Yearly archive for 2000

O nome da ganhadora

Olavo de Carvalho

Época, 14 de outubro de 2000

O Brasil odeia corrupção, mas não liga para espionagem. Quem ganha com essa diferença?

Na onda de moralismo persecutório que assola o país, há uma desproporção monstruosa entre as tempestades de cólera que se desencadeiam à simples suspeita de algum desvio de dinheiro público e a tolerante indiferença ante a prática generalizada da espionagem política.

Dentre milhões de brasileiros, pareço ser o único sensível à esquisitice desse fenômeno, no qual nem o povo, nem as autoridades, nem a imprensa dão sinal de perceber nada de mais. Inútil lembrar a meus concidadãos que o presidente Nixon, inabalável no cargo após dúzias de denúncias de corrupção, foi tirado de lá num relance à primeira revelação de um único delito de grampo. Inútil evocar os inumeráveis discursos e análises que naquele tempo ressaltaram a diferença crucial entre simples atos desonestos e a usurpação da autoridade do Estado. A ordem democrática, constatou-se então, pode sobreviver a todas as fraudes, mas não a justiceiros autonomeados que se arrogam os poderes do serviço secreto. Não há, aí, medida comum: os bens do Estado não podem valer mais que o Estado mesmo, fundamento e garantia desses bens.

No Brasil, porém, é o contrário: ninguém se ofende de que meros cidadãos particulares, a serviço de interesses grupais, se sintam autorizados a furtar documentos, grampear telefones e vasculhar extratos bancários de seus desafetos políticos. Mas que alguém toque numa parcela qualquer de “nosso” dinheiro, e a nação toda se ergue, enfurecida, exigindo cabeças. A usurpação da autoridade não é nada, o dinheiro público é tudo. O defraudador vulgar é uma ameaça à segurança nacional, o espião político é no máximo um pecador venial, tolerado, perdoado e até enaltecido em nome da prioridade dos fins sobre os meios. Tal é a escala de valores subentendida em todo o nosso discurso moralizante, quer ecoe no Parlamento, na imprensa ou em conversas de botequim. Quanto mais implícita e subtraída a todo exame crítico, mais essa norma se consolida como unanimidade nacional.

Ora, quaisquer que sejam as causas sociais do crime e da corrupção, ninguém nega que elas residem na mentalidade vigente, no código de valores e contravalores que determinam, consciente ou inconscientemente, a conduta dos seres humanos. E a escala de valores que acabo de descrever estabelece, da maneira mais ostensiva, o primado absoluto do dinheiro sobre a ordem legal que o sustenta. Sabem o que isso significa, moralmente? A hipersensibilidade aos valores pecuniários, acompanhada de insensibilidade aos valores mais abstratos e gerais, delineia o inconfundível perfil da mentalidade sociopática, da mentalidade dos delinqüentes e defraudadores, estelionatários e traficantes, proxenetas e ladrões. É nessa mentalidade que o brasileiro está sendo educado por uma campanha de ódio seletivo, que se prevalece da visibilidade espetaculosa do delito menor para tornar invisível o delito maior. Por isso, em vez de moralizar a nação, essa campanha só faz produzir mais corrupção, mais espionagem, mais perversão do senso moral. Mas seria injusto dizer que ninguém ganha nada com isso. Para saber quem ganha, perguntem a si mesmos se alguma facção política se destaca, mais que as outras, na dupla atividade de espionar e denunciar. Tal será o nome da afortunada beneficiária da perdição nacional.

Herpes mental

Olavo de Carvalho

O Globo, 14 de outubro de 2000

“O PT alcançou sucesso nas eleições porque mudou de discurso, colocando eficiência e moralidade no lugar da ideologia”: tal é uma afirmação que desde há uma semana passa de boca em boca, exatamente como o herpes labialis, propagando-se por contágio epidérmico sem a menor interferência do cérebro. Se chamado a intervir no caso, esse esquecido órgão que outrora prestou relevantes serviços à evolução animal teria talvez chamado a atenção do distinto público para os seguintes detalhes:

• 1. A referida mudança não data da última campanha eleitoral, mas de dez anos atrás. Ela está abundantemente documentada nas edições antigas das mesmas revistas e jornais que agora a alardeiam como novidade.

• 2. Todos os sucessos eleitorais do PT desde há uma década foram sempre atribuídos à mesmíssima causa, que ressurge ciclicamente como o nec plus ultra do diagnóstico politológico bem comportado.

• 3. O discurso da moralidade não é uma alternativa à ideologia, mas obviamente é ele próprio uma ideologia. É a ideologia tradicional da classe média udenista, que elegeu Jânio Quadros — substancialmente a mesma que depois votou em Fernando Collor de Mello.

• 4. O PT adotar esse discurso não significa que tenha mudado nem de ideologia nem de estratégia, mas apenas que a absorção de uma parte dos argumentos ideológicos do adversário foi ali considerada, numa determinada fase dessa estratégia, um expediente útil para a consecução de seus objetivos.

Ninguém que desconheça o modus operandi comunista pode compreender o PT. E quem é que o conhece, hoje, fora dos quadros dirigentes petistas (e emeessetistas, e pecedobistas etc.) que, precisamente, têm interesse em mantê-lo o mais discreto possível? Atualmente, a diferença de horizonte de visão entre a elite esquerdista e seus adversários é a que existe entre um urubu no céu e uma toupeira na sua toca. Não que o petismo seja sinal de superior inteligência. É que, simplesmente, ele tem a seu favor a perspectiva de 150 anos de experiência acumulada dos movimentos revolucionários, continuamente revista e adaptada às circunstâncias pelo esforço intelectual coletivo, ao passo que seus inimigos não têm senão suas opiniões pessoais, frutos de experiências limitadíssimas adquiridas em lutas políticas provincianas. Daí a freqüência com que estes, acreditando-se espertos precisamente porque não têm a menor idéia do tamanho da encrenca em que estão metidos, são feitos de idiotas e acabam colaborando com a estratégia petista pelos mesmos meios com que acreditam poder enfrentá-la.

Um desses meios é a idéia de conquistar o PT para a modernidade capitalista pelo pretenso método pavloviano de cobri-lo de injúrias quando ele “se excede” em passeatas e badernas, e de afagos quando ele “muda de discurso” e se faz de bonzinho. A fragilidade dessa manobra, na qual nossos liberais e conservadores parecem ter apostado tudo, salta aos olhos de quem conheça a história do rato que imaginava ter programado o cientista para que lhe desse um queijo sempre que ele se submetesse a um choque.

Há um século e meio a tradição marxista tem o know how de dosar truculência e sedução segundo um timing perfeito destinado a controlar na mente do seu adversário as quotas de temor e de esperança necessárias a paralisá-lo, desorientá-lo e induzi-lo a colaborar. Perto desse saber acumulado, toda a pretensa esperteza dos politicões tradicionais brasileiros é ingenuidade de meninos. Intelectualmente retardatária, senão retardada, a direita brasileira está hoje infinitamente abaixo de poder compreender as sutilezas de um processo histórico que a esquerda vem sabendo prever e conduzir com mão de mestre. A ascensão eleitoral esquerdista não é senão a manifestação mais espalhafatosa de um fenômeno que qualquer um teria percebido dez anos atrás se não tivesse medo de percebê-lo. Diante desse espetáculo, nossa direita reage como sempre: apegando-se a tranqüilizantes verbais, por medo de sentir medo.

Há pelo menos dez anos a esquerda detém o monopólio das iniciativas psicológicas e os meios de fazer o adversário dizer, a cada momento, o que ela quer que ele diga. Por exemplo, primeiro ela promove uma onda de invasões de prédios públicos, para amedrontar. A direita, timidamente e da boca para fora, protesta contra a “baderna”. Ato contínuo, a esquerda baixa as armas, se faz de educada, discursa serenamente em favor da eficiência e da moralidade. Seus adversários respiram aliviados e lhe concedem um novo crédito de confiança, investida do qual ela corta as cabeças de meia dúzia deles mediante denúncias de corrupção e paralisa os restantes jogando-os uns contra os outros num asqueroso festival de recriminações cruzadas. Quando, extenuados e desmoralizados, os sobreviventes esboçam diante das câmeras um sorriso amarelo para dar a impressão de que estão muito felizes com a “purificação” de suas fileiras, a esquerda volta a atacar pelo outro lado, desencadeando novas invasões de prédios públicos e vociferando ameaças de luta armada.

Há dez anos a política nacional consiste nisso e somente nisso: a auto-imolação da direita no altar do moralismo punitivo no qual ela própria convidou a esquerda a oficiar o ritual.

Não, a esquerda não mudou de ideologia, apenas de fórmula publicitária, numa periódica troca de camuflagem que já o próprio Lênin recomendava. Basta comparar com os discursos alardeados em público as teses mais discretamente discutidas nos congressos partidários, para ter a prova inequívoca de que o PT não mudou de marxista para democrático-progressista como a lagarta se transforma em borboleta, mas como o camaleão se transforma em galho, em folha ou no que mais seja preciso para permanecer camaleão.

O figurino de d. Marta

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 12 de outubro de 2000

Até a década de 30, a imagem do comunismo era a do proletário grosseirão, de unhas sujas e macacão surrado. Sua linguagem, a do insulto direto. A coisa mais banal, nas assembléias do Partido, era o orador ser interrompido por observações do tipo: “O companheiro é um f. da p.”

Nessa época, porém, o governo soviético percebeu que o socialismo era economicamente inviável, que a única maneira de salvá-lo era parasitar a prosperidade capitalista dos outros países.

Se a razão prevalecesse, o regime seria declarado morto nesse mesmo instante. Mas não é próprio do orgulho prometéico dar o braço a torcer. A obstinação no impossível levou à mais extraordinária das decisões: insuflar no falecido uma vida postiça. Morto como proposta econômica, o socialismo subsistiria como farsa consciente, sustentada pela ajuda capitalista.

Para esse fim, era preciso trocar de público: o partido dos proletários tinha de se tornar o partido dos milionários. De ideologia bárbara de maltrapilhos, o comunismo iria converter-se em moda elegante.

O único meio para isso era um ataque simultâneo em duas frentes. De um lado era preciso ficar bonito, aparecer, ganhar as telas e as manchetes, brilhar.

De outro, era preciso infiltrar-se discretamente nas altas rodas, controlar personagens importantes por meio do envolvimento e da chantagem. A ortodoxia dos serviços de inteligência, até então, considerava impossível articular publicidade e operações camufladas. A proposta era tão improvável, que sua realização deve ser considerada a mais sublime vitória alcançada pelo espírito da mentira desde aquele episódio, jamais totalmente elucidado, do Jardim do Éden.

A operação, ordenada por Stalin e planejada por Karl Radek, foi executada por Willi Münzenberg, um gênio da publicidade, e por Otto Katz, um gênio da secretude e da sedução pessoal. A história é contada em detalhes por Stephen Koch em Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West (New York, The Free Press, 1994).

O comunismo chique deu o tom da década de 30 e, através de escritores monitorados, como Ernest Hemingway, Dorothy Parker, John dos Passos, Sinclair Lewis, deixou marcas duradouras no imaginário do século 20. Não é de espantar que, após a queda da URSS, esse estilo, já desprovido de sua função primeira de sustentar o insustentável, mas ainda útil para insuflar esperança em comunistas desamparados, subsistisse como clone em terras do Terceiro Mundo, onde tudo chega com atraso e as pessoas são propensas à macaqueação residual de modas que já ninguém sabe para que foram inventadas.

Setenta anos após o desembarque do comunismo chique em Nova York, seu primeiro grande sucesso brasileiro só agora se manifesta, sob a forma de d. Marta Suplicy. O padrão do seu “glamour” – o perfeito oposto complementar dos encantos populistas da carioca Benedita da Silva – corresponde, item por item, ao modelito Katz-Münzenberg, hoje peça de museu histórico na Europa e na América do Norte, mas, entre nós, ainda capaz de exercer, sobre ricaços incultos e caipiras, o mesmo embriagante feitiço das damas stalinistas dos anos 30.

Dona Marta tem apenas uma diferença, explicada pela mudança geral da estratégia revolucionária desde os anos 60, quando um pacto assinado entre o Vaticano e o governo de Moscou encerrou um século de conflito ideológico, colocando a Igreja a serviço do comunismo e produzindo uma epidemia mundial de Boffs & Bettos. Sim, d. Marta é, no seu próprio discurso, uma católica.

Isto elimina um problema, mas cria outro, porque d. Marta quer ser, ao mesmo tempo, a voz e força em prol do auxílio estatal a condutas que a Bíblia qualifica de abominações e satanismos.

O figurino requer, pois, alguns ajustes. Um deles apareceu como que por milagre, na véspera das eleições, com a denominação de “Católicas pelo Direito de Decidir”. Decidir, no caso, é decidir a morte dos outros. Uma súbita campanha milionária, sob a forma de congressos, panfletos e painéis eletrônicos, apregoa que, para evitar que 6 mil mulheres por ano morram em abortos clandestinos, a solução mais católica é autorizar oficialmente o assassinato de uns quantos milhões de bebês. Coisa pouca, em que Deus não vai nem reparar.

Um toque original da coisa é que o sincronismo das duas campanhas – para colocar d. Marta na Prefeitura e tirar os bebês dos ventres de suas mães – pode ser explicado como coincidência providencial, eventualmente de origem divina. Nem Katz e Münzenberg teriam pensado nisso.

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