil no mundo, onde até mesmo brinquedos em forma de armas são proibidos, a taxa de homicídios cresce sem parar e já está chegando a 70 mil vítimas por ano. Já faz dez anos que o povo, mostrando estar ciente desse descalabro, votou maciçamente pela liberação dos portes de armas, mas o Congresso, a Presidência da República e a grande mídia continuam fazendo de conta que não sabem disso, que nunca ouviram falar nem da matança contínua nem do plebiscito.
Todos sabemos que o PT foi colocado no poder para salvar da extinção o movimento comunista no continente e montou para esse fim o mais formidável esquema de corrupção de que se tem notícia no mundo, mas até agora a quase totalidade dos heróicos oradores que denunciam a roubalheira insiste em falar genericamente de “corrupção”, culpando fatores sociológicos anônimos para não dar nomes aos bois.
Sobretudo para não mencionar o nome proibido: Foro de São Paulo. O sr. Hélio Bicudo, que alguns espertalhões exumaram da lata de lixo da História para fazer dele o novo herói do antipetismo, chega ao paroxismo da desconversa ao apontar, como causa de toda a safadeza, a “herança do nepotismo português”, enquanto outros preferem falar do “mercantilismo”, da “Contra-Reforma”, isto quando não culpam o capitalismo pelos crimes dos comunistas no poder.
As falsidades do dia refletem a deformidade intelectual profunda das “classes falantes” no Brasil. Na investigação de qualquer fenômeno político-social, conforme aprendi com Georg Jellinek, a regra mais elementar é distinguir e articular os atos voluntários e a confluência acidental de fatores gerais e anônimos.
No Brasil, a regra é esconder os primeiros sob os segundos. Ações que têm uma autoria clara e determinada, atestada em documentos e confissões, são explicadas por forças sociológicas impessoais, dissolvendo, assim, a figura dos autores. Quando você ouve falar em “corrupção endêmica”, nepotismo português” e coisas do gênero para explicar o Petrolão, você está certamente ouvindo um idiota ou um charlatão.
O Petrolão, assim como o resto da roubalheira petista, foi planejado com décadas de antecedência para dar à esquerda o controle hegemônico da sociedade brasileira e salvar da extinção o movimento comunista em outros países, debilitado pela queda da URSS.
Fatores mais genéricos podem ter sido usados apenas como causas ocasionais suplementares dentro de uma ação racionalmente planejada e executada. Apelar a esses fatores para explicar o império do crime criado pelos petistas é como atenuar as culpas de um estuprador atribuindo-as ao fenômeno geral da atração entre os sexos. Pode-se fazer isso por idiotice ou por vigarice genuína. Por nenhum outro motivo.
Por que as pessoas agem assim? Por que políticos, professores, jornalistas, desviam os olhos dos fatos mais gritantes e preferem apelar a generalidades ocas empacotadas em chavões já gastos e esvaziados pelo tempo?
É que o Brasil já se tornou a sociedade disfuncional descrita por Zinoviev, onde cada um só pensa no papel a desempenhar perante os chefes, os colegas e o público, consumindo nisso todas as suas energias, sem querer nem poder mais prestar atenção aos fatores objetivos.
É o reino do subjetivismo desvairado, o império da “boa impressão”, onde os fatos não têm vez e os problemas, em vez de focos de atenção sincera, se tornam apenas pretextos para um desempenho teatral.

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